Bem-vindo à Psicometria — o método usado por empresas e políticos para traçar em detalhes seu perfil, a partir de “likes” no Facebook. Como ele elegeu Trump e ameaça reduzir as eleições a jogos de marketing
Hannes Grassegger e Mikael Krogerus – Outas Palavras - Tradução: Inês Castilho
No dia 9 de novembro, por volta das 8h30, Michal Kosinski acordou no Hotel Sunnehus em Zurique. O pesquisador de 34 anos estava ali para dar uma palestra no Instituto Federal Suíço de Tecnologia (ETH, na sigla em inglês) sobre os perigos do Big Data e da revolução digital. Kosinski fala sobre esse assunto regularmente, em todo o mundo. Ele é um especialista em psicometria, um sub-ramo da psicologia baseado em dados. Quando ligou a TV naquela manhã, contrariamente às previsões de todos os principais estatísticos, viu que a bomba explodira: Donald J. Trump fora eleito presidente dos Estados Unidos.
Por um longo período, Kosinski assistiu às celebrações da vitória de Trump e os resultados de cada estado. Ele tinha um pressentimento de que o resultado da eleição poderia ter alguma coisa a ver com sua pesquisa. Finalmente, respirou fundo e desligou a TV.
No mesmo dia, uma empresa britânica com sede em Londres, então pouco conhecida, divulgou um comunicado á imprensa: “Estamos muito felizes que nossa abordagem revolucionária de comunicação dirigida por dados tenha desempenhado papel tão essencial na extraordinária vitória do presidente eleito Trump”, teria dito Alexander James Ashburner Nix. Nix é britânico, tem 41 anos, e é CEO da Cambridge Analytica. Ele está sempre imaculadamente apresentável em ternos feitos sob medida e óculos de grife, com seu cabelo loiro ondulado penteado para trás. Sua empresa não era apenas parte integrante da campanha online de Trump, mas também da campanha britânica pelo Brexit.
Desses três atores – o reflexivo Kosinski, o Nix cuidadosamente arrumado e o sorridente Trump – um deles possibilitou a revolução digital, outro a executou e um terceiro beneficiou-se dela.
Qual o perigo do Big Data?
Qualquer pessoa que não tenha passado os últimos cinco anos vivendo em outro planeta terá alguma familiaridade com a expressão Big Data. Big Data significa, em essência, que tudo o que fazemos, seja on ou offline, deixa traços digitais. Cada compra que fazemos com nossos cartões, cada busca que fazemos no Google, cada movimento que fazemos com nosso celular no bolso, cada “like” é armazenado. Especialmente cada “curtida”. Por muito tempo, não estava inteiramente claro o uso que se poderia fazer desses dados – com exceção, talvez, que podemos encontrar anúncios de remédios para pressão alta assim que “gugamos” a busca “reduzir pressão arterial”.
Em 9 de novembro, ficou claro que talvez seja possível muito mais. A empresa por trás da campanha online de Trump – a mesma que havia trabalhado para a “Leave.EU” nas primeiras etapas de sua campanha “Brexit” – era uma empresa de Big Data: Cambridge Analytica.
Para entender o resultado da eleição – e como a comunicação política poderá trabalhar no futuro – precisamos começar com um estranho incidente na Universidade de Cambridge em 2014, no Centro de Psicométrica onde trabalha Kosinski.
A psicometria, às vezes também chamada de psicografia, tem como foco medir os traços psicológicos, como a personalidade. Na década de 1980, duas equipes de psicólogos desenvolveram um modelo que buscava avaliar os seres humanos com base em cinco traços de personalidade, conhecidos como os “Cinco Grandes”. São eles: abertura (o quão aberto você está para novas experiências?), conscenciosidade (quão perfeccionista você é?), extroversão (quão sociável?), afabilidade (quão atencioso e cooperativo?) e neuroticidade (você se aborrece facilmente?). Com base nessas dimensões – conhecidas também como OCEAN (acrônimo para essas características, em inglês) – podemos fazer uma avaliação relativamente preciso do tipo de pessoa à nossa frente. Isso inclui suas necessidades e medos, e como ela tende a se comportar. Os “Cinco Grandes” tornaram-se a técnica padrão da psicometria. Mas, por muito tempo, o problema dessa abordagem era a coleta de dados, porque ela envolvia o preenchimento de um questionário complicado e altamente pessoal. Então surgiu a Internet. E o Facebook. E Kosinski.
Michal Kosinski era um estudante em Varsóvia quando sua vida tomou um rumo diferente, em 2008. Ele foi aceito pela Universidade de Cambridge para fazer seu PhD no Centro de Psicometria, uma das mais antigas instituições desse tipo em todo o mundo. Kosinski uniu-se ao colega de estudos David Stillwell (hoje palestrante na Judge Business School na Universidade de Cambridge). Cerca de um ano antes, Stillwell havia lançado um pequeno aplicativo para Facebook nos tempos em que a plataforma ainda não havia ganhado a dimensão que tem hoje. Seu aplicativo MyPersonality possibilitou aos usuários preencher diversos questionários psicométricos, incluindo um punhado de questões psicológicas do questionário Big Five de personalidade (“Entro em pânico fácil”, “Contradigo os outros”). Com base na avaliação, os usuários recebiam um “pefil de personalidade” – os valores Big Five individuais – e podiam optar por compartilhar seus dados de perfil do Facebook com os pesquisadores.
Kosinski esperava que algumas dezenas de amigos e colegas preenchessem o questionários. Mas centenas, milhares e depois milhões de pessoas revelaram suas mais profundas convicções. De repente, os dois candidatos a doutor possuíam o maior conjunto de dados com pontuações psicométricas abrangentes com perfis do Facebook jamais coletados.
A abordagem que Kosinski e seus colegas desenvolveram nos anos seguintes era na verdade bem simples. Primeiro, eles ofereceram a voluntários questionários em formato de um quiz online. A partir das respostas, os psicólogos calcularam os valores pessoais dos Big Five dos voluntários. A equipe de Kosinski comparou então os resultados com todos os tipos de outros dados online dos voluntários: o que eles “curtiram”, compartilharam ou postaram no Facebook, ou qual gênero, idade, local de residência eles especificaram, por exemplo. Isso permitiu que os pesquisadores ligassem os pontos e fizessem correlações.
Deduções excepcionalmente confiáveis podiam ser projetadas a partir de simples ações online. Por exemplo, homens que “curtiam” a marca de cosméticos MAC tinham um pouco mais de probabilidades de ser gays; um dos melhores indicadores de heterossexualidade era “curtir” Wu-Tang Clan. Seguidores de Lady Gaga eram muito provavelmente extrovertidos, enquanto aqueles que “curtiam” filosofia tendiam a ser introvertidos. Embora cada uma dessas informações seja muito fraca para produzir uma previsão confiável, quando dezenas, centenas ou milhares de dados individuais são combinados, as previsões resultantes tornam-se realmente precisas.
Kosinski e sua equipe refinaram incansavelmente seus modelos. Em 2012, Kosinski provou que, com base numa média de 68 “curtidas” no Facebook, era possível descobrir a cor da pela de um usuário (com 95% de probabilidade de acerto), sua orientação sexual (88%) e sua filiação no partido Democrata ou Republicano (85%). Mas não parou por aí. Inteligência, filiação religiosa, assim como uso de álcool, fumo ou droga podiam todos ser determinados. A partir dos dados era possível deduzir se os pais de alguém eram divorciados.
A precisão com que era possível prever as respostas de um sujeito era exemplo da força de seu modelo. Kosinski continuou a trabalhar nos modelos incessantemente. Logo ele tornou-se capaz de avaliar melhor uma pessoa que a média de seus colegas de trabalho, simplesmente com base em dez “curtidas” do Facebook. Setenta “curtidas” eram suficientes para exceder o que um amigo da pessoa sabia, 150 o que seus pais sabiam, e 300 “curtidas” o que seu parceiro sabia. Mais “curtidas” poderiam até mesmo superar aquilo que uma pessoa pensava saber sobre si mesma. No dia que Kosinski publicou essas descobertas, ele recebeu duas ligações telefônicas. A ameaça de um processo e uma oferta de trabalho. Ambas pelo Facebook.
Poucas semanas depois, as “curtidas” do Facebook tornaram-se privadas por padrão. Antes disso, o conjunto de padrões era de que qualquer um na internet poderia ver as “curtidas” de cada usuário. Mas a mudança não foi obstáculo para os coletores de dados: enquanto Kosinski sempre pedia o consentimento dos usuários do Facebook, muitos aplicativos e testes online precisam de acesso a dados privados como pré-condição para fazer testes de personalidade. (Qualquer pessoa que queira avaliar-se com base em seus “likes” do Facebook pode fazer isso no site do Kosinski e comparar seus resultados àqueles de um questionário Ocean clássico, como aquele do Centro de Psicometria de Cambridge.
Mas o assunto não tinha apenas a ver com “curtidas” ou mesmo Facebook. Kosinski e sua equipe não podiam atribuir valores Big Five puramente com base em quantas fotos de perfil uma pessoa tem no Facebook, ou quantos contatos eles têm (um bom indicador de extroversão). Mas também revelamos alguma coisa sobre nós mesmos até quando não estamos online. Por exemplo, o sensor de movimento de nosso celular revela o quão rapidamente a gente se move e quão longe viajamos (isso é correlacionado com instabilidade emocional). Nosso smartphone, concluiu Kosinski, é um vasto questionário psicológico que estamos preenchendo constantemente, tanto consciente quanto inconscientemente.
Sobretudo, porém – e isso é chave – ele também trabalha ao contrário: é possível não apenas criar perfis psicológicos a partir de seus dados, mas também usá-los ao contrário para buscar perfis específicos: todos os pais ansiosos, todos os introvertidos raivosos, por exemplo – ou talvez todos os Democratas indecisos? Essencialmente, o que Kosinski inventou foi uma espécie de mecanismo de busca de pessoas. Ele começou a reconhecer o potencial – mas também o perigo inerente – de seu trabalho. Para ele, a internet sempre se pareceu com um presente dos céus. O que ele realmente queria era dar alguma coisa em troca, compartilhar. Se os dados podem ser compartilhados, então por que também não compartilhar tudo o que é construído a partir deles? Era o espírito de toda uma geração, o início de uma nova era, que transcende as limitações do mundo físico. Mas o que aconteceria, imaginou Kosinski, se alguém abusasse de seu mecanismo de busca para manipular pessoas? Ele começou a estampar avisos na maior parte do seu trabalho científico. Sua abordagem, avisava ele próprio, “poderia representar uma ameaça ao bem-estar individual, à liberdade ou até à vida.” Mas ninguém pareceu alcançar o que ele quis dizer.
A esta altura, o início de 2014, Kosinski foi abordado por um jovem professor assistente do departamento de Psicologia chamado Aleksandr Kogan. Disse que estava entrando em contato em nome de uma empresa interessa no método de Kosinski, e queria acesso ao data base de MyPersonality. Kogan não podia revelar o objetivo; estava sob compromisso de sigilo.
No início, Kosinski e sua equipe consideraram a oferta, pois significaria uma boa quantia de dinheiro para o instituto; mas depois ele hesitou. Finalmente, lembra Kosinski, Kogan revelou o nome da empresa: SCL, ou Strategic Communication Laboratories (Laboratórios de Comunicação Estratégica). Kosinski gugou a empresa: “[Somos] a primeira agência de gestão de eleições”, diz em seu site. A SCL oferece marketing baseado em modelos psicológicos. Um de seus focos centrais: influenciar eleições. Influenciar eleições? Perturbado, Kosinski foi clicando as páginas. Que tipo de empresa era essa? E o que essas pessoas estavam planejando?
O que Kosinski não sabia à época: SLC é a mãe de um grupo de empresas. Quem exatamente detém a propriedade da SCL e seus diversos braços não está claro, devido a uma estrutura corporativa enrolada, do tipo visto nos Panama Papers. Algumas ramificações da SCL estiveram envolvidas em eleições da Ucrânia à Nigéria, ajudaram o rei do Nepal contra os rebeldes, ao passo que outros desenvolveram métodos para influenciar a Europa Oriental e cidadãos afegãos em favor da OTAN. E, em 2013, a SCL criou uma subsidiária para participar das eleições dos EUA: Cambridge Analytica.
Kosinski não sabia nada sobre isso tudo, mas sentiu-se desconfortável. “A coisa toda começou a cheirar mal”, recorda-se. Investigando mais, descobriu que Aleksandr Kogan registrara secretamente uma empresa que fazia negócios com a SCL. De acordo com um relato de dezembro 2015 no The Guardian, e com documentos internos da empresa passados a Das Magazin, o que parece é que a SCL aprendeu sobre o método de Kosinski com Kogan.
Kosinski passou a suspeitar que a empresa de Kogan pudesse ter reproduzido a ferramenta de mensuração do Big Five baseada em “likes” do Facebook para vendê-la a essa empresa especializada em influenciar eleições. Ele imediatamente rompeu o contato com Kogan e informou o diretor do instituto, lançando a fagulha de um complicado conflito dentro da universidade. O instituto estava preocupado com sua reputação. Aleksandr Kogan então mudou-se para Cingapura, casou-se e mudou seu nome para Dr. Spectre. Michal Kosinski concluiu seu PhD, recebeu uma oferta de emprego na Universidade de Stanford e mudou-se para os EUA.
Senhor Brexit
O assunto serenou por mais ou menos um ano. Então, em novembro de 2015, a mais radical das duas campanhas Brexit, “Leave.EU”, apoiada por Nigel Farage, anunciou que havia contratado uma empresa de Big Data para sustentar sua campanha online: Cambridge Analytica. A força central da empresa: marketing político inovador – microabordagem –, medindo a personalidade das pessoas a partir de suas pegadas digitais, com base no modelo Ocean.
Então Kosinski recebeu mensagens perguntando o que ele tinha a ver com aquilo – as palavras Cambridge, personalidade e analytics imediatamente levaram mais gente a pensar no pesquisador. Era a primeira vez que ouvia falar da empresa, cujo nome, dizia-se, fazia referência a seus primeiros empregados, pesquisadores daquela universidade. Horrorizado, ele foi olhar no site. Sua metodologia estaria sendo usada em grande escala para fins políticos?
Depois do resultado do Brexit, amigos e conhecidos escreveram para ele: olha só o que você fez. Em todo lugar que ia, Kosinski tinha de explicar que não tinha nada a ver com aquela empresa. (Continua obscuro com que profundidade a Cambridge Analytica estava envolvida na campanha do Brexit . A empresa não discute esses assuntos.)
Houve mais um período de tranquilidade. Mas em 19 de setembro de 2016, pouco mais de um mês antes das eleições dos EUA, os riffs de guitarra do grupo musical Creedence Clearwater Revival, na música “Bad Moon Rising”, encheram o corredor azul escuro do hotel Grand Hyatt, de Nova York. A Cúpula Concordia é uma espécie de Fórum Econômico Mundial em miniatura. Governantes e empresários de todo o mundo haviam sido convidados, entre eles o presidente suíço Johann Schneider-Ammann. “Por favor dêem boas vindas ao palco Alexander Nix, CEO do Cambridge Analytica”, anunciou uma suave voz feminina. Um homem magro num terno escuro caminha para o palco. Um silêncio se instala. Muitos dos presentes sabiam que esse era o novo homem estratégico de Trump. (Um vídeo da apresentação fora postado no You Tube.) Poucas semanas antes, Trump havia postado no Tweeter, de forma enigmática, “Logo vocês estarão me chamando de Mr. Brexit”. Observadores políticos tinham mesmo notado algumas semelhanças impressionantes entre a agenda de Trump e a da ala de direita do Brexit. Mas poucos haviam notado a ligação disso com a contratação, por Trump, de uma empresa de marketing chamada Cambridge Analytica.
Até aquele momento, a campanha digital de Trump consistia em mais ou menos uma pessoa: Brad Parscale, um empresário de marketing e fundador de uma start-up fracassada que criou para Trump um site rudimentar por US$ 1.500. Trump, de 70 anos, não é experiente digitalmente – nem mesmo há um computador em sua mesa de trabalho. Trump não manda emails, sua assistente pessoal revelou certa vez. Ela própria havia tentado convencê-lo a ter um smartphone, do qual ele agora manda tweets sem parar.
Hillary Clinton, por outro lado, confiou muito no legado do primeiro “presidente de mídias sociais”, Barack Obama. Ela tinha as listas de endereços do Partido Democrata, trabalhava com analistas de ponta de Big Data do BlueLabs e recebia apoio da Google e DreamWorks. Quando foi anunciado, em junho de 2016, que Trump havia contratado a Cambridge Analytica, o establishment de Washington torceu o nariz. Uns caras estrangeiros vestidos com ternos feitos sob medida que não entendem o país e seu povo? Sério?
“É um privilégio para mim falar com vocês hoje sobre o poder do Big Data e da psicometria no processo eleitoral.” O logo da Cambridge Analytica – um cérebro composto de nós da rede, como um mapa, aparece atrás de Alexander Nix. “Há apenas 18 meses, o senador Cruz era um dos candidatos menos populares”, explica o homem loiro com sotaque britânico perfeito, que perturba os americanos da mesma maneira que um sotaque alemão padrão pode perturbar o povo suíço. “Menos de 40% da população tinha ouvido falar dele”, diz um novo slide. A Cambridge Analytica havia se envolvido na campanha eleitoral havia quase dois anos, inicialmente como consultora para os republicanos Ben Carson e Ted Cruz. Cruz – e mais tarde Trump – tinha sua campanha sustentada pelo discreto bilionário do ramo de software Robert Mercer que, juntamente com sua filha Rebekah, é tido como o maior investidor na Cambridge Analytica.
“Então, como ele fez isso?” Até agora, explica Nix, as campanhas eleitorais eram organizadas com base em conceitos demográficos. “Uma ideia realmente ridícula. A ideia de que todas as mulheres deveriam receber a mesma mensagem em razão do seu gênero – ou todos os afro-americanos por causa de sua raça.” O que Nix quis dizer é que, enquanto as outras campanhas até agora baseavam-se em demografia, a Cambridge Analytica estava usando psicometria.
Embora isso possa ser verdade, o papel de Cambridge Analytica na campanha de Cruz não é inconteste. Em dezembro de 2015 a equipe de Cruz atribuiu seu sucesso crescente ao uso e análise de dados psicológicos. Em Advertising Age, um cliente político disse que a equipe da Cambridge era “como uma roda extra”, mas ainda assim achava excelente seu produto principal, a modelagem de dados de eleitores Cambridge. A campanha pagaria à empresa pelo menos 5,8 milhões de dólares para ajudar a identificar eleitores nas primárias de Iowa — que Cruz venceu, antes de sair da disputa, em maio.
Nix clica e aparece o próximo slide: cinco rostos diferentes, cada um correspondendo a um perfil de personalidade. É o Big Five ou Modelo OCEAN. “Na Cambridge”, disse ele, “somos capazes de formar um modelo para diagnosticar a personalidade de cada um dos adultos dos Estados Unidos.” O auditório está atônito. De acordo com Nix, o sucesso do marketing da Cambridge Analytica baseia-se numa combinação de três elementos: ciência comportamental usando o Modelo OCEAN, análise de Big Data e publicidade segmentada. Publicidade segmentada são comerciais personalizados, alinhados o mais precisamente possível à personalidade de um consumidor individual.
Nix explica candidamente como sua empresa faz isso. Primeiro, a Cambridge Analytica compra dados pessoais de um conjunto de fontes diferentes, como registros de imóveis, dados automotivos, dados de compras, cartões de bônus, associação a clubes, quais revistas você lê, que igrejas frequenta. Nix exibe o logo de corretores de dados que operam globalmente, como a Acxiom e a Experian – nos EUA, quase todos os dados pessoais estão à venda. Por exemplo, se você quer saber onde mulheres judias vivem, pode simplesmente comprar essa informação, inclusive números de telefone. Então, a Cambridge Analytica agrega esses dados com os registros eleitorais do partido Republicano e dados online e calcula um perfil Big Five de personalidade. De repente, as pegadas digitais tornam-se pessoas reais, com medos, necessidades, interesses e endereços residenciais.
A metodologia parece bem semelhante àquela que Michal Kosinski desenvolvera lá atrás. A Cambridge Analytica também usa, disse Nix, “pesquisas nas mídias sociais” e dados do Facebook. E a empresa faz exatamente aquilo para o que Kosinski alertara: “Traçamos o perfil de personalidade de todos os adultos nos Estados Unidos da América – 220 milhões de pessoas”, vangloriou-se Nix.
Ele abre a imagem da tela. “Esse é o painel de bordo que preparamos para a campanha de Cruz.” Surge um centro de controle digital. À esquerda estão diagramas; à direita, um mapa de Iowa, onde Cruz venceu com um número surpreendente de votos nas primárias. No mapa há centenas de milhares de pontos vermelhos e azuis. Nix focaliza o critério: “Republicanos” – os pontos azuis desaparecem; “ainda não convencidos” – mais pontos desaparecem; “homens”, e assim por diante. Finalmente, resta apenas um nome, incluindo idade, endereço, interesses, personalidade e inclinação política.
Como faz a Cambridge Analytica para abordar essa pessoa com a mensagem política adequada?
Nix mostra como eleitores classificados psicometricamente podem ser abordados de diferentes maneiras — com base, por exemplo, no direitos à posse de armas, estabelecido na 2ª Emenda à Constituição dos EUA: “Para uma audiência altamente neurótica e consciente sobre ameaça de um assalto – e a política de segurança de uma arma”. Uma imagem à esquerda mostra a mão de um intruso arrebentando uma janela. O lado direito mostra um homem e uma criança em pé num campo ao por do sol, ambos portando armas, claramente atirando em patos: “O contrário, para uma audiência fechada e prazerosa. Pessoas que se importam com tradição, e hábitos, e família.”
Como manter os eleitores de Hilary longe das urnas
As incriveis inconsistências de Trump, sua muito criticada instabilidade, e a série de mensagens contraditórias resultantes — de repente, tudo isso torna-se um grande trunfo: uma mensagem diferente para cada eleitor. A noção de que Trump agiu como um algoritmo perfeitamente oportunista seguindo a reação da audiência é algo que a matemática Cathy O’Neil observou em agosto de 2016.
“Quase toda mensagem que Trump enunciou foi guiada por dados”, lembra Alexander Nix. No dia do terceiro debate presidencial entre Trump e Hillary, a equipe do candidato testou 175 mil variações diferentes de anúncios publicitários para seus argumentos, de modo a encontrar as versões mais certeiras via Facebook. Em sua maioria, as mensagens diferiam umas das outras por detalhes microscópicos, de modo a apontar para os destinatários com a melhor abordagem psicológica possível: diferentes títulos, cores, legendas, com uma foto ou vídeo. Esta afinação atinge todos, até os menores grupos, explicou Nix numa entrevista. “Podemos nos dirigir a vilarejos ou blocos de apartamentos de modo segmentado. Até mesmo a indivíduos.”
No distrito de Little Haiti, em Miami, por exemplo, a campanha de Trump forneceu aos habitantes notícias sobre o fracasso da Fundação Clinton após o terremoto no Haiti, de modo a evitar que votassem para Hillary. Esse era um dos objetivos: manter potenciais eleitores de Clinton (o que incluía esquerdistas vacilantes, afro-americanos e mulheres jovens) longe das urnas; “inibir” seus votos, como contou à Bloomberg um profissional graduado da campanha semanas antes das eleições. Estes “posts escuros” — propagandas patrocinadas em estilo news-feed na timeline do Facebook, vistos somente por usuários com perfis específicos – incluiam vídeos dirigidos aos afro-americanos em que Hillary refere-se aos homens negros como predadores, por exemplo.
Nix conclui sua palestra na Cúpula Concordia afirmando que a publicidade abrangente tradicional está morta. “Meus filhos certamente não irão nunca, jamais entender esse conceito de comunicação de massa.” Antes de deixar o palco, ele anunciou que, após Cruz abandonar a disputa, a empresa apoiaria um dos candidatos presidenciais que permanecessem.
Não é possível enxergar quão precisamente os norte-americanos estava sendo alvejados pelas tropas digitais de Trump naquele momento, porque eles atacaram menos na TV mainstream e mais com mensagens personalizadas nas mídias sociais ou na TV digital. E enquanto a equipe de Hillary pensava estar na liderança, com base em projeções demográficas, o jornalista Sasha Issenberg, da Bloomberg, ficou surpreso ao notar, numa visita a Santo Antonio – onde a campanha digital de Trump tinha sua base – que um “segundo quartel-general” estava sendo criado. A equipe da Cambridge Analytica, aparentemente não mais que uma dúzia de pessoas, recebeu US$ 100 mil de Trump em julho, US$ 250 mil em agosto e US$ 5 milhões em setembro. De acordo com Nix, a empresa recebeu ao todo mais de US$ 15 milhões. (A empresa está registrada nos EUA, onde as leis relativas à divulgação de dados pessoais são mais frouxas do que em países da União Europeia. Enquanto as leis europeias de privacidade requerem que a pessoa “opte por sua inclusão” (“opt in”) na divulgação de dados, as dos EUA permitem que dados sejam divulgados, a não ser quando o usuário “opte por sua não inclusão (“opt out”).
As medições foram radicais: desde julho de 2016, os cabos eleitorais de Trump receberam um aplicativo com o qual podiam identificar a visão política e tipo de personalidade dos habitantes de uma residência. Era o mesmo aplicativo usado pelos que fizeram a campanha do Brexit. As equipes de Trump simplesmente tocavam a campainha das casas que o aplicativo classificava como receptivos a suas mensagens. Os cabos eleitorais vinham preparados com orientação para conversas adaptadas ao tipo de personalidade do residente. Por sua vez, os cabos eleitorais alimentavam o aplicativo com as reações, e os novos dados voltavam para os painéis da campanha de Trump.
Nada disso é novo, vale lembrar. Os Democratas fizeram coisas semelhantes, mas não há evidências de que eles se baseavam em perfis psicométricos. A Cambridge Analytica, contudo, dividiu a população dos EUA em 32 tipos de personalidade, e focou em apenas 17 estados. E assim como Kosinski definiu que é um pouco mais provável que homens que gostam de cosméticos MAC sejam gays, a empresa descobriu que a preferência por carros fabricados nos EUA era um grande indicador de um potencial eleitor de Trump. Entre outras coisas, essas descobertas mostravam agora para Trump quais mensagens funcionavam melhor, e onde. A decisão de focalizar em Michigan e Wiscosin nas semanas finais da campanha foi feita com base na análise de dados. O candidato tornou-se um instrumento para implementar um modelo de Big Data.
E agora?
Mas até que ponto os métodos de psicometria influenciaram o resultado da eleição? Questionada, a Cambridge Analytica não quis apresentar nenhum prova da efetividade de sua campanha. E é bom provável que essa pergunta seja impossível de responder.
E ainda assim há pistas: há o fato do surpreendente crescimento de Ted Cruz durante as primárias. E houve um aumento do número de eleitores nas áreas rurais. Houve a queda do número inicial de votos afro-americanos. O fato de que Trump gastou tão pouco dinheiro pode também ser explicado pela efetividade da propaganda com base na personalidade. Assim como o fato de que ele investiu muito mais em campanha digital do que na TV, comparado com Hillary Clinton. O Facebook mostrou ser a arma final e melhor campanha eleitoral, como explicou Nix e demonstraram os comentários de várias pessoas centrais na campanha de Trump.
Muitas vozes clamaram que os estatísticos perderam a eleição porque suas previsões foram muito fora da curva. Mas, e se os estatísticos tiverem de fato ajudado a vencer a eleição – mas apenas aqueles profissionais que estavam usando o novo método? É uma ironia da história que Trump, que frequentemente reclamou de pesquisas científicas, tenha usado uma abordagem altamente científica em sua campanha.
Outro grande vencedor é a Cambridge Analytica. Steve Bannon, membro do conselho da empresa e ex-presidente executivo do jornal online de direita Breitbart News, foi apontado como principal conselheiro e estrategista-chefe de Donald Trump. Apesar de a Cambridge Analytica não querer comentar sobre rumores de conversações com a primeira ministra britânica Theresa May, Alexander Nix alega que ele está construindo sua base de clientes em todo o mundo, e que foi sondado pela Suíça, Alemanha e Austrália. Sua empresa está fazendo atualmente conferências pela Europa, apresentando seu sucesso nos Estados Unidos. Neste ano, três países centrais da União Europeia têm eleições com partidos populistas de direita renascidos: França, Holanda e Alemanha. O sucesso eleitoral vem num momento oportuno, pois a empresa está se preparando para uma intensa campanha publicitária.
Kosinski observou tudo isso de seu escritório em Stanford. Depois da eleição nos EUA, a universidade está agitada. Kosinski está trabalhando no desdobramentos da arma mais afiada disponível para um pesquisador: uma análise científica. Juntos com sua colega pesquisadora Sandra Matz, ele conduziu uma série de testes, que logo serão publicados. Os resultados iniciais são alarmantes: o estudo mostra a eficácia de ter como alvo as personalidades, mostrando que marqueteiros podem atrair mais de 63% mais cliques e mais de 1.400 conversões em campanhas publicitárias em tempo real no Facebook quando se combinam produtos e mensagens de marketing a características da personalidade do consumidor. Eles depois demonstraram a possibilidade de ampliar o foco personalizado, ao mostrar que a maioria das páginas de Facebook que promovem produtos ou marcas são afetadas pela personalidade e que grande número de consumidores podem ser definidos precisamente como alvo com base numa única página do Facebook.
Numa declaração posterior à publicação deste artigo na Alemanha, um porta-voz da Cambridge Analytica disse: “A Cambridge Analytica não usa dados do Facebook. Não teve nenhum negócio com o Dr. Michal Kosinski. Não subcontrata pesquisa. Não usa a mesma metodologia. Praticamente não usa psicometria. A Cambridge Analytica não desenvolveu nenhum esforço para desencorajar qualquer norte-americano em participar com seu voto nas eleições presidenciais.”
O mundo foi virado de ponta-cabeça. A Grã Bretanha está saindo da União Europeia, Donald Trump é presidente dos Estados Unidos. E em Stanford, Kosinski, que queria advertir contra o perigo de focar em perfis psicológicos num ambiente político, está mais uma vez recebendo mensagens acusatórias. “Não”, diz Kosinski, em voz baixa, e balançando a cabeça. “Isso não é culpa minha. Não construí a bomba. Eu só mostrei que ela existe.”
*Mikael Krogerus e Hannes Grassegger
Mikael Krogerus é um escritor freelance para jornais e revistas alemães e suiços. Hannes Grassegger estudou economia em Berlim e Zurique. É editor chefe da revista REPORTAGEN, e freelance para o Süddeutsche Zeitung Magazin, Die Zeit e Das Magazin.
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