Foi mais um aniversário do 25 de Abril, desta vez para ser lembrado não como o 42º, mas como o primeiro com Marcelo Rebelo de Sousa Presidente da República. Já muito se escreveu e disse sobre o sentido das palavras do Presidente – onde o Observador identificou dois apelos, três perguntas e quatro desafios – sendo que nem todos coincidentes. Por exemplo: no jornal I Ana Sá Lopes viu nele, em Os afetos e as emoções são lindas, mas têm que acabar, um sinal de que “Marcelo pode tornar-se o adversário maior da “geringonça” - como, aliás, já estão a perceber o PCP e o Bloco de Esquerda”, enquanto, na Rádio Renascença, Eunice Lourenço, em É a democracia!, entendeu que foi antes “um aviso ao PSD que não consegue sair do beco em que se meteu”.
Mas para além dessa inevitável nova ciência que é a “marceleogia”, isto é, a leitura dos recados do novo Presidente, há dois textos que julgo valer a pena destacar. O primeiro é de Rui Ramos, aqui no Observador, que refecte sobre O paradoxo do presidente. Esse paradoxo é o de ter referido no mesmo discurso que estão hoje “dois caminhos muito bem definidos e diferenciados quanto à governação, ao modo de se atingir as metas nacionais” e, ao mesmo tempo, considerar que com “bom senso” é possível que as forças políticas unirem-se no “essencial”. Mas que talvez não seja um paradoxo se pensarmos que “que há, de facto, uma unidade essencial entre os proponentes das duas “fórmulas de governo”: aquela que resulta de nenhum dos “dois caminhos”, nas presentes condições do país, ser viável.” Ou seja, “Enquanto a nossa respiração financeira depender da máquina europeia, estaremos todos muito “unidos no essencial”: a austeridade.”
O segundo texto que escolhi não se centra no discurso do Presidente, mas nos discursos dos partidos da esquerda. Trata-se de Corações ao alto: Abril regressou!, de João Miguel Tavares no Público, onde critica a forma como a esquerda em geral procura excluir a direita do 25 de Abril, acusando-a, como ontem voltou a suceder na boca de Vasco Lourenço, de ser “anti-25 de Abril”. É algo para que o colunista diz, literalmente, que não tem “pachorra”: “Se para uns a democracia é tudo, para a Associação 25 de Abril e para dois terços do actual Governo e partidos adjacentes a democracia é pouco. Democracia sem um projecto de esquerda não é democracia, porque boa parte da esquerda portuguesa ainda vive mentalmente no tempo do pacto MFA-Partidos – um povo pouco esclarecido pode fazer gripar o motor do processo revolucionário.”
Houve contudo um aspecto dos discursos destas comemorações oficiais que foi pouco referido e que me parece significativo: à esquerda do PS, a esquerda apoia o governo do PS, não houve rebuço em criticar abertamente a União Europeia. “A nossa democracia encolhe-se sob a pressão de uma UE nascida nas elites, imposta, tratado após tratado, ignorando os povos”, disse Jorge Costa, em nome do Bloco de Esquerda. “É preciso rejeitar decididamente ingerências e imposições vindas da União Europeia lesivas do interesse nacional”, acrescentou Rita Rato, do PCP, que falou mesmo em “chantagem”. Até o PS, pela voz de João Torres, de insurgiu contra “esta Europa rendida”.
Nunca um “arco da governação” se referiu assim à União Europeia, ainda menos numa data como o 25 de Abril. Pelo que mesmo considerando a peculiaridade da situação que vivemos, há aqui uma novidade que não deixa de mostrar de onde sopram os ventos. Por isso mesmo vale a pena acrescentar à reflexão alguns textos que, mesmo desligados das comemorações, merecem referência. Começando agora por um texto de Paulo Rangel, no Público: A grande contradição da esquerda soberanista. O seu ponto de partida é que “Quem ouvir os dirigentes do Bloco de Esquerda e do PCP a falar da intervenção das instituições europeias no quadro do processo orçamental – em particular de países da moeda única –, julga estar diante de um processo de ocupação ou de colonização”. O seu ponto de chegada – e Rangel é um assumido federalista – é que “o semestre europeu – tal como está configurado – obriga os Estados que queiram preservar ao máximo as prerrogativas dos seus parlamentos, a mudarem as regras de elaboração do orçamento. Se o Parlamento deve – e creio que deve – condicionar as grandes opções do orçamento, então ele tem de fazer um debate e uma votação antes de a primeira versão de esboço ser entregue a Bruxelas e terá eventualmente de ter uma sede de intervenção antes das decisões intercalares.”
Mas as decorrências de, com a integração na moeda única, o nosso Estado ter abdicado da sua política monetária e passar a partilhar “soberania” é apenas uma parte do problema. O mal estar europeu não é exclusivo de Portugal e talvez possamos olhar para ele pensando num quadro mais vasto: o de que a Europa está entre os derrotados da globalização. Há um texto curioso sobre este tema no Diário de Notícias – mesmo podendo ter muitos pontos controversos: a coluna de Wolfgang Münchau A vingança dos perdedores da globalização. Apesar de se focar muito no tratado transatlântico de comércio, e fazê-lo com uma óptica negativa, propondo que se parem as reformas, há nesta coluna um diagnóstico que é bom ter em consideração: “O fracasso da globalização no Ocidente deve-se à incapacidade das democracias para lidarem com os choques económicos que inevitavelmente resultam da globalização, como a estagnação dos rendimentos médios reais por duas décadas.” (…) “Em grande parte da Europa, a combinação da globalização e dos avanços tecnológicos destruiu a antiga classe trabalhadora e prejudica agora os empregos qualificados da classe média baixa. “ (…) “O meu diagnóstico é que a globalização tem sobrecarregado política e tecnicamente as sociedades ocidentais. Não há nenhuma maneira de o podermos esconder, nem devemos fazê-lo.”
Sabemos como os populistas têm vindo a explorar o descontentamento popular com a frustração das expectativas dos eleitorados, pelo que julgo vir a propósito recuperar um texto já com quase dois anos de um Nobel da Economia, Robert J. Shiller, escrito para o Project Syndicate: Parallels to 1937. O ponto que aqui me chamou a atenção foi o seguinte: “In his magnum opus The Moral Consequences of Economic Growth, Benjamin M. Friedman showed many examples of declining economic growth giving rise – with variable and sometimes long lags – to intolerance, aggressive nationalism, and war. He concluded that, “The value of a rising standard of living lies not just in the concrete improvements it brings to how individuals live but in how it shapes the social, political, and ultimately the moral character of a people.” Some will doubt the importance of economic growth. Maybe, many say, we are too ambitious and ought to enjoy a higher quality of life with more leisure. Maybe they are right.”
Eis um ponto que abriria para muitas outras reflexões, pois como já muitas vezes se referiu no Macroscópio vivemos tempos de ausência de crescimento económico, ou de crescimento muito moderado, insuficiente para corresponder às expectativas criadas nas últimas gerações. A zanga de muitos eleitorados parece ter vindo para ficar, até nas democracias mais antigas e sólidas, como parece estar a suceder nos Estados.
E agora, um pouco de Brasil:
Mas como isso são conversas de outro rosário, quero despedir-me com três sugestões finais a propósito de um país, o Brasil, onde a situação política já começou mesmo a descarrilar. São elas:
- Brazil’s Giant Problem é um ensaio de John Lyons e David Luhnow no Wall Street Journal que tem a grande virtude de enquadrar os actuais acontecimentos na história do Brasil, recuando até à presença portuguesa. Eis um bom aperitivo desse texto: “Founded by Portuguese monarchs who moved their court to Rio de Janeiro in 1808, Brazil has experienced almost every conceivable sort of rule over the past two centuries. Its leaders have run the gamut from emperors and dictators to democrats and former Marxists. Regardless of their politics, however, almost all of them have shared a commitment to the Leviathan state as the engine of progress. “The problem is, from time immemorial, Brazil’s political leaders only see one way forward, the growth of the state,” said Fernando Henrique Cardoso, a former leftist intellectual who sought to reduce the size of Brazil’s government while president from 1995 to 2002. “But you need another springboard for progress, that doesn’t exclude the state but that accepts markets. This just doesn’t sink in in Brazil.”
- Os golpes de Dilma, Lula e Sócrates é uma opinião de Eva Gaspar no Jornal de Negócios que tem a virtude de explicar com clareza as faltas de Dilma, mostrando como a argumentação em torno de um “golpe” e de umimpeachment mal sustentado não fazem sentido. Por exemplo: “Trazendo mais perto e simplificando, imagine um primeiro-ministro português financiar a sua acção governativa em ano eleitoral com um empréstimo de mil milhões de euros da CGD e ninguém saber disso porque a operação pura e simplesmente não tinha reflexo contabilístico. Isto não é grave, é gravíssimo.”
- Finalmente, Não é golpe. Dilma perdeu a maioria, de João Marques de Almeida aqui no Observador segue uma linha semelhante, mas com uma argumentação mais política: “Dilma está quase a perder o seu mandato porque não foi capaz de manter a maioria parlamentar. Não é a oposição que está a liderar o processo de impugnação. São os antigos aliados do PT. Aliás a tentativa de Lula para se tornar ministro foi o reconhecimento da incapacidade política de Dilma para manter uma maioria no Congresso. E o fracasso de Lula para reconstruir a maioria mostra o isolamento do PT e a queda do seu líder histórico.”
E por hoje fico-me por aqui. Tenham bom descanso, reencontramo-nos amanhã.
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