quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Monchique. Histórias de quem recomeça e o reacender do medo

O limão que sobreviveu junto à casa do alemão Johannes parece um símbolo de esperança na paisagem que o fogo desolou em Monchique. Com as colunas de fumo dos incêndios em Fóia e Silves ao fundo, as pessoas regressaram a casa para ver o que o fogo lhes deixou
O acordar a seguir à passagem do fogo é agridoce. Em Monchique, a vila do Algarve que esteve a braços com as chamas durante quatro dias seguidos, há agora uma nuvem de desesperança. A luz e as comunicações móveis foram repostas, mas faltam meios essenciais e ainda não há televisão nem internet. E enquanto uns fazem contas aos prejuízos, outros experimentam a alegria de pequenos milagres.
No caso de Johannes Babin, o milagre é um pequeno limão que escapou, ileso, à força das chamas que conseguiram varrer uma encosta inteira – um minúsculo ponto amarelo numa área gigante pintada de negro. Quando, há seis anos, Johannes e mulher, Ines, deixaram a Alemanha e escolheram a serra de Monchique para viverem em paz, depois de procurarem por propriedades em toda a Europa, ela plantou um limoeiro à porta da vivenda que entretanto construíram porque sabia que era a árvore preferida dele. Ficou seca a seguir à passagem do fogo, mas o pequeno limão resistiu, muito amarelo.
O alemão só ontem ao final da manhã conseguiu a regressar a casa, com o coração nas mãos e sem saber o que iria encontrar no Cerro da Casinha, depois de quatro noites a dormir aqui e ali, com a roupa que tinha no corpo na noite de domingo, quando fugiu às chamas, de carro. E, à chegada, nem quer acreditar na sorte: a casa amarela que construiu com as próprias mãos, no meio de uma encosta de floresta com uma vista que se desenha por quilómetros sobre a serra de Monchique até se perder na linha de horizonte, não foi sequer tocada pelas chamas.
Tudo o resto, à exceção do pequeno limão, ficou queimado. Johannes faz-nos uma visita guiada pela propriedade, desolado, transpirado e sujo. “Isto aqui também ardeu?”, pergunta, admirado, à passagem por um dos extremos do terreno, onde se amontoam canos derretidos. À medida que avança pelos restos de árvores mortas e negras, o alemão vai também somando o valor dos prejuízos e explicando, com a lucidez e a força de quem só quer voltar a viver, o que será preciso consertar. A primeira avaliação é dura: pelo menos 20 mil euros.
No fundo da encosta, e à beira da única estrada de acesso a Monchique que tem estado aberta e que começa em Silves e atravessa Odelouca, é tempo de fazer contas aos estragos em praticamente todas as casas. “Aqui era onde estavam as ferramentas e um frigorífico antigo onde guardava os pesticidas”, aponta Manuel Rodrigues, 64 anos, que ficou sem vários anexos no lugar da Laranjeira. Só os tubos de irrigação do terreno vão custar mais de três mil euros, fora as duas bombas elétricas que traziam água da ribeira de Odelouca e que ficaram transformadas em metal derretido.
O incêndio também lhe queimou a porta de casa e estragou a pintura, mas para já não é possível reparar nem remover os destroços: ainda não há água nem luz. “Esteve aí um funcionário da EDP de manhã [ontem], mas enganou-se no fusível que trazia e não me pôde repor a eletricidade. Teve de voltar para trás e nunca mais voltou a aparecer”, queixa-se o idoso.
No entanto, a maior revolta de Manuel Rodrigues é ter tudo limpo à volta da casa e, mesmo assim, ter sofrido com o fogo. “Gastei mais de 400 euros para limpar isto tudo”, lamenta-se. E a seguir fala com certeza e irritação: se não tivesse sido obrigado a sair de casa pela GNR, ao início da noite de domingo, nada do que lhe ardeu teria ardido. O idoso tem ainda outra certeza: os bombeiros tiveram “pelo menos três oportunidades” para travar o incêndio, na sexta-feira, no sábado e no domingo, antes de chegar a Monchique, “mas não o quiseram fazer”.
filosofia do deixar arder A filosofia do combate nos primeiros dias, diz-se agora à boca cheia na vila, foi “deixar arder”. E quando o vento se agravou, no domingo ao final do dia, é que o combate acordou. Só que aí, dizem as gentes de Monchique, já não havia nada a fazer. Nessa altura, já ninguém tinha mão nas chamas.
O vizinho de Manuel, Vitorino Rodrigues, é dono de uma taberna onde em tempos havia um campo de tiro que garantia a clientela e o sustento da família. Mas o campo foi mandado fechar e os clientes, agora, escasseiam. Por isso, resolveu dedicar-se à plantação de medronho e de ervas aromáticas e criou uma marca. Boa parte do esforço perdeu-se: 10 hectares de medronho morreram e um hectare de ervas aromáticas também não resistiu à passagem do lume. E Vitorino, 36 anos, jura que houve “falta de coordenação” no combate e queixa-se de que os bombeiros, vindos de fora, não conhecem o terreno. Além disso, conta, na febre da evacuação de domingo à noite, dois idosos foram deixados para trás. “Simplesmente, esqueceram-se deles.” Porém, como a casa não ardeu, acabaram por ficar bem.
Quanto a Vitorino, quando a GNR lhe pediu para sair, com as chamas a assomarem vindas de uma das encostas, concordou imediatamente em partir. No entanto, quando regressou, já com a manhã a raiar, percebeu que a dimensão do fogo não era o que lhe parecera de noite. E agora, enquanto anda de roda dos terrenos a avaliar os estragos, arrepende-se de se ter ido embora. Se tivesse ficado, talvez tivesse conseguido salvar parte da plantação.
Em Monchique, os caçadores também fazem contas ao que perderam. Rui Nobre, o presidente da Associação Caça e Pesca “Os monchiquenses” – encarregada da gestão de mais de 12 mil hectares de área cinegética espalhados pela serra de Monchique –, diz que só 10% da zona caçável escaparam às chamas. O clube aguarda a chegada de quatro toneladas e meia de trigo para começar a deitar mãos à obra. Vão distribuir o cereal pelas serranias para garantir o alimento aos poucos animais que devem ter sobrevivido. O carregamento era para ter chegado na segunda-feira mas, com os acessos dificultados, só deverá chegar ou hoje ou amanhã.
“Agora é tudo incerto”, desabafa. Este ano, a caça até prometia. Como há dois anos houve um incêndio na zona da Fóia (a mesma que tem estado a arder), multiplicaram-se as perdizes, que ficaram livres de predadores. E a associação investiu quatro mil euros em cereais e comedouros e bebedouros – dinheiro que agora não poderá ser reposto. Até porque, a avaliar pela experiência do grande fogo de 2003, a fauna vai demorar a estabilizar. “Da última vez, só passados três anos é que algumas espécies começaram a equilibrar.”
uma Normalidade desconcertante Na vila respira-se uma normalidade que aflige e desconcerta quem vem de fora. No restaurante Bela Vista, na zona nobre de Monchique, servem- -se refeições outra vez. Só não há é arroz. Também não há multibanco para os clientes nem internet. No meio de tanta necessidade, a crise também acabou por afetar a Altice: o CEO esteve em Monchique e, anteontem à noite, foi obrigado a jantar tostas e batatas fritas de pacote num restaurante local. Era o que havia para servir.
Entretanto esgotou-se o dinheiro nas ATM e os bancos não abrem desde sexta-feira. Não há televisão e o único hipermercado teve de fechar portas anteontem, por as prateleiras estarem vazias. Os fornecedores tardam em chegar e só a farmácia tem sido abastecida de medicamentos por patrulhas da GNR. Por estes dias, as compras de remédios têm sido algo monótonas, com as pomadas para as queimaduras a lideraram as vendas.
Uma mulher aproxima-se do balcão e pede ajuda: conta que tem vários cães feridos em casa. A farmacêutica é rápida nas recomendações e na prescrição dos remédios, porque a veterinária municipal deixou instruções para casos assim: “Vai lavar as feridas com este soro fisiológico e depois tenta retirar as crostas da pele que estiver queimada, e a seguir aplica esta pomada.” A mulher desfaz-se em lágrimas. “Se eles tiverem muitas dores, pode tentar dar-lhes isto”, continua a farmacêutica, enquanto tira uma pequena caixa com um medicamento de debaixo do balcão.
 com o fumo dos incêndios em Fóia e silves ao longe Só ontem Monchique acordou finalmente com o sol de agosto e o ar respirável. Ao longe, por detrás dos montes, ainda se viam colunas de fumo – havia duas frentes de fogo ativas, em Fóia, a nordeste, e em Silves, a sudoeste, além de um reacendimento mais próximo, junto a Odelouca e a Caldas de Monchique, que acabou por ditar o encerramento da única estrada de acesso à vila nos últimos dias: uma espécie de serpente de alcatrão a rasgar montes, encostas e vales completamente negros.
Com os fios de fumo ao longe, houve quem aproveitasse para passear de bicicleta pelo centro, outros fizeram jogging. Os velhos voltaram aos bancos dos jardins e os turistas regressaram às esplanadas. Ainda assim, a aflição dos últimos dias é facilmente denunciada. Pelos carros de bombeiros que persistem em atravessar a vila, constantemente e em velocidade acelerada; pelo frenesim no posto de comando que continua instalado junto à escola local; e, sobretudo, pelo verde que as encostas perderam. O movimento nas ruas também é estranho: batalhões de bombeiros seguem a pé, agora com os rostos menos fechados; técnicas da Segurança Social andam de um lado para o outro a falar ao telemóvel; elementos da Cruz Vermelha, fardados, comem gelados à porta de um café e conversam animadamente.
Porém, a calmaria durou pouco. Por volta das duas da tarde, volveu o vento a soprar, furioso e constante. Cerca das 18 horas, a vila começou a ser sobrevoada por helicópteros a rodopiar de um lado para o outro, numa cadência ritmada, e as sirenes voltaram a tocar. E, à noite, Monchique estava outra vez inacessível.
 Fonte:ionline

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