Por favor, não nos envergonhem mais
Francisco Louçã | Público | opinião
Os sucessivos episódios em torno da decisão judicial quanto à candidatura de Isaltino de Morais são um tristíssimo folhetim de verão mas também mais uma chicotada de degradação da justiça.
O que o PÚBLICO já apurou é um inventário de malfeitorias: um juiz de Sintra pede para ficar de plantão à certificação das candidaturas autárquicas de Oeiras (já tinha sido ele a decidir sobre o assunto em 2013, que afastou Morais por outro motivo) e, no último dia em que ainda estava de plantão, evitando portanto que o dossier passasse para um colega, inviabilizou duas candidaturas de movimentos cidadãos, uma delas chefiada por Morais. Mais ainda, a sua decisão desta semana contraria a sua própria jurisprudência em pelo menos um caso anterior.
Lançada esta bomba na campanha de Oeiras, veio a resposta de que o juiz de certeza estaria à espera, a revelação de que o padrinho do seu casamento é o principal beneficiado com esta decisão, o candidato Vistas, que foi o braço-direito de Morais e que ocupou o seu lugar, mas de quem é agora um inimigo figadal. Acrescenta-se ainda que a feliz consorte trabalharia para uma instituição camarária, portanto sob a chefia do presidente, candidato e padrinho Vistas.
Nada sei sobre o mérito jurídico da questão. Não ponho as mãos no fogo pelos métodos de angariação de assinaturas destas candidaturas, ignoro os seus procedimentos e só espero que a lei se cumpra. Mais, tenho todos os preconceitos contra Isaltino, de quem fui adversário quando foi ministro de Durão Barroso, de quem fui crítico no assunto dos dinheiros enviados para a Suíça para a conta do sobrinho taxista, e acho até constrangedora senão oportunista a sua tentativa de aproximação ao PS. Mas nada disso está em causa neste caso. Para um juiz, como para quem está de fora da contenda, só deveria contar se a lei se cumpriu ou não.
Ora, Vistas preferiu defender o seu apadrinhado com argumentos políticos e portanto desviar a questão para o ajuste de contas, reforçando infantilmente o ponto mais forte de Morais. Repare nas três razões de Vistas. Que é padrinho, mas havia outros, e vai uma. Que a mulher do juiz não é empregada na Câmara, só trabalha para uma empresa que trabalha para a Câmara, e vão duas. E a terceira é a mais extraordinária: que afinal tanto ele, padrinho, como Morais, têm relações pessoais com o dito juiz, porque eram todos da mesma concelhia do PSD e por lá se irmanavam. Não sei se é de rir se de chorar.
Isto diz alguma coisa sobre esses meandros de chefaturas partidárias e poderes cacicais que ocupam algumas autarquias. Para se defender, um presidente de Câmara de uma grande autarquia usa como argumento que o juiz vem do caldinho laranja e que é portanto homem de confiança. Se isto não é podridão, então diga-me por favor o que é podridão.
O Conselho Superior da Magistratura abriu logo uma investigação e procedeu bem. Suponho que os conselheiros se dão conta da onda de chacota que este caso está a suscitar e com fundamento. Tenho por isso um pedido a fazer ao Conselho: que a justiça não nos envergonhe mais.
Ainda se fosse só este caso. E quantas transcrições de interrogatórios ou de escutas nos jornais (também aconteceu no caso Isaltino), de fugas premiadas para a imprensa, de processos eternos em que não existem prazos? Tudo isto prejudica a justiça e em especial os magistrados que trabalham duramente para cumprir prazos, para investigar e combater o crime, para estudar e fundamentar sentenças. Não são poucos e merecem respeito e apoio.
E se isto fosse só um juiz que vem da secção do partido e que é afilhado do presidente e candidato do partido… Os juízes mais poderosos, mais super, mesmo no mais comezinho, interpretam a sua acção como inatingível pela crítica. Se me permite um testemunho neste mesmo registo do não-nos-envergonhem-mais, recentemente critiquei o juiz Carlos Alexandre por uma espampanante entrevista que deu. Achei despropositado o seu comentário sobre casos que tutela, achei rude o disfarce que usou para o fazer, achei feio que discutisse o seu magro salário, achei excessiva a exposição de alguém que só deve valer para o público pelo mérito da sua decisão e não por se exibir como actor de telenovela. O meritíssimo juiz vingou-se chamando-me à colação num discurso nas Conferências do Estoril, sugerindo ao país que a minha proposta de “orçamento de base zero”, uma técnica commumente utilizada quando os estados querem corrigir os seus orçamentos respeitando as prioridades definidas (os serviços têm de justificar as suas contas) era assim a modos que vizinha de uma lei de 1928, coisa da ditadura militar.
Por favor, senhores juízes, não se envergonhem mais.
*Título com ligeira alteração PG
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