domingo, 9 de abril de 2017

FORÇA E FRAQUEZA DOS ECONOMISTAS LIBERAIS

Como hoje têm poder, tentam impor suas opções como as “únicas possíveis”. Mas nesta recusa ao debate está sua grande debilidade: que restará deles quando houver democracia real e a Economia deixar de ser dogma?

Felipe Calabrez – Outras Palavras

O capitalismo liberal do início do século XIX ruiu. A intervenção do Estado então entrou em cena para salvaguardar o sistema, (re)politizando a acumulação, como demonstrou Polany, e recolocando o problema da legitimação sob o capitalismo tardio, como apontou Habermas. Esse diagnóstico, feito com base nos países centrais, pode ser estendido, em seu ponto fundamental, para os países “periféricos”, visto que esses são fruto da própria dinâmica de competição entre os países centrais que, por meio da conquista, do saque e da pilhagem, colonizaram territórios inserindo-os na lógica mercantil da exploração e do lucro. Assim, os países latino-americanos desenvolveram estruturas de dominação e de exploração impostas inicialmente de fora e desenvolveram o capitalismo acompanhados de estruturas políticas fortemente autoritárias.

O século XX é marcado por um capitalismo estatalmente regulado, o que fica evidente após as medidas do New Deal para reverter a grande depressão e após o advento da macroeconomia keynesiana. Keynes revoluciona o pensamento econômico ao demonstrar que o sistema não tende naturalmente ao pleno emprego, por sofrer uma constante insuficiência de demanda, algo que pode ser revertido por meio de medidas de estímulo ao investimento. Tais medidas, que incluem os investimentos públicos, mas não apenas, abrem caminho para que, no campo da teoria econômica, o Estado adquira papel relevante, influenciando decisivamente nos agregados econômicos de um país. O advento da macroeconomia abre caminho para a centralidade da política econômica estatal e produz um fenômeno sociologicamente relevante: Os economistas passam a ser detentores de um tipo de saber considerado fundamental para as políticas de Estado, e, consequentemente, passam a ocupar – em alguns países mais, em outros menos – os postos de decisão chave no aparelho de Estado.

Os países latino-americanos ilustram claramente as consequências apontadas acima. Como ex-colônias, passam a buscar se constituir como nações e acelerar seu processo de “modernização” capitalista, o que coloca em seus Estados a missão histórica de dirigir o processo. Não é à toa que a ideologia desenvolvimentista é na América Latina que tem origem e produz-se na região o que há de melhor na história do pensamento econômico crítico. A partir da crítica à teoria ricardiana das vantagens comparativas, tem-se a construção de uma robusta teoria que não se limitou à análise do comércio internacional, mas procurou compreender a subordinada posição dos países latino-americanos no sistema capitalista mundial como causadora de seu atraso, e, a partir daí, elaborar um programa de superação dessa situação — programa que era de natureza eminentemente política. Não por outro motivo, seus principais teóricos, Raul Prebisch e Celso Furtado, ocuparam postos decisórios nos aparelhos de Estado.

Em meados dos anos 1970, por uma conjunção de fatores (econômicos, políticos, geopolíticos), os principais países do capitalismo mundial passam a enfrentar um atípico processo de estagflação que solapa as bases do consenso macroeconômico keynesiano e fortalece um tipo de pensamento econômico radicalmente liberal (no sentido em que rechaça a validade da intervenção estatal no sistema econômico e opera com uma anacrônica separação entre política e economia, onde a primeira não deveria “intervir” no funcionamento da segunda). Essa mudança de paradigma de política econômica encerra uma dupla contradição, à qual chamarei de analítica e normativa.

A contradição analítica se deve ao fato de que todo o corpo de saber científico (ciência econômica) de que dispomos para entender o funcionamento do sistema econômico, ou dos sistemas econômicos (economia) apoia-se na separação entre o mercado (esfera onde os agentes racionais tomam suas decisões de maneira a maximizar sua utilidade) e a política, tomando apenas a primeira esfera como objeto de estudo. Isso depois de o século XX ter demonstrado que o processo de acumulação e reprodução do capital se deu da maneira intensamente politizada e guiada pelos Estados, que assumiram um papel que foi muito além de corretor de falhas de mercado.

Vale observar que o problema a que chamei de contradição analítica não é a separação em si, posto que as duas esferas (Estado e mercado) operam com lógicas diferentes, embora conectadas. A abstração é inerente às construções teóricas e tal separação certamente permite ganhos analíticos, por um lado, e prezuízos, por outro. O problema é que essa separação analítica faz com que os economistas façam previsões e prescrições com base em um abstrato homo economicus, e qualquer desvio em suas previsões é visto como indesejado, algo que deve ser sanado, corrigido, o que faz com que sua “ciência analítica” se torne, sem que percebam, normativa, e, no limite, autoritária. Assim produz-se a contradição normativa.

A contradição normativa se nota quando olhamos o conjunto de ideias liberais que se tornaram hegemônicas ao final da década de 1970, e que, embora pretendam-se neutras do ponto de vista político, carregam consigo elemento político de duplo caráter. Político porque pretendem moldar o mundo à imagem de seu constructo teórico, disseminando a lógica mercantil a todas as esferas da vida social, e político porque, para isso, precisam que seu programa encontre guarida nos postos-chave de decisão estatal, exigindo dos Estados forte capacidade política de implementação e de contenção dos conflitos sociais daí resultantes.

Essa dupla contradição produziu uma disjunção entre o que se tornou a ciência econômica mainstream (que não é mais economia política, mas economics) e a natureza do funcionamento do sistema econômico, que, ao contrário do que se diz frequentemente de maneira crítica, não se tornou liberal como fora no século XIX, mas, ao contrário, se repolitizou ainda mais. Aqui vale um exemplo historicamente situado que ilustra o que estou dizendo.

Os países latino-americanos, guardadas suas especificidades, passaram por décadas de crescimento econômico politicamente orientado, não raro convivendo com regimes ditatoriais. Esse processo de acumulação politizada contou com o protagonismo estatal e produziu, como resultado de decisões políticas, enormes dívidas externas. O desencadeamento da dívida externa produziu, por sua vez, disfunções no sistema econômico que impuseram processos de ajustamento. Os ajustes foram postergados até a década de 1980, e a decisão sobre em quem recairiam seus custos era uma decisão política. Diante disso o Brasil optou por aquilo que José Luís Fiori chamou de fuga para a frente. Ao final da década construiu-se um consenso geral sobre o que fazer e impôs-se de fora um pacote homogêneo de medidas privatizantes e liberalizantes para todos os endividados países latino-americanos, hegemonizando a ideia de que o problema era o Estado e a solução, o mercado.

Não entrarei aqui no mérito de cada uma das medidas defendidas; é certo que algumas carregavam algum grau de razoabilidade. O que pretendo ressaltar é que as reformas pró-mercado possuíam natureza política, já que logo ficou clara a necessidade de que o Estado (fonte dos males) reforçasse suas estruturas administrativas e sua capacidade de direção política para implementar projetos que, ao fim, reduzem o papel do próprio Estado, na regulação econômica e no fomento ao desenvolvimento. Essa aparente contradição contida num receituário econômico ortodoxo que defendia a redução do papel do Estado por meio de reformas que teriam como agente implementador o próprio Estado foi chamada por Miles Kahler de “paradoxo ortodoxo”.

O paradoxo ortodoxo, que não é nenhuma novidade – vide o caso da implementação das reformas liberais no Chile sob uma violenta ditadura – tem sua origem no campo das teorias econômicas. Como dito, essas teorias preconizam o domínio da lógica mercantil sobre todas as esferas da vida social e política, isto é, atribuindo ao “mercado” a determinação dos preços macroeconômicos fundamentais – como taxa de juros, os salários e o câmbio – bem como o provimento de bens básicos à qualidade da vida humana, como saúde e educação, considerando como bens públicos puros apenas aqueles de natureza não-rival (isto é, apenas o ar e mais uma ou duas coisas), como ensinam os manuais de economia do setor público. Para construir – e manter – esse espaço mercantil, é preciso, entretanto, que a ação política seja constante, motivo pelo qual as ditas reformas nunca mais saíram da agenda política.

Dito tudo isto, pode o leitor indagar: Então toda economia é política, toda ciência e teoria econômica possuem caráter político, não sendo isso uma especificidade do liberalismo. Qual seria então o problema?

A meu ver o problema consiste no mascaramento que a ideologia liberal produz. Senão vejamos: Quando Keynes escreveu a Teoria Geral, ele se defrontava com um problema muito prático; os alarmantes níveis de desemprego causados pela Grande Depressão. Embora, como saibamos, lord Keynes estivesse muito longe de defender uma revolução social, o desemprego lhe pareceu um grave problema naquele momento. Seu movimento intelectual se deu no sentido de captar um problema na realidade, que lhe produz incômodo, e transformá-lo em um problema teórico, passível de ser cientificamente explicado. Para isso Keynes empreendeu o formidável esforço de confrontar a lei de Say e toda a ciência econômica estabelecida para demonstrar que o sistema não mantém automaticamente o nível do pleno emprego e que a (estapafúrdia) hipótese de desemprego voluntário não se sustenta. E, mesmo aceitando os termos dos adversários como forma de se legitimar, Keynes se vê obrigado a apelar para elementos “não econômicos” ao afirmar que não é desejável que os salários caiam abaixo de determinado nível. Temos aqui explícitos os valores que orientam o teórico, o que não faz sua teoria ser menos científica, como nos alertou Max Weber.

Como já dito, a teoria keynesiana pressupunha uma forte ação estatal e desejava o pleno emprego. Isso tudo não é velado. Portanto, as teorias econômicas podem manter seu rigor analítico e explicitar seus valores, sobretudo quando se pretendem propositivas. Assim foi com o precursor do liberalismo, Adam Smith, que lutava contra a velha ordem mercantilista e o sistema de dominação que a sustentava. Assim foi com Keynes e o problema do desemprego, e assim foi com os cepalinos, que buscavam desenvolver o sistema econômico nacional como forma de superar a heterogeneidade estrutural – e, consequentemente, desigualdade – que o subdesenvolvimento gerava. Vale mencionar que, depois da avalanche liberal dá década de 1990, os valores de nação, competição e desenvolvimento econômico têm sido resgatados com notáveis esforços por Bresser-Pereira e a teoria novo-desenvolvimentista. Assim como Keynes, Bresser logrou identificar um problema real (a estagnação) e transformá-lo em um problema teórico, buscando identificar suas principais causas e organizando-as em um modelo teórico explicativo e propositivo. Esse modelo propositivo (a macroeconomia desenvolvimentista) contém uma economia política, isto é, explicita quais são as medidas desejáveis para superar o problema identificado. Sua aplicação passa, portanto, pela política. As cartas estão na mesa.

A diferença em relação à postura liberal é notável. Esta, baseada na legitimidade que seu corpo teórico adquiriu, mantém velados seus pressupostos e seu caráter político; e isso, paradoxalmente, quando procura a todo custo impor suas ideias por meio de programas políticos, apresentando-as, no entanto, como a única saída possível, racional e inescapável. Os liberais poderiam explicitar que seu projeto é alastrar a lógica mercantil para todas as esferas, submetendo a macroeconomia e a própria atividade econômica real (produtiva) aos imperativos do mercado, cada vez mais financeirizado e instável. Não o fazem, porque, ao fazê-lo, abririam espaço para o debate político, onde seria possível questionar o que (e em que medida) é desejável delegar às decisões privadas de ordem mercantil e de valorização do capital. E a política, em sua visão, é algo negativo, indesejável e que só atende a interesses parciais, exceto, naturalmente, quando está sendo conduzida por eles.

Na foto: O general Augusto Pinochet recebe o economista ultraliberal Milton Friedman (de terno preto), que colaborou intensamente com a ditadura chilena. Ao contrário de Friedman, economistas clássicos como Keynes e mesmo Adam Smith jamais tentaram ocultar o caráter político de todas as decisões económicas.

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