O sofrimento é universal e faz parte da vida. Ninguém passa pela vida sem sentir ou experimentar ter algum tipo de dor. A dor traduz apenas a face biológica e fisiológica do sofrimento. Ela faz parte do sistema de comunicação primitivo, sendo um importante sinal de alerta destinado a nos proteger.
O sofrimento, por sua vez, é uma experiência subjetiva e emocional de duração indeterminada, bem diferente da dor, que, em geral, é temporária. Ninguém suportaria sentir dor sempre, ao contrário do sofrimento, que pode ser companheiro de toda uma existência.
Contudo, o fato de o sofrimento fazer parte da condição humana, ou seja, ser intrínseco ao existir, não significa que deva ser encarado como uma desgraça sobrevinda para nos tomar obrigatoriamente infelizes para sempre. O sofrimento pode ser interpretado como um evento capaz de proporcionar crescimento. Os ensinamentos que emergem dessa vivência contribuem para tornar a vida singular, mobilizar-nos em busca de respostas para as nossas inquietudes e inspirar ações que nos ajudem a superar nossas angústias em vez de ficarmos amortecidos, deixando-nos levar pelo destino.
O sofrimento como vicio
O que chamo de vício é o sofrimento como estado de escravidão interna e forma específica de consciência, criando dores adicionais que não precisariam ser vividas; um modo de sofrer provavelmente elaborado de maneira inconsciente e que constituiu a atitude sofredora em relação aos outros e ao mundo.
É, portanto, um quadro psicodinâmico, ou seja, formado por um conjunto de fatores de natureza mental e emocional que motivam esse comportamento humano. Esse vício se caracteriza por um padecimento psicológico em que os dependentes sofrem em silêncio. Nem eles
próprios ouvem o seu lamento. A maioria das pessoas sequer percebe que está sob uma dependência. Imagina que faz parte da sua vida não ter sorte ou tudo ser mais difícil para si. Olha para esse sofrimento como se fosse uma dificuldade da vida e procura justificativas para a sua dor, sem entender que esse padrão de comportamento ou sentimento formata uma atitude repetitiva causadora de seus desencontros e insucessos.
Assim como a dependência de drogas, o vício de sofrer também é retroalimentado. A dependência se manifesta quando a vida vai bem e a pessoa inconscientemente produz situações geradoras de conflito e sofrimento. O viciado apresenta um comportamento repetitivo que o leva a procurar e/ou provocar situações conflituosas nas relações afetivas, profissionais ou sociais. No jargão popular se poderia dizer que o viciado em sofrimento "tem medo de ser feliz".
Quem possui esse vício não experimenta a leveza existencial e sim um vazio de existir. A leveza existencial se relaciona ao prazer de viver, à certeza de que a vida tem um significado, à convicção de estar construindo alguma coisa para si e para a coletividade. Uma pessoa com saúde biopsicossocial desfruta dessas sensações. Já o viciado em sofrimento considera a vida dura, difícil e pesada. Vive se perguntando: "Pra que?" E só encontra o vazio.
O custo dessa dependência é alto. O sofrimento psicológico causa isolamento social, depressão, pensamentos obsessivo-compulsivos e ansiedade disfuncional (gasta-se muita energia para
pouco ou nenhum resultado).
E frequentemente o vício de sofrer está camuflado nos transtornos psíquicos (tais como a depressão, a ansiedade, o pânico, o distúrbio bipolar e outras neuroses), o que dificulta ainda mais a percepção de que se trata de um vício.
De modo geral, o sofrimento como vício apresenta as seguintes características:
1. Sofrimento silencioso sem percepção desse lamento, sem fazer ideia do sentido de suas perturbações.
2. Padecimento psicológico com angústia, ansiedade e depressão.
3. Estado interior de permanente consciência reflexiva.
4. Dores, traumas passados e presentes, próprios ou alheios são integrados de modo que qualquer informação com esse colorido se torna nuclear, como um complexo.
5, Presença de diálogos internos torturantes.
6. Ideias de culpa, fracasso, auto acusação e autopunição .
7. Diminuição da autoestima e da qualidade de vida.
8. Sentimento de vazio, solidão e carência.
9. Empobrecimento na expressão da criatividade, espontaneidade e dos papéis sociais.
10. Papel social cristalizado de sofredor. A pessoa vira escrava do sofrimento.
É importante ressaltar que, frequentemente, o vício do sofrimento está misturado nos transtornos da personalidade. A construção dessa maneira de viver perpassa o desenvolvimento do indivíduo desde a sua infância até a fase adulta.
As situações conflituosas, externas ou internas, com as quais nos deparamos ao longo da vida mobilizam em nós mecanismos defensivos perante a dor. Isso faz parte do processo natural de sobrevivência. Mas, em função das adversidades enfrentadas, algumas pessoas às vezes sofrem mais do que outras e aos poucos desenvolvem uma identidade colada no sofrimento. Elas pensam, sentem e integram as suas dores, não importa se são traumas do passado ou do presente, como uma postura existencial.
Também podem colar no sofrimento alheio, pegando para si a dor do outro como se fosse sua própria e assim alimentar seu personagem sofredor. Tudo isso claro, de forma inconsciente. Sabemos que a experiência dessa pessoa é de insuperável solidão, profundamente ímpar e intransferível. No entanto, a consciência desse fato poderá dar ao indivíduo a condição de
desmontar essa imagem de si para, consequentemente, redefinir a sua individualidade.
Quem é o viciado em sofrimento ?
Em síntese; podemos dizer que o viciado em sofrimento de hoje foi uma criança que se sentiu pouco amada, reprimiu seu desejo de ser cuidada e perpetuou sentimentos de vergonha, inferioridade e inadequação, estruturando uma forma sofrida de viver. Ela aprendeu a viver em sofrimento e através do sofrimento apenas.
Obviamente, não é apenas um fator que define a formação de um viciado em sofrimento; mas sim uma série intricada de acontecimentos, predisposições e vicissitudes da vida de cada um. A dinâmica do viciado é um caleidoscópio. Não tem causa ou efeito linear. Nem todos os membros da mesma família disfuncional desenvolvem esse tipo de dependência.
Acrescentamos, ainda, que, normalmente, os viciados não são conscientes do seu vício, assim como não têm consciência do quão prejudicial esse vicio se torna em sua vida. . Por isso, ajudá-los a perceber seu impacto interpessoal é fundamental. Quando as pessoas se conscientizam de que esse vício governa suas vidas, começam a se questionar e suspeitar que existe um lago congelado de sentimentos percebidos como isolamento emocional. Daí, sim, elas podem admitir que precisam de ajuda para experimentar relações afetivas gratificantes.
Caso tenha dificuldade em sair desse ciclo viciante, procure ajuda psicológica.
Debora Oliveira
Psicóloga Clínica
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