Joana Mortágua* | jornal i | opinião
Recuse-se esta memória construída de um passado benevolente em que fomos menos racistas do que os outros. Ela impede a sociedade de enfrentar a evidência de que as fraturas sociais e a reprodução da pobreza andam lado a lado com o racismo
“Os polícias disseram que nós, africanos, temos de morrer.” A afirmação marca o chocante relato de seis jovens da Cova da Moura sobre a violência de que foram vítimas numa esquadra da Amadora, onde tinham ido saber do Bruno, um amigo que fora levado do bairro pela polícia. Numa acusação inédita em Portugal, 18 agentes da PSP foram acusados pelo Ministério Público de crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, com a agravante de terem sido motivados por ódio e racismo.
“Bateram-me com o cassetete, davam pontapés”, conta Bruno. “Diziam-me para me candidatar ao Estado Islâmico. Chamavam pretos, macacos, que iam exterminar a nossa raça.”
A decisão é histórica, mas não pensemos que com ela se compra o perdão – sequer o esquecimento – de todas e todos os outros jovens negros que ao longo dos anos têm sido arrastados para esquadras, invadidos nas suas casas ou parados na rua pelo simples facto de serem jovens, negros e viverem no bairro.
“Começaram a encher-me de pontapés, arrastaram-me até à esquadra. Mandaram levantar a cara e depois deram socos. Um deles vira-se e diz: ‘Esse aí é português.’ E outro: ‘Não, ele é pretoguês’.”
Tal como para estes seis jovens, para todos os outros houve uma desculpa, um caso inventado, uma certeza de impunidade por parte das forças policiais que não é própria de um Estado de direito. Infelizmente, só neste caso chegou a haver acusação a membros da polícia por crimes de falsificação de relatórios, de autos de notícia e de testemunho.
A Assembleia da República faz bem em condecorar a associação Moinho da Juventude, da Cova da Moura, pelo inegável trabalho na defesa dos direitos humanos. Mas de que valem os prémios? É uma pergunta que os dois jovens da direção da Moinho da Juventude que foram torturados pela polícia podem legitimamente colocar: de que valem os prémios se os jovens deste e de outros bairros continuam a ser tratados como criminosos pelo Estado.
“Como é que se caiu no discurso de que fomos invadir uma esquadra?”, questiona Flávio. “Sou membro da direção do Moinho, trabalhei sempre com jovens na prevenção, fiz voluntariado na prisão para trabalhar a inclusão através da arte e agora vou invadir uma esquadra?”
Como todos os tabus com que não temos estômago para lidar coletivamente, o racismo institucional não é público o suficiente para que seja assumido como problema social. Mas existe. É mais discreto nas escolas e mais violento nas esquadras. É segregador. O racismo institucional é perpetuado por uma das maiores mentiras que contamos a nós próprios para nos reinventarmos como país: Portugal nunca foi racista.
Recuse-se esta memória construída de um passado benevolente em que fomos menos racistas do que os outros. Ela impede a sociedade de enfrentar a evidência de que as fraturas sociais e a reprodução da pobreza andam lado a lado com o racismo. Sair do estado de negação, assumir a fratura social é a única forma de enfrentar o problema de frente. Trabalhar a inclusão em vez fazer raides a bairros segregados, investir na prevenção e na proximidade como chave de políticas de segurança que precisam mais da Constituição do que de rambos.
“Consegui ver a expressão de um dos polícias quando disse com uma convicção que eu não consigo reproduzir: ‘Se eu mandasse, vocês seriam todos exterminados.’ Nunca tinha visto um ódio, em estado bruto, daquela forma. Nunca tinha visto e já vi muita coisa. A expressão dele era um ódio completamente cego e aquilo assustou-me: como é que uma sociedade anda a produzir indivíduos deste tipo?”
*Deputada, escreve à quarta-feira
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