ANDRÉ CARRILHO |
Almoço com António Ponces de Carvalho
Não
conheceu o avô, mas fala dele e da sua influência no ensino
português como se com o próprio João de Deus tivesse cantado as
sílabas coloridas da Cartilha, as mesmas que alguns críticos do
sistema, professores da Escola Normal de Lisboa, tentaram fazer crer
que "causavam cegueira às criancinhas", ri-se.
"Quando
fiz o meu mestrado, consultei várias cartas antigas e encontrei
coisas extraordinárias. Numa delas, a junta de educação reclamava
que as Escolas João de Deus não tinham os mais elementares símbolos
da nação portuguesa - que eram as fotografias do presidente da
República e de Salazar! Já nos anos 1960, acusavam--nos de cometer
o crime de ensinar as crianças - porque começamos aos 3 anos a dar
lições, ao ritmo da criança, mas na altura, por má interpretação
do Piaget, dizia-se que só se devia começar a ler aos 6. O
pré-escolar era só para brincar. E numa ata que também descobri,
criticava-se a educação de infância porque isso cabia às mães; e
ficou-me gravada na memória a justificação: "As famílias de
reta consciência têm repugnância em entregar a educação dos seus
filhos a outros." Curiosamente, apesar do discurso oficial ser
esse, os filhos dos ministros andavam todos lá."
Hoje
com 56 anos, pai de duas raparigas e à frente de 55 centros
educativos, conta-me que o método de João de Deus, em cujas escolas
todos os alunos do 6.º ano e 97% dos do 4.º tiveram positiva a
Português, é ainda considerado um dos melhores do mundo - "tem
todos os ingredientes que os pedagogos e autores norte-americanos e
ingleses defendem" - e que a Cartilha se mantém
"atualizadíssima", tendo recentemente sido editada
respeitando o novo Acordo Ortográfico. "E mesmo antigamente já
era um exemplo: foi traduzida para francês, alemão, até tenho uma
segunda edição em mandarim, de 1927. O meu avô teve muitas ideias
extraordinárias. Foi ministro da Instrução duas vezes, foi ele
quem criou o Instituto Superior Técnico e o curso de educador de
infância, em 1920 - ao ensino oficial só chegou em fevereiro de
1973 ; e foi João de Deus o precursor do ensino preparatório,
implementado décadas mais tarde por Veiga Simão."
A
este antigo ministro, reconhece o crédito de ter sido o responsável
pela única reforma educativa do país. "Há muitos anos que há
este hábito: acaba-se com tudo só porque alguém acha que sim, cada
ministro que entra tira e põe sem qualquer continuidade. Cada
ministro que entra quer fazer uma reforma educativa. E mesmo que faça
apenas pequenas mexidas, como a educação é um sistema de vasos
comunicantes, cada vez que se mexe em alguma coisa desestabiliza-se
tudo. Por exemplo, a terminologia está constantemente a ser alterada
e os pobres dos pais nem sabem como ajudar os filhos. Um professor
estuda cinco anos e quando vai ensinar já nada é como aprendeu.
Isto é dramático." Recorda que, quando António Guterres era
primeiro-ministro, teve "a ideia fantástica de fazer um pacto
educativo" que permitisse trazer alguma estabilidade ao ensino,
mas depois nada aconteceu. "E era fundamental ter medidas a
médio e longo prazo."
Enquanto
vamos esvaziando o saco de pão fresco e focaccia, alternadamente
barrados com a saborosa manteiga de trufas e a pasta de azeitonas
pretas e alcaparras, o vinho a ajudar a tornar tudo mais saboroso,
vai desfiando as muitas mágoas que o sistema educativo lhe tem dado.
"Contrariamente ao discurso oficial de dar mais liberdade ao
ensino, a realidade é que cada vez temos menos liberdade: há mais
regulamentações e o que se quer é que toda a gente faça tudo
igual. E isso é mau, sobretudo na educação."
Para
António Ponces de Carvalho, era muito mais útil que se promovesse
um esquema em que os projetos das diferentes escolas fossem ao
encontro das necessidades educativas do local onde estão integradas.
"Por exemplo, Viseu vai receber um centro da IBM. Devia ser
possível criar ali uma escola camarária em que a educação, logo
desde o jardim de infância, seja mais virada para a tecnologia, de
forma a que a cidade se tornasse uma espécie de Silicon Valley.
Seguindo as grandes linhas de orientação nacional, claro, mas
fazendo projeto completamente diferente. Mas não se pode."
Num
Terreiro do Paço iluminado pelo sol de outono que convida os
turistas a tirar fotos com o Tejo, a estátua de D. José ou o Arco
da Rua Augusta a contrastar com o azul de fundo, conta-me que o pior
do sistema atual é o poder que os técnicos e inspetores têm.
"Antes sofríamos porque as leis eram passíveis de várias
interpretações, mas sempre podíamos ir às chefias e tínhamos um
árbitro imparcial. Agora o parecer do técnico é sacrossanto e
ninguém se atreve a contrariá-lo. E há situações trágicas."
Garante que certa vez teve "um imbróglio de sete meses"
com uma arquiteta que não o deixava abrir um jardim-escola até as
instalações estarem completas com um urinol para cada sete
crianças. Tratava-se de um berçário para bebés de 4 meses."Alguém
pegou no relatório dos projetos para miúdos de 3 anos e aplicou
ali!"
Noutra
ocasião, uma responsável da inspeção de saúde queria proibir que
fraldas e comida passassem no mesmo corredor. "Só nos largou ao
fim de oito meses de discussão, quando chegámos a um acordo: marcar
no chão dois corredores com pintas a vermelho para onde passava a
comida e a azul para as fraldas. Estamos nas mãos de técnicos que
bloqueiam projetos capazes de criar riqueza e emprego", lamenta.
Aproveito
a chegada do polvo, absolutamente recomendável, e do bife - "deixe
lá a salada e a curgete e traga antes mais gratin de batata",
pediu, sem sucesso - para saber se, em tantos anos ligado ao ensino,
sente que as coisas pioraram. Não hesita: "Muito." E não
é responsabilidade exclusiva do atual ministro - a quem reconhece o
mérito de não estar refém dos sindicatos: "Aliás, nunca os
vi tão sossegados...", ironiza. "Sentimos essa diferença
nos últimos anos; começou com o anterior governo e cada vez
sentimos mais" -, ainda que discorde de algumas das "alterações
sistemáticas" que Tiago Brandão Rodrigues tem promovido. "Por
exemplo, a alteração da prova do 4.º para o 5.º ano não tem
nexo. Em muitas escolas nem sequer há contacto entre os ciclos, por
isso os relatórios nunca vão chegar a quem devem, de forma a aferir
onde é preciso investir para melhorar."
Enquanto
faz render o bife à espera do reforço de gratin de batata - que há
de chegar demasiado tarde -, explica que parece haver um medo
enraizado de avaliar. "Já nos disseram até que é um crime
pedagógico sublinhar os erros ortográficos a vermelho, porque
traumatiza as crianças..."
Licenciado
em Física, com diplomas de Diretor e de Professor Primário
Particular, Estudos Avançados na área de Didática e Organização
Escolar (tirado em Espanha) e outro de Estudos Aprofundados (em
França, tal como o mestrado em Ciências da Educação), além de
ter o grau de doutor em Educação Infantil e Familiar, o currículo
de António Ponces de Carvalho é extenso em formação e prática.
Talvez por isso mesmo seja um defensor da escola pública mas
considere que se devia exigir que ela atingisse padrões de
verdadeira qualidade. E defende a avaliação como fator essencial.
Não comparando o incomparável - uma escola num bairro problemático
nunca terá os mesmos resultados do que uma cujos alunos tenham boas
condições socioeconómicas -, mas medindo o ganho educativo dos
alunos de cada escola num ano letivo ou ciclo educativo. E porque é
que isso não é feito? "Porque dá trabalho, mexe com muitos
interesses e vai obrigar os professores a trabalhar. Eu estive no
público muitos anos e sei que um professor do secundário
formalmente tem 25 horas letivas e dez não letivas. Nas letivas tem
reduções, por isso a maioria só tem realmente 14 horas. Mas como
há uns anos se alterou essa formulação de hora para tempo letivo -
e cada um tem 45 e não 60 minutos -, na verdade o professor trabalha
menos de dez horas. Estamos a brincar! Há professores que trabalham
muito, mas porque estão empenhados, porque são extraordinários."
De
resto, António Ponces de Carvalho diz que "só tem medo de ser
avaliado quem é mau e não quer melhorar, porque é para isso que
serve a avaliação, para detetar fragilidades e corrigi-las."
Sem ela, defende, não é possível assegurar uma melhor educação,
que é fundamental para o país garantir um serviço público de
qualidade, "independentemente de quem é o proprietário".
Fala numa espécie de parceria público-privada na educação?
"Claro, fazia sentido. Não queremos aqui o sistema soviético
ou cubano, mas a melhor escola que já visitei foi na China. O Estado
pagou terreno, em Xangai, construiu-a, mas a gestão é privadíssima.
E todos os anos é avaliada. O ensino é bilingue desde o berçário
e o custo divide-se entre os pais e o Estado, que também subsidia a
escola. O ministro explicou-me que o objetivo é dar a melhor
educação possível aos alunos, independentemente de ser pública ou
privada. Os nossos comunistas deviam lá ir aprender. Nós temos
escolas públicas excelentes e outras de má qualidade, como há
privadas excelentes e outras más. O que digo é que se feche as que
não prestam, sejam públicas ou privadas. Tenho dito aos sindicatos:
façam uma escola e apliquem aquilo que dizem e vamos ver que
resultados têm. A nossa educação é medíocre, é um sistema que
faz emergir os muito bons, pessoas que, apenas graças aos seus
esforços e empenho - porque o sistema não garante grande qualidade
-, se tornam brilhantes."
À
maioria dos miúdos, diz, apenas se exige que decorem conteúdos e é
por isso que em Pisa os nossos alunos tem resultados razoáveis na
aplicação direta, mas quando é preciso inferir ou aplicar
conhecimentos em casos distintos a coisa muda de figura. "De que
serve decorar as características físicas e psicológicas de Carlos
da Maia, em Os Maias, se depois não sabem traçar o perfil da
Joaninha de Viagens na Minha Terra?"
Já
vamos a caminho da sobremesa - para mim, só café - mas ainda há
tempo para voltar ao problema que mais tempo rouba a António Ponces
de Carvalho: "A arbitrariedade da ação dos técnicos que
condiciona tudo." "Por vezes temos a sensação de que os
inspetores não gostam do nosso método e, como está aberta a caça
a tudo o que seja privado, atacam-nos. Esquecem-se de que somos uma
instituição particular de solidariedade social, que temos muitas
crianças que não pagam nada, que oferecemos uma refeição a meio
da manhã, o almoço e o lanche e que grandes vultos tiveram educação
graças a nós."
Já
com os cafés despachados, recorda com orgulho que das escolas que
dirige têm saído bons estudantes, convidados todos os anos para
participar em concursos nacionais. "A melhor turma do Liceu
Pedro Nunes, cujos alunos estão todos no quadro de honra, vem toda
do João de Deus. Fico muito contente com isso!" Também na
formação de educadores as escolas que dirige têm dado provas.
"Ainda agora esteve cá uma professora italiana que visitou as
nossas escolas e ficou tão espantada com o que encontrou que já
assinámos um protocolo para darmos formação na Universidade de
Roma III." Os professores da escola portuguesa foram escolhidos
para ensinar pelo método que João de Deus criou em 1920.
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