terça-feira, 23 de outubro de 2018

Macroscópio – Fugir às ideias feitas. A começar pelo Brasil, a acabar aqui mesmo ao lado

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
 Esta é a semana das eleições brasileiras, a semana em que olhamos para a disputa eleitoral cujo desfecho parece pré-determinado: Jair Bolsonaro vai vencer e seguir para o Palácio do Planalto, levado ao colo pela fúria de todos quantos rejeitam os anos de governação do PT e têm medo. Muito se tem escrito em Portugal sobre esta eleição, demasiado sobre aquilo que se diz ser Bolsonaro, porventura demasiado pouco sobre o que levou o Brasil à situação em que se encontra. O Macroscópio, como sabem os meus leitores, gosta de estimular a que se pense diferente, a que se olhe a partir de outros pontos de vista. Por isso hoje vou começar pelo Brasil (e pela autoridade de Fernando Henrique Cardoso) mas depois seguirei por diferentes águas sempre seguindo um mesmo fio condutor: os textos que vou recomendar propõem leituras surpreendentes e estimulantes.
 
Vamos então ao que escreveu o antigo presidente do Brasil no El Pais, um texto que merece ser lido na íntegra: El futuro político de Brasil. Nele Fernando Henrique Cardoso, que se mantém neutral nesta segunda volta, considera que estamos onde estamos porque “Bolsonaro representa el ansia de orden ante el miedo a lo desconocido”, mas apela a que não nos deixemos levar por slogans fáceis: “No se trata de la vuelta al fascismo: la historia, en este caso, no se repite. Se trata de otras formas de pensamiento y acción no democráticas. Ya no vivimos en los tiempos de la Guerra Fría. No se trata de la vuelta del autoritarismo militar con la bandera del anticomunismo. Lo que sucede hoy no lo han planificado las Fuerzas Armadas, aunque, paradójicamente, estas aumentarán su voz por la decisión de las urnas. Asimismo, espero que también sirvan de muro de contención contra explosiones de personalismo autoritario o de “justicia por las propias manos” de grupos exaltados. La batalla que se ha de librar es la de la reconstitución de la institucionalidad democrática en sociedades interconectadas y fragmentadas. Hecha la autocrítica (los partidos se bañaron en la corrupción y los poderosos de la economía no entendieron que la desigualdad puede llevar a la desesperación), debemos seguir luchando por el futuro de Brasil y de su pueblo, sin ser masa de maniobra en pro de uno u otro líder o partido.”
 
Já aqui tinha citado a semana passada Fernando Henrique, e era interessante que todos os que ainda pedem que se dê mais uma oportunidade ao PT o escutassem, pois não deve ser fácil para alguém como ele ficar neutral quando na liça está alguém como Bolsonaro. A verdade porém é que o PT deixa um rasto de destruição atrás de si, como tem vindo a descrever no Observador o jornalista brasileiro, actualmente a estudar em Portugal, José Augusto Filho. No seu mais recente artigo, A agonia da esquerda brasileira, ele defende que “O PT é o escorpião da fábula. Em condições normais, ninguém acredita num partido que sempre agiu de forma antidemocrática e vocacionada para o crime. O cinismo da campanha de Fernando Haddad apenas expõe as vísceras de um partido que sangra em praça pública. Mesmo desmascarado, o PT insiste no equívoco, e assim expõe a sua militância e os seus eleitores (os que ainda guardam o mínimo de dignidade) ao constrangimento. É praticamente certo. Melancolicamente, o lulopetismo desaparecerá da política brasileira com a vitória do seu mais perfeito antípoda, em 28 de outubro. Contudo, a depender do que vier a ser revelado pela delação premiada de Antonio Palocci, cujo julgamento ocorrerá a apenas quatro dias da votação, o PT, de maior partido da América Latina, poderá entrar para a história como uma das principais organizações criminosas do continente.”
 

Mas deixemos o Brasil, sobre o qual muito ainda haverá a escrever e reflectir e, continuando no Novo Mundo, chamo a atenção para uma análise surpreendente de Gideon Rachman, o principal analista internacional do Financial Times, que em Donald Trump embodies the spirit of our age procura explicar como é que o presidente dos Estados Unidos tem conseguido, apesar de tudo e de todos, levar a água ao seu moinho. Num texto onde recorda a definição do que é uma figura histórica para Hegel, o colunista recorda as várias viragens de rumo que Trump já obrigou a América a dar e recorda a sua especial intuição para apanhar o “espirito dos tempos”: “On the domestic front, future historians might note that Mr Trump was the first president to notice the huge gap that had opened up between elite American opinion and that of the wider public — on a range of issues from immigration, to trade, to identity politics. As a candidate and then as president, he ruthlessly and effectively exploited these divisions. Mr Trump said and did things that conventional analysts regarded as political suicide. But his instincts proved better than those of the pundits. Despite his age, Mr Trump also “got” new media — and exploited it far more adeptly than other politicians.” Um texto que faz pensar mesmo quem detesta as políticas de Trump, sendo que “But even ultimate failure and disaster would not invalidate Mr Trump’s claim to be a truly historic president. The president may think that greatness is all about “winning”. But Hegel suggested that things usually end badly for world historical figures: “They die early like Alexander, they are murdered like Caesar; or transported to St Helena like Napoleon.” A cheering thought for Mr Trump’s many foes.”
 

Se esta análise é um descascar cru dos dias que vivemos, America Is Living James Madison’s Nightmare, de Jeffrey Rosen na The Atlantic, é uma reflexão sobre como nem mesmo o cuidado tido pelos fundadores dos Estados Unidos terá sido suficiente para prevenir o que está a suceder: “The Founders designed a government that would resist mob rule. They didn’t anticipate how strong the mob could become.” É que, como se escreve a dada altura, “These are dangerous times: The percentage of people who say it is “essential” to live in a liberal democracy is plummeting, everywhere from the United States to the Netherlands. Support for autocratic alternatives to democracy is especially high among young people. In 1788, Madison wrote that the best argument for adopting a Bill of Rights would be its influence on public opinion. As “the political truths” declared in the Bill of Rights “become incorporated with the national sentiment,” he concluded, they would “counteract the impulses of interest and passion.” Today, passion has gotten the better of us. The preservation of the republic urgently requires imparting constitutional principles to a new generation and reviving Madisonian reason in an impetuous world.”
 
Estes temas também são abordados por José Carlos Fernandes no especial do Observador “Eu sou a Constituição!”: a ascensão do populismo e o declínio da democracia, que tem como ponto de partida um livro recentemente editado em Portugal, “Como morrem as democracias”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O texto é uma síntese desta interessante obra, que teve muito impacto nos Estados Unidos e nos conta como o país resistiu no passado a vários candidatos populistas, e como agora não resistiu a Trump, mas José Carlos Fernandes interroga-se sobre se as soluções propostas serão as melhores: “Apesar de estarem bem informados sobre a realidade política do resto do mundo, Levitsky & Ziblatt também não se dão conta de quão aberrante é um sistema político que, desde meados do século XIX, não conheceu outros partidos relevantes que não fossem os Democratas e os Republicanos (com excepção do efémero Partido Populista, uma ala esquerda dos Democratas, que conheceu efémero florescimento em 1892-96). E quando Levitsky & Ziblatt propõem soluções para diminuir a polarização da política americana, estas estão limitadas aos partidos Democrata e Republicano, quando o melhor que poderia acontecer à claustrofóbica democracia americana seria a irrupção de outros partidos com representação no Senado e na Câmara dos Representantes. Na verdade, a polarização a que hoje se assiste na política americana resulta em parte de mais de séculos e meio de convivência malsã entre dois “irmãos inimigos” que vivem isolados numa torre e nunca falaram com mais ninguém.”
 
Passando para a Europa, dois textos que são também dois alertas. O primeiro é sobre França, um país a que prestamos pouca atenção talvez por pensarmos bem entregue a Emmanuel Macron, mesmo que este enfrente baixíssimos níveis de popularidade. Acontece porém que por baixo dos radares parece haver problemas que se agravam, como relata Gavin Mortimer na Spectator, em France is fracturing but Macron remains in denial, um texto onde se recorda o diagnóstico do demissionário ministro do Interior:“The situation is very difficult and the phrase ‘Reconquering the Republic” is apt because in these districts it’s the law of the strongest that reigns, that of the drug dealers and radical Islamists, which has supplanted the Republic.” Ups!, que é isto? Bem é a mesma realidade retratada num recente livro de jornalistas do Le Monde: “These fractures aren’t the figment of the right’s imagination. Two well-known journalists from the left-wing Le Monde newspaper this week published a book that describes the extent of the Islamisation of Seine-Saint-Denis, to the north of Paris, where trade unions are now organised along religious lines, bus drivers refuse to shake the hands of their female colleagues and schoolgirls excuse themselves from swimming lessons.”
 
Para os que não sabem, ou não se recordam, Saint-Denis é o subúrbio de Paris onde se situa a catedral que serviu durante séculos de panteão aos reis franceses e hoje está o Stade de France, um dos locais visados nos atentados terroristas de Novembro de 2015. É certo que depois de Paris, Nice e Barcelona, as medidas de segurança tomadas por toda a Europa, a par com a derrota militar do Estado Islâmico, permitiram que não tenhamos assistidos a grandes atentados, mas as realidades descritas no parágrafo anterior levam a dar razão a R.W. Johnson quando este, na Standpoint, argumenta sobre The inevitability of Fortress Europe. Eis o seu ponto de vista: “Fortress Europe seems inevitable. At present there is much reliance on reaching accords with border states like Turkey or Libya to stem the flow there and, of course, there is a lot of earnest lip service to the idea of helping African and Middle Eastern societies to develop so that their people will not wish to quit them in such numbers. It seems unlikely that these border arrangements will last, and while European aid to Africa is praiseworthy, it is idle to imagine that it will make a decisive difference unless the problem of Africa’s poor governance is solved. And perhaps not, even then.” Sendo que mesmo assim deixa o alerta: “Meanwhile what is important is that whereas a generation or two ago few Africans were at all conscious of what life was like in Europe, now everyone can see on their mobile phones how much better life in Europe is than what they face in an increasingly turbulent and chaotic Africa. This alone will guarantee a large and steady flow of would-be economic migrants. If Europe doesn’t want these people it is going to have to be extremely determined, efficient and even ruthless in turning them away. After all, the Romans didn’t manage it.”

 
E agora chegamos aonde talvez não esperássemos chegar: essa Europa-fortaleza já está a ser erguida mesmo quando a retórica é a contrária. Este trabalho do Pew Research Center, The most common Mediterranean migration paths into Europe have changed since 2009, mostra muito claramente como a rota turca foi fechada depois do catastrófico Verão de 2015 e que a dureza de Salvini já quase fechou a rota síria em 2018, sendo que neste neste momento o maior fluxo se faz a Ocidente, através de Marroco e em direcção a Espanha, mas numa dimensão muito mais reduzida. Em concreto: “Until 2018, the Morocco-to-Spain route – also known as the western route – had been the least-traveled Mediterranean migration path, with a total of 89,000 migrants arriving along Spain’s coastline since 2009. But between January and August 2018, this route has seen over 28,000 arrivals, more than the central Africa-to-Italy central route (20,000 arrivals) and the Turkey-to-Greece eastern route (20,000 arrivals). One reason for this is that Spain recently allowed rescue ships carrying migrants to dock after other European Union countries had denied them entry.” Vale a pena entrar no artigo e ver o detalhe do gráfico que reproduzi acima. 

E por hoje é tudo, com uma dose de inquietações suficiente mas não impeditiva do meu habitual desejo de que tenham bom descanso e boas leituras.

 
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