Celso Lopes e Flávio Almada resistem a falar do que aconteceu. Apesar de se terem passado dois anos, a dor ainda está presente.
Os dois jovens explicam porque se chegou a esta escalada de violência e propõem como resposta a resistência pacífica, não passiva, pela defesa dos seus direitos e da sua comunidade. Apelam à coragem da sociedade para "descolonizar" as mentalidades, assumir a existência de racismo e lutar contra ele.
Sei que não querem/podem falar sobre o processo judicial, sobre o que se passou a cinco de fevereiro de 2015 na esquadra de Alfragide, mas o Fábio numa pequena entrevista que deu ao DN quando se assinalaram os dois anos, disse que para aqueles agentes, vocês não eram humanos. Porque disse isso?
Flávio Almada - Eles provaram isso. O que foi diferente neste caso é que éramos seis. Se fosse só uma pessoa seria diferente. Quando todos denunciámos perceberam que, ou éramos muito bons atores, ou alguma coisa se passava. Não quero muito falar desse dia. Os chineses dizem que lembrar certos acontecimentos tristes é sentir essa dor duas vezes. Cada vez que me lembro, vejo a minha cara cheia de sangue, irreconhecível para mim próprio. Não quero perpetuar essa exumação.
E o Celso, como recuperou de tudo aquilo, com um tiro na perna pelo meio?
Celso Lopes- Só vou dizer o seguinte: de tudo o que nos fizeram o que mais me assustou foi perceber que não havia um único agente de confiança, que nos pudesse ajudar. Houve troca de turnos até. Nunca nos deixaram fazer um telefonema para a família, que estava preocupada, nada. Pedimos, pedimos e nada. Houve um momento em que perdi toda a esperança, quando um agente que estava na carrinha a transportar-nos para Moscavide (fomos passar ao noite ao Cometlis) se vira para mim, que gemia de dor, e diz: "Deixa de fingir! Se fosse eu tinha-te dado um tiro na cabeça!". Era um polícia que nem tinha estado na esquadra de Alfragide, que não tinha presenciado nada mas também tinha aquela atitude. Assustou-me muito. Fiquei mesmo com medo, achei que era o fim. Quando penso nisso, mesmo agora, tenho medo. As pessoas ficaram contentes por esta acusação ser uma coisa inédita mas não têm noção do risco que corremos.
Alguns desses agentes ainda estão na mesma esquadra, não é ?
CL- Sim, ainda no outro dia me cruzei com alguns deles. Não posso estar aqui a cantar de galo, a minha vida está em risco. Isto vai ser uma grande batalha.
Flávio, também tem medo ainda?
FA- Claro que tenho medo. Muito medo. As pessoas não têm noção do que acontece por aqui. Supostamente devia olhar para um agente policial e sentir-me seguro. Por muito que a minha cabeça queira pensar isso, o meu corpo diz o contrário. Isso rebenta com a minha cabeça. Cada vez que saio à rua penso nisso. A questão é que um polícia não é um juiz. Prende, leva, faz o seu trabalho, vai para sua casa ter com a sua família. Seja feliz. Aqui na Cova da Moura condena e castiga, agride. Seja mesmo um criminoso, tem o direito de ser apresentado em tribunal, cumprir a pena e pronto. Se reagir violentamente, a polícia tem preparação para o travar. E o facto da imagem da Cova da Moura estar completamente assassinada no imaginário coletivo da sociedade, possibilita que pessoas desonestas tirem proveito disso. Mesmo indivíduos que nem deviam estar a usar uma farda, fazem coisas e como é na Cova da Moura, não há problema. Há comportamentos inaceitáveis. Tenho medo porque sei que a polícia não vai aceitar esta acusação, é a moral deles que está em jogo. Vivo com medo.
Os jovens do bairro têm tido formação sobre "resistência pacífica com ativistas dos Panteras Negras, que o DN noticiou há uns meses...
FA- Não sei nada disso. Vi no jornal. É verdade que ninguém tem interesse em violência aqui. A resistência faz-se com a cabeça. A comunidade deve usar as leis que existem, como o direito à manifestação, o direito ao protesto, dizer o que pensa. As pessoas devem ser pacíficas, mas não passivas. Martin Luther King não era violento, mas não era passivo. Nós nunca tivemos problemas em dialogar. Mas criar um estado de exceção todos os dias na Cova da Moura não é o melhor caminho. É preciso não esquecer que Portugal tem toda uma geração de origem africana, que nasceu cá e não tem nacionalidade portuguesa. E onde estão representados no parlamento, nas autarquias? Quando nem no discurso se é incluído está tudo dito.
CL- Basta ver os outdoors que puseram em frente à Cova da Moura, sobre o concelho da Amadora. Na fotografia são todos caucasianos.
O que falhou no essencial para se chegar a este ponto?
FA- O Estado falhou. Não se fez a destruição da ideologia colonial. Criaram-se mitos e preconceitos. A escola continua a representar os africanos como primitivos, sem história, até à chegada dos europeus. O Estado falhou porque permitiu esse afastamento social.
CL- O Estado tem falhado desde sempre. Desde criança que o vejo. Na escola, como disse o Flávio. Enquanto tivermos, desde muito cedo, uma falsificação de quem nós realmente somos, uma não noção da forma como estamos representados, uma não inclusão, aí um Estado falha em toda a linha. O que aconteceu connosco na esquadra foi o que aconteceu na história passada. Éramos animais sem cultura e portanto o tratamento a dar era aquele. Essa é a receção que têm para nós.
Fonte: DN
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