Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião
A ideia de que Portugal é um "país adiado desde há séculos" é muito recorrente em análises de estudiosos, de vários campos do saber, sobre o nosso percurso histórico. No meu modesto entendimento há uma dimensão forte de verdade naquela afirmação, mas houve períodos extraordinários que a contrariaram. O 25 de Abril, com tudo o que se realizou nas décadas seguintes, constituiu, sem dúvida, um período de grande avanço social, cultural, económico e político que nos catapultou para patamares elevados de desenvolvimento em diversas áreas.
Os dois pilares fundamentais dessa transformação foram: i) o pleno experienciar de uma democracia intensiva propiciado pela vivência responsável da liberdade - durante tanto tempo negada e parecendo agora que não voltaria a ser alienada -, pela participação dos cidadãos na organização e ação dos partidos políticos, dos sindicatos, do poder local, de um amplo conjunto de movimentos e organizações, inclusive patronais; ii) a rápida, laboriosa e profundamente democrática gestação de uma Constituição da República (CR), marcadamente progressista e moderna, que passou a ser um forte ancoradouro para travar apetites de retrocesso, para a gestão de conflitos e, acima de tudo, para urdir convergências e compromissos com que se fez, nomeadamente, a integração de todos na sociedade, a conquista de direitos sociais fundamentais, universais e solidários, da dignidade no trabalho, e de novos horizontes para os campos da igualdade.
O processo transformador do 25 de Abril foi obra do povo, num contexto concreto onde quase tudo estava por fazer. E fez-se. Os seus ideais e objetivos, e a solidez da Lei Fundamental que os consagra são futuro seguro.
São muitos os desafios a vencer para amanhã não continuarmos a ser "país adiado". Deixo em relevo quatro que me parecem cruciais:
1. O combate sem tréguas às desigualdades. A sua redução é fator decisivo para evitar a sucessão de crises. A sociedade portuguesa tem de ser menos condescendente com a pobreza e a miséria, com a corrupção, com a injustiça na distribuição da riqueza. O bafiento assistencialismo caritativo, que ressurgiu em força com o Governo PSD/CDS, não pode confundir-se com a verdadeira caridade e muito menos com a solidariedade inerente a um Estado moderno e saudavelmente laico. Precisamos de maturidade cívica e de cidadania social.
2. As reformas da estrutura e atividades económicas são um imperativo. A CR define espaços para as diversas formas de organização económica. A sua revitalização e modernização, feita de forma participada e responsabilizadora, é contributo necessário para um modelo de desenvolvimento com futuro. O que não podemos é continuar a chamar modernização da economia, ou até do capitalismo português, a processos de mera financeirização, como tem acontecido com a água, os transportes, a Segurança Social, as parcerias público-privadas e outros.
3. É preciso estancar a mercadorização do trabalho e das relações sociais que está a minar a estrutura da sociedade e as instituições, desde a família à escola. O trabalho tem dimensões éticas e dignidade que não entram no processo de troca neoliberal que hoje impera nas relações laborais. A família exige condições para partilha e comunhão entre os seus membros, inatingíveis no império do lucro e do individualismo. A escola e os espaços de investigação têm campos de trabalho sem qualquer vocação para o lucro. A empresa também é "comunidade", por isso reclama equilíbrios entre o individual e o coletivo. Este não pode ser destroçado. É mesmo preciso defender o salário e os direitos do comum dos trabalhadores com toda a força!
4. Travar a emigração e reverter o saldo demográfico deve ser um objetivo de mobilização nacional. Ele só será alcançável com criação de emprego no quadro de uma matriz de desenvolvimento qualitativa, com melhoria dos salários, com apostas estratégicas na investigação, com eliminação de instabilidades e inseguranças.
O 25 de Abril mostrou que é sempre possível construir rumos novos e com futuro, mesmo quando é negro o cenário em que nos encontramos.
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