segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Macroscópio - O dia em que os taxistas procuraram bloquear o futuro (e não só o aeroporto)

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
À hora a que escrevo esta newsletter os líderes dos taxistas acabaram de sair do Ministério do Ambiente sem acordo e muitas centenas de táxis (mas bem menos do que os previstos) continuam a bloquear a zona do aeroporto – esta é, de resto, uma realidade que o Observador está a seguir desde as 7h30 da manhã emliveblog, com actualizações em directo asseguradas pelos nossos jornalistas em vários pontos de Lisboa. Prometem lá continuar por tempo indeterminado, sendo que desde que o protesto se iniciou que o comportamento daqueles profissionais só contribuiu para a degradação da sua imagem, a qual já não era muito lisonjeira (sobretudo se pensarmos nos que preferem trabalhar precisamente naquela zona, o aeroporto de Lisboa). Em causa está a regulamentação da actividade de empresas como a Uber e a Cabify que, ao entrarem no mercado, começaram a mudar os hábitos de quem necessita de um serviço de transporte. A disputa está longe de ser apenas portuguesa e de se referir apenas a empresas de transporte, pois a chamada “economia de partilha” apoiada em aplicações móveis está longe de se limitar aos serviços de transporte, englobando também o alojamento local, por exemplo. Julgo por isso que vale a pena sistematizar a informação disponível e, ao mesmo tempo, alargar um pouco os horizontes e ver o que se passa noutros países e com outras empresas e outras polémicas.
 
Para perceber o que está em causa nos protestos de hoje recomendo a leitura do Explicador que a Ana Pimentel preparou para o Observador, 25 respostas para entender a fúria dos taxistas. São respostas a outras tantas questões, sendo as 20 primeiras sobre o estado da discussão e as restantes cinco sobre o protesto desta segunda-feira. Deixo-vos a lista das mais intemporais, as 20 iniciais (cada um dos links conduz-vos directamente à resposta):Como começou a guerra entre os taxistas e a Uber?Mas a Uber continuou a funcionar. Porquê?O que decidiu o Tribunal da Relação?Mas o que queriam os taxistas?E o que argumentou a Uber?A Uber e a Cabify funcionam como os táxis?Mas também existem apps para táxis. São equivalentes às da Uber e Cabify?Porque é que o Governo avançou com uma regulamentação destas plataformas?Como é que o Governo quer regulamentar plataformas como a Uber e a Cabify?;Taxistas e motoristas vão ter formação igual?Vai ser possível apanhar um Uber ou um Cabify tal como se apanha um táxi?E as condições de acesso à atividade vão ser iguais?Mas se os carros são descaracterizados, vou conseguir identificá-los nas estradas?E os carros terão de cumprir as mesmas exigências?;As empresas parceiras da Uber e Cabify também vão ter benefícios fiscais?A Uber e a Cabify passam a ser empresas de transporte?Como reagiram os taxistas a esta regulamentação?;O que (ainda) querem agora os taxistas?Mas os taxistas estão dispostos a negociar com o Governo?e, por fimO que é que a Comissão Europeia diz disto tudo?
 
Este foi o terceiro Explicador sobre este tema publicado no Observador, sendo que alguma dúvida que ainda reste pode ser esclarecida em A "revolta" dos táxis contra a Uber em 12 passos(Abril 2016) ou mesmo em Que guerra é esta entre os taxistas e a Uber? (Setembro 2015). Ontem o Observador tinha também preparado O mapa para (tentar) circular em Lisboa (até ao momento está a ser mais fácil do que se previa, pois os taxistas acabaram por não ultrapassar a Rotunda do Relógio, junto ao aeroporto) e há ainda mais informação na nossa tag Uber.
 
Já agora recordo um texto mais antigo de Ana Pimentel que, ainda não tinha estalado toda esta controvérsia, já tinha tratado de fazer a prova dos nove ao serviço da Uber em Testámos a aplicação da Uber e comparámo-la com dois serviços de táxi. E, quando se começaram a trocar argumentos, entrevistou o director-geral da Uber Portugal, que há seis meses, no Especial “Se o Governo privilegiar o consumidor, vai legislar a operação” da Uber, defendeu a forma de trabalhar da empresa, até do ponto de vista dos impostos que paga: "A partir do momento em que todos os pagamentos dão lugar à emissão de fatura, são automáticos e eletrónicos e, portanto, rastreáveis, as mais-valias que daí são geradas para o Estado são muito mais significativas do que uma opção em que este controlo é menos claro e menos transparente".
 
No que respeita a textos de análise e opinião, dois dos nossos colunistas – Alexandre Homem Cristo e Paulo Ferreira – já escreveram por mais de uma vez sobre esta polémica, valendo a pena recordar os seus argumentos. O texto mais recente de Alexandre Homem Cristo é mesmo de hoje, Os taxistas são os seus próprios inimigos. Nele se defende a ideia de que “Os taxistas [protestam] em nome de uma reivindicação impossível: a proibição da Uber e do Cabify – porque, efectivamente, é essa a consequência da implementação das suas reclamações. Isto é, travar a inovação, o progresso e o funcionamento do mercado, exigindo ao Estado a perpetuação artificial de um monopólio. É uma posição, a todos os níveis, indefensável.” Anteriormente o mesmo colunista defendera, em 1500€ por taxista, que “É inaceitável que seja o dinheiro dos contribuintes a pagar a modernização do sector dos táxis. Sobretudo quando este teve meios e tempo para se modernizar mas optou sempre por não o fazer.”
 
Já Paulo Ferreira reflectiu na sua mais recente crónica, De Florêncio de Almeida a Pittsburgh, sobre o significado das declarações no líder da ANTRAL numa altura em que o esforço de regulamentação em Portugal coincide com o arranque de novas inovações já em teste nos Estados Unidos: “Claro que as opções não são binárias nem a preto ou branco. Mas é uma boa indicação saber se a nossa bússola aponta para Florêncio de Ameida, o líder da Antral que promete “porrada”, ou para as autoridades de Pittsburgh [onde a UBER está a utilizar os primeiros automóveis sem condutor]. Dos sinais que agora dermos em relação à inovação resultará uma parte importante da nossa prosperidade futura. Ou da falta dela.” O mesmo colunista já considerara, em anterior crónica, que estamos emTempos fantásticos para estar vivo, tempos em que tudo muda muito depressa – “Daqui por algum tempo vamos rir-nos também destes dias: “lembram-se de como os taxistas bloquearam as cidades contra aquela aplicação básica que servia para chamar um carro que só andava a gasóleo e que tinha que ser conduzido por uma pessoa? Como é que se chamava mesmo esse serviço?
 
Finalmente, antes de passar a algumas referências internacionais, destaco ainda os argumentos de três dos principais protagonistas, hoje reunidos no Público:

 

Uma boa forma de saltar para lá das nossas fronteiras é chamar a atenção para que estamos apenas perante o início de muitas mudanças. E faço-o citando Bill Gates que, numa sessão de perguntas e respostas promovida pelo Financial Times, Robots, Uber and the role of government, defendeu que “The real Rubicon there is the self-driving car. Uber is just a reorganisation of the labour pool into a more dynamic form. The serious revolution is when that capability is machine-based.
 
Ups... Contudo é isto mesmo que começa a ser testado em Pittsburgh, como referi atrás, ao mesmo tempo que empresas como a Uber já hoje são protagonistas de uma mudança profunda na organização do trabalho. É aquilo que na gíria se define como “gig economy” (“A gig economy is an environment in which temporary positions are common and organizations contract with independent workers for short-term engagements”, segundo a TechTarget) e que, por coincidência, foi objecto de um estudo da McKinsey hoje divulgado tanto no Financial Times como no Wall Street Journal.
  • No Financial Times, em World’s ‘gig economy’ larger than thought, nota-se que “While rapidly growing online work platforms like Uber and Deliveroo have attracted much of the attention, the McKinsey study suggests these remain a tiny fraction of the overall phenomenon of independent work. Just 6 per cent of the independent workers in its survey were using online work platforms like these.”
  • Já no Wall Street Journal, em The Two Gig Economies: One Happy and One Miserable refere-se que “A new study from McKinsey finds voluntary independent workers are happier than those in traditional jobs”, o que se depois se desenvolve de forma bastante interessante e desafiante: “There are certainly reluctant independent contractors who feel forced into it and are a very vocal segment, but our research consistently for six years has shown the satisfaction rate of independent contractors is really high,” said Gene Zaino, chief executive of MBO. “A lot of people who are doing this kind of work don’t want to go back to the traditional 9 to 5.”
 
São de facto muitas mudanças, mudanças que ultrapassam em muito o simples domínio da adopção de novas tecnologias e que não mudam apenas o nosso local de trabalho ou os nossos hábitos de consumo. Para a revista francesa Le Point, estão mesmo a mudar a economia de marcado tal como a conhecemos. Em La revolution du capitalisme defende-se que “L'uber-économie fait exploser tous les repères iles grands groupes, la fiscalité, le travail...”, e que isso pode alterar igualmente a forma como nos relacionamos: “Dans un univers CoCo, sur une planète ubérisée, tout est noté. Après avoir pris un VTC, dîné chez un particulier... le producteur et le consommateur s'attribuent réciproquement des points. Cinq, vous avez été excellent. Zéro, affreux. «On se dirige vers une société américaine, où on réfléchira à deux fois avant de parler, s'amuse un proche du gouvernement. Cela dit, peut-être que les Françai sarrêteront de râler. » Waouh, ce serait le plus incroyable des chamboulements!” Isto para além de muitas outras mudanças, porventura menos “francesas”, e que são abordadas ao longo deste dossier relativamente longo mas muito informativo.
 
Continuando a dar-vos uma perspectiva mais ampla e mais plural do que estamos a discutir, remoto-vos agora para The unforeseen dangers of Uber and Airbnb, a recensão da Spectator a um livro controverso mas com muitos argumentos que fazem pensar:What’s Yours Is Mine: Against the Sharing Economy, de Tom Slee, publicado pela OR Books. Nessa apreciação à obra de um insiderda indústria de software nota-se que, “To be fair, companies like Airbnb offer an appealingly human-scale version of commerce, where you can rate, and often meet, the person with whom you’re doing business. But these companies also mediate those transactions, and they push for deregulation. The truly (counter?) revolutionary thing about the sharing economy — which Slee understands better than most — is how it extends the free market into areas of our lives where it previously couldn’t go.” Só que, acrescenta-se mais adiante, “Most of us realise that, for better or worse, sharing economy companies are extending the market. But we also have to confront the ways they’re distorting it.”
 
Algo parece certo: o mundo muda, a nossa forma de viver também, o negócio tradicional dos taxistas está a ser desafiado, há muitos desafios à nossa frente. Algo, porém, parece certo: o futuro não se bloqueia mesmo bloqueando a Rotunda do Aeroporto.
 
Espero tê-los ajudado a esclarecerem dúvidas e a olharem para outras perspectivas, pois não se táxis se faz o presente e deuberização se faz o futuro. Tenham bom descanso e melhores leituras. 

 
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