sexta-feira, 24 de março de 2017

Macroscópio – 22 de Março. Um ano depois. Mas noutra capital europeia

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Não sei se os terroristas têm algum fetichismo com os números e as datas, mas noto que depois do 11 de Setembro de Nova Iorque houve o 11 de Março de Madrid. E que agora, depois do 22 de Março de Bruxelas, houve o 22 de Março de Londres. Desde ontem que seguimos atentos as notícias que nos chegam da capital do Reino Unido, vemos e revemos as imagens, sabemos das histórias dos heróis e meditamos sobre o significado de mais um ataque, perplexos por sentirmos que ele era uma quase inevitabilidade. É por estas duas frentes que andará o Macroscópio de hoje.
 
Comecemos pelo significado do que sucedeu, onde recorro ao diagnóstico certeiro do Le Monde, em Attentat à Londres : terreur et force morale au bord de la Tamise. Escreve aquele diário neste editorial que “Le plus vieux Parlement du monde était en session. Et, qui sait, c’est peut-être ce que visait le tueur : l’exercice de la démocratie en action. (…) Il s’agit de tuer le plus grand nombre possible et de toucher l’un des symboles d’une civilisation.” Mais adiante conclui que, “En attendant, la plus vieille démocratie du monde ne se laisse pas intimider. Portes ouvertes, la Chambre des communes a, ce jeudi, repris le cours de ses travaux, aussi paisible que celui de la Tamise.”
 
Esta ideia de que o ataque terrorista visava um dos símbolos maiores dos regimes democráticos é também o ponto de partida de uma crónica de Ed West na Spectator, Around the world, Westminster is a byword for political moderation, onde o autor conta a história do edifício e do uso ao longo dos tempos, concluindo pela sua centralidade na forma como os britânicos se vêem a eles mesmos: “I’ve often argued that there are no such thing as ‘British values’, because what binds a country together, like what joins a family together, is a shared history and the hope of a shared future. Westminster, in particular, is at the heart of that history and the traditions that came from it, symbolising the English parliamentary tradition of political moderation and continuity. If any good comes from this tragedy perhaps we’ll better appreciate in future our elected representatives, who for the most part are good people working to continue that tradition.”
 
Jimmy Burns Marañón, um jornalista que acompanhou crises em vários pontos do mundo, estava em Londres quando o ataque ocorreu, e logo não muito longe de Westminster, tendo escrito uma interessante crónica no El Español, El atentado en Londres y el ejemplo de ChurchillNela nota que “entre el ruido mediático, tres imágenes resumieron ese día en Londres: la primera, la de los cuerpos de los que fueron atropellados; la segunda, la de un miembro del Parlamento - un ex soldado - intentando salvar la vida del policía agonizante, boca a boca; la tercera, la de la primera ministra Theresa May con voz temblorosa y a la vez desafiante, asegurando al mundo que el parlamento más antiguo del mundo quedaba en pie, listo para retomar sus funciones, y que el Reino Unido no permitiría que su valores democráticos, de justicia y tolerancia, fuesen destruidos. En ese instante la señora May parecía haber nacido para ese momento, igual que la señora Thatcher supo lucir en episodios de grandes amenazas, como las bombas del IRA y la Guerra de las Malvinas.
 
Gonçalo Dorotea Cevada, um jurista que vive em Londres e escreve ocasionalmente para o Observador, contou-nos também a sua experiência de ontem, até porque se deu a coincidência de ter estado em Bruxelas a 22 de Março do ano passado e vivido na capital belga momentos idênticos. Na crónica 22 de Março escreve: “Ontem estava em Londres e o pânico que senti não foi diferente do medo que tive a 22 de Março de 2016 quando estava em Bruxelas. (…)Tenho medo de morrer mas não posso nem quero deixar de viver. Não posso, nem quero sentir que a minha liberdade está a ser condicionada ou limitada por mim ou por loucos, doentes, terroristas, gente desprezível.
 
Ora o medo, e os efeitos do medo, foram precisamente o objecto da reflexão de Henrique Raposo no Expresso Diário de hoje (paywall), em O terror deles, a nossa cobardia. Aí nota que “Há formas civilizadas e incivilizadas de lidar com o medo; não se pode é fingir que não existe esse medo. Ora, se o centro político, nos média e na política, não for célere no ataque à origem deste mal, os extremismos nacionalistas continuarão a ganhar peso. Até porque devemos estar conscientes de uma coisa: dizer que “não temos medo” é uma negação superficial, epidérmica, é maquilhagem para pôr no Facebook; é por isso que as pessoas votam cada vez mais nos nacionalistas quando estão no escuro sigiloso da urna – só ali é que sentem que podem expressar o seu medo muito natural que muitas vezes é apelidado de “racista”. Não, não é racismo, é medo.”
 
Paulo Tunhas, no Observador, em Londres e a irrealidade, também discute o efeito de ataques como o de Londres, mas chamando a atenção para que não devemos procurar “explicar” os terroristas, nem confundi-los com outros fenómenos: “Diz-se que o islamismo radical quer destruir o nosso modo de vida. Em parte é verdade, é claro, mas o que ele quer mais imediatamente é mesmo matar-nos. Marine Le Pen quererá eventualmente mudar o nosso modo de viver, o que é sem dúvida péssimo e se deve combater, mas raia o delirante detectarmos nela as pulsões homicidas do islamismo radical. A simplicidade deste raciocínio ofenderá certamente muita gente. Não é coisa que me incomode muito. E até acrescento que perceber isto, e daí tirar lições para a acção, é provavelmente a melhor maneira de vencer Marine Le Pen e quem faz política como ela.”
 
Uma das coisas que mais perturba quando olhamos para o que se passou em Londres – e quando pensamos até que ponto aquela cidade representa o nosso modo de vida – é que entre os feridos pela marcha assassina do carro do atacante se contam cidadãos de 11 países diferentes, como aqui notava o Guardian (de onde é também o cartoon com que abro esta newsletter). Nesse mesmo Guardian Simon Jenkins argumentava contudo que The Westminster attack is a tragedy, but it’s not a threat to democracy. Num texto em que analisa a forma como o Reino Unido tem combatido as ameaças terroristas, e onde também discute o papel e os cuidados que os órgãos de informação devem ter na forma como noticiam os atentados, acaba por concluir que podemos defender-nos sem por em causa o que é mais nuclear nas nossas liberdades: “The response of British governments to IRA incidents in the 1970s and 80s – to regard them as random crimes not quasi-political gestures – was surely correct. IRA terrorism was a much worse threat than anything experienced at present. Some freedoms were curtailed, as in detention without trial and the censoring of IRA spokespeople. They were minor victories for terror. But for the most part, British freedoms were not infringed, life went on and the threat eventually passed. Let us hope the same applies today.”
 
A forma de lidar com o terror é, contudo, tema de mais controvérsias do que de consensos, colocando problemas muito complexos. Numa edição recente, a de 11 de Março, a Spiegel tratava precisamente do Germany's Dilemma in Dealing with Islamist Threats, tendo agora recuperado este texto que nos surge como quase premonitório: “The potential threats of today, it seems, are not generally college-educated attackers like the 9/11 perpetrators in Mohammed Atta's circle, who spent years planning the attacks on New York and Washington. For today's IS-inspired attackers, a driver's license, a knife or an ax are sufficient. Furthermore, it is not uncommon to find unpredictable and emotionally unstable individuals within today's latest generation of Islamists.”
 
É o perigo dos chamados “lobos solitários”, algo para que o Reino Unido estava atento mas com a consciência de que, mais tarde ou mais cedo, um desses “lone wolfs” despertaria. Sobre isso mesmo escreveu Con Coughlin do Telegraph em London attack was simply a question of time: This was the lone wolf Britain has long been fearing: “The intelligence shows that Islamist terrorists are still intent on carrying out bomb attacks on civilian airliners because, if successful, they incur mass casualties. But, as Wednesday’s attack demonstrates, perpetrating acts of terror does not rely on a great amount of sophistication. All it requires is a lone fanatic determined to pursue their vile creed for innocent civilians to lose their lives.”
 
Arthur Snell, que dirigiu o programa anti-terrorista “Prevent”, reforça esta ideia notando por seu turno que podemos estar perante um padrão de ataques. Na Prospect, em Westminster attack: A leaderless jihad?, escreve que “The unsophistication of the Westminster attacks leads to one of the biggest questions in counter-terrorism thinking: the degree to which the “lone wolf” low-tech attacks are nonetheless directed from an organisational hierarchy with IS. (…) Too often this debate is politicised, with those that call for tighter security measures pushing the “centralised control” argument and those sceptical of state security shrugging their shoulders and concluding that you can’t stop a lone wolf. The truth is, as ever, somewhere in between: an individual may be radicalised and inspired by IS and may be encouraged to carry out an attack, but that does not mean that the attack is resourced and directed from Raqqa.”
 
Guardei para o fim dois textos mais intemporais, duas reflexões bem diferentes, mas não contraditórias, assinadas por dois autores habituados a lidar com a controvérsia. O primeiro texto é do filósofo John Gray e foi publicado a 3 de Dezembro de 2015 na New Statesman, tendo sido suscitado pelos atentados de Paris. Em Islamist terror, security and the Hobbesian question of order ele ocupa-se da relação dos cidadãos com os Estados, e com a liberdade que estes lhes proporcionam, ou não proporcionam, acabando por defender um ponto de vista no mínimo controverso: “One need not accept all of Hobbes’s political theory, with its fictitious state of nature and social contract, to see that he captured some enduring realities that liberals have chosen to forget. The form of government – democratic or despotic, monarchical or republican – is less important than its capacity to deliver peace. At the present time, it is not the state but the weakness of the state that is the greater danger to freedom.” Inteligente como sempre, é uma leitura que nos faz pensar.
 
Ayaan Hirsi Ali, a somali que se tornou conhecida pelas suas denúncias do islamismo, acaba de publicar um longo ensaio no Hoover Institution que também me pareceu vir mesmo a calhar nesta altura em que somos obrigados a olhar de novo para o Islão radical. É um pequeno livro de 100 páginas, The Challenge of Dawa - Political Islam as Ideology and Movement and How to Counter It, acessível na sua versão PDF, e onde a autora parte de um discurso que ouviu, ainda na campanha eleitoral, a Donald Trump, para defender uma mudança de políticas: “I argue that the speech heralded a paradigm shift away from President Obama’s doctrine of focusing solely on the violence committed by “extremists” to a more comprehensive approach that seeks to undermine, degrade, and ultimately defeat political Islam (or Islamism) as an ideology and a movement seeking to in ltrate and undermine our free society.  A narrow focus on Islamist violence had the effect of restricting our options only to tools such as military intervention, electronic surveillance, and the criminal justice system. This approach has proved both costly and ineffective.” Um extrato do livro, seleccionado pelo próprio Hoover Institution, pode ser encontrado em How To Counter Political Islam.
 
E por aqui me fico, com os habituais desejos de bom descanso e boas leituras – mesmo sabendo que as duas últimas são um pouco extensas, mas sempre poderão ficar para mais tarde. Até amanhã. 

 
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