A raça é uma chatice. É como um calhau que está no passeio, tropeçamos nele, e por causa disso vamos bater com as trombas no chão e partir a cana do nariz, ou torcer um pé ou fracturar um tornozelo e acabamos por andar um ou dois meses com um gesso na perna.
A raça põe problemas terríveis aos Estados, sobretudo quando nesses Estados há diversas Nações e diferentes conceitos de raça. Mas comecemos por recordar que houve países que queriam ter uma única raça, uma raça pura. Não são muitos aqueles que conheço: A Alemanha Nazi e a Coreia do Norte. Destes, só o segundo conseguiu unificar a raça. O primeiro, depois do holocausto, em que outras raças e culturas foram quase eliminadas, perdeu a guerra em que se envolveu com o objectivo de se expandir para toda a Europa e Norte de África. E a partir daí não houve outro idiota a tentar a unificação da raça excepto em áreas muitíssimo restrictas, como foi o caso da cidade da Beira, em que um dirigente central conhecido pelas suas ideias nacionalistas e racistas e pela sigla AEG, que aplicou uma regra chamada 24/20, sobre cuja origem há hoje varias versões, e que se podia aplicar a não negros e que implicava a expulsão do país em 24 horas com 20 quilos de bagagem.
A economia de Sofala ressentiu-se: eram empresas a fechar a torto e a direito. As associações económicas refilaram, tocaram os sinos das igrejas, e o Samora quis saber a razão de tanto barulho (que diabo não estamos nem na Pascoa nem no Natal!). E quando soube mandou buscar a origem do barulho, não para falar mas para o mandar prender. E ainda ficou à sombra bastante tempo. Hoje há quem pense que seriamos mais felizes se ele tivesse continuado à sombra.
Começando por volta do século XV, a escravatura, veio baralhar bastante as raças. Cerca do ano 1500, depois do ano zero, Lisboa tinha mais pretos do que brancos. Os escravos vinham da África negra e compravam-se junto à costa, nos mercados, onde os traficantes os vinham vender. O mesmo aconteceu noutros países europeus, talvez em menor escala, mas em maior número e alguns da América do Sul (sobretudo no Brasil), central e nos Estados Unidos na América do Norte. Neste ultimo país, houve mais tarde, excedentes de mão de obra e decidiram devolver a África muitos navios cheios de escravos, criando um novo pais situado numa zona donde supunham que eles tinham vindo, não eles, mas os avós ou bisavós. E assim nasceu a Libéria.
Voltando a Portugal, depois daquela abundância que houve nos séculos XV e XVI, que permitiu ocupa-los nos trabalhos domésticos e na lavoura, tornando produtivos os latifúndios que não eram aproveitados. Este trabalho escravo, só aparentemente era barato pois embora não se pagasse salários, havia que alimentá-los. Feitas as contas os escravos ficavam mais caros que os camponeses alentejanos que recebiam salário e comiam por sua conta. Sem me alongar, resumindo, libertaram os escravos, que passaram a funcionar como proletariado (lumpenproletariat). Três séculos depois Lisboa volta a ter o aspeto que tinha dantes, já não se viam pretos. Para onde foram?
Foi isso que o Dr. Ribeiro do Rosário, docente e meu professor na Faculdade de Medicina de Lisboa, procurou saber, investigando, começando pelo Alentejo. Verificou, nas aldeias, onde dirigiu a investigação, que praticamente toda a população “branca”, tinha nos glóbulos vermelhos do seu sangue hemoglobina S característica da raça negra (Cá estão eles!). A população alentejana absorveu os pretos ou estes absorveram os alentejanos? Será mais correcto falar-se em mistura ou miscigenação. Não tenho conhecimento do que aconteceu no resto daquele pais, nem o Dr. Ribeiro do Rosário, acho que interrompeu o estudo, pois foi colocado em Lourenço Marques, como Reitor dos Estudos Gerais Universitários, a substituir o que cá estava, que passou para o governo.
Voltando a África, na África do Sul, os brancos, resolveram introduzir uma política racial que separava a raça negra em todos os aspectos da vida, e que se chamava apartheid. Na introdução desta politica tropeçaram em muitos calhaus! Afinal como se define um negro? Era aquele que não era branco? Então e os mulatos? Estes não eram apenas o resultado da miscigenação de pretos e brancos, mas também de indianos, que começaram a vir para este país em fins do século XIX para trabalhar nas plantações de cana do açúcar e nas agroindústrias de produção de açúcar, situadas no litoral leste a Sul da fronteira com Moçambique até Durban, cidade com maioria indiana. Não posso deixar de referir que depois de cursar direito em Londres, da morte da sua mãe, não conseguindo encontrar emprego na Índia, veio para a África do Sul em princípios do século XX, Mahatma Ghandi, trabalhar como advogado numa empresa.
Envolve-se de imediato na luta pelos direitos humanos da comunidade indiana, corresponde-se com libertários europeus, em particular Leon Tolstoi, aproveitando o tempo que passa na cadeia nas imensas vezes em que é preso. É nesta fase que vai delinear ideias como a não violência, satiagraha, desobediência civil e outras. A estadia de mais de 20 anos de luta na África do Sul, considero uma forja, um estágio e preparação para uma luta mais alargada que se vai seguir pela independência da Índia.
Voltando à introdução do apartheid, a coisa estava encravada, não se conseguia definir claramente e de forma fácil, quem era negro, quem não era. Foi então, que alguém com uma imaginação espantosa (reparem que eu não falo em inteligência espantosa), inventou a “prova do pente”: todos os que não eram cem por cento negros tinham que passar por uma esquadra de policia e aí tinham que por um pente no cabelo. Se o pente ficasse preso no cabelo, era negro. Se o pente caísse era branco. E o resultado da prova era de imediato carimbado no documento de identificação. Se queriam saber se Nelson Mandela foi a alguma esquadra por o pente, desiludam-se, porque eu não sei. Confesso que pensei nisso. Tentei informar-me, mas ninguém sabia. Se quiserem ler uma historia bastante detalhada sobre o nascimento e o período do apartheid na RSA, procurem um livro chamado “Ah, But Your Land Is Beautiful” de Alan Paton, que emprestei a alguém, livre de qualquer suspeita, mas que nunca mo devolveu. O autor era Presidente do Partido Liberal da RSA, muita gente deve lembrar-se doutro livro dele chamado “Chora, Terra Bem Amada”.
Na preparação do Censo Geral da População e Habitação, o Instituto Nacional de Estatística também tropeçou no calhau da raça. O calhau que pontapeou foi a curiosidade ou a necessidade que havia de conhecer com todo o detalhe as diversas pessoas que há no nosso país e para isso foi preciso inventar uma nova raça, coisa impensável nas quatro partidas do mundo, mas que aconteceu em Moçambique: foi preciso inventar a raça paquistanesa. E quando a simpática e muito eficiente recenseadora nos explicou as alternativas que havia quanto a raça, e nos disse entre as várias hipóteses a raça paquistanesa, quem apanhou com o calhau na testa fui eu. E fico por aqui.
Como de costume, findo o que escrevo com um poema ou um pensamento, Desta vez escolhi o poeta persa Omar Khayyam (Omar Ibn Ibrahim El Khayyam- Persia-1040-1125) do livro “Rubaiyat” que significa quartetos. Além de poeta foi matemático e astrónomo, e fez o calendário islâmico.
Morreu antes de D. Afonso Henriques tomar Lisboa aos mouros.
“Os dias passam rápidos como as águas do rio ou o vento do deserto.
Dois há, em particular, que me são indiferentes:
o que passou ontem e o que vira amanha.”(17)
“Na Primavera gosto de sentar-me a orla de um campo florido.
Bebo o vinho que me oferece uma linda rapariga e não cuido da minha salvação.
Se tal pensamento me ocupasse, eu valeria menos que um pobre cão.”(22)
“O criador do universo e das estrelas excedeu-se quando inventou a dor.
Lábios vermelhos como rubi, cabelos embalsamados, quantos sois neste mundo?...“(33)
Sempre que ouço dissertar sobre os gozos reservados aos Eleitos, limito-me a dizer:
“Só tenho confiança no vinho. Moeda sonante e não promessas!
O ruído dos tambores é belo a longa distância… “(39)
“Bebe vinho! Só ele te dará a mocidade, ele é a vida eterna! Divina estação das rosas, do vinho e dos bons amigos! Sê feliz um instante, o instante fugitivo que é a tua vida...“(40)
“Bebo vinho como a raiz do salgueiro bebe a água da corrente. Deus só é Deus, só Deus sabe tudo, dizes. Pois bem: quando ele me criou, sabia que eu beberia vinho. Se me tornasse abstêmio, a ciência de Deus estaria errada. “(112)
(tradução feita por mim de uma edição francesa. Os números representam o poema, o tal quarteto, nessa edição)
* Por José Maria de Igrejas Campos. Médico Especialista em Saúde Publica. Docente da Faculdade de Medicina da UEM, Membro do Partido Frelimo.
Fonte: Jornal Verdade de Moçambique
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