A tradição cristã da desobediência civil não-violenta é invocada por membros de várias igrejas cristãs para se associarem aos protestos pelas mudanças climáticas. Alguns admitem mesmo ir presos em nome desse protesto.
Nove dias depois do início dos protestos da Extinction Rebellion (Rebelião da Extinção) em Londres, no dia 15 de abril, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI/WCC) decidiu publicar uma fotogaleria na sua página digital mostrando o modo como a tradição cristã da desobediência civil não-violenta está ativa também nestes protestos de Londres contra as mudanças climáticas e a ausência de decisões políticas eficazes sobre a matéria.
Alguns deles admitem ser presos enquanto o CMI, que reúne três centenas e meia de igrejas protestantes e ortodoxas, pretende com esta iniciativa fotográfica fazer crescer a participação cristã nos protestos da mudança climática.
O Extinction Rebellion protagonizou já também várias ações de protesto em Portugal, de que o último exemplo foi a interrupção de um discurso do primeiro-ministro, António Costa.
Na fotogaleria publicada no site do Conselho Mundial de Igrejas, o fotógrafo Sean Hawkey retrata várias pessoas – incluindo padres anglicanos – envolvidos na manifestação, que tem crescido nos últimos dias: em Londres, mais de mil ativistas já foram detidos, depois de terem controlado ou bloqueado várias ruas e praças; e em Paris, na sexta-feira, também se registou uma manifestação contra a “República dos Poluidores”.
Nas fotos divulgadas na página do CMI, podem ver-se pessoas de diferentes gerações a serem presas, outras a dormir no chão, outras a manifestar-se com cartazes.
Giles Goddard, vigário anglicano de St John’s, Waterloo, decidiu ajudar os manifestantes abrindo a igreja para que eles possam descansar. “Concretizo a fé através da rede climática. Todas as principais religiões têm o cuidado com a criação no centro do que elas prezam. Agora, mais do que nunca, é extremamente urgente que tomemos medidas pelo cuidado da criação de que somos responsáveis”, diz, citado pelo CMI.
Outro clérigo, no caso o padre católico da congregação dos passionistas, Martin Newell, justifica deste modo a sua participação: “Estou aqui porque temos uma emergência climática, precisamos de fazer mudanças radicais na nossa economia e, para isso, precisamos de um terramoto político. Para que isso aconteça, precisamos de uma revolta civil não-violenta.”
O padre Newell, que integra também a Christian Climate Action (Ação Cristã pelo Clima), acrescenta outras motivações e objetivos concretos: “Precisamos de ter uma economia de carbono zero até 2030, o mais tardar. Este tipo de mudança não tem precedentes na história da humanidade, por isso queremos que o governo declare o estado de emergência e lide com a questão como uma emergência e não como de costume.”
A ação não-violenta pode, no entanto, ter consequências que o padre católico está disposto a enfrentar: “Ser preso, ir para a prisão, é algo que estou disposto a fazer. Não é algo que eu queira, tenho outras coisas que prefiro fazer com a minha vida, mas estou disposto a fazer algo para que a mudança aconteça. E há muitos de nós dispostos a fazer sacrifícios. Por mim, tento seguir Jesus, ele mostrou-nos o poder redentor do amor sofredor, na cruz e na sua paixão. Esse é o caminho da cruz, é o caminho que sou chamado a seguir nestas situações.”
A participação dos cristãos já se traduziu mesmo na organização de tempos de oração inter-religiosas, organizadas pela presbítera anglicana Helen Burnett, da paróquia de Caterham e que contou com a participação de Rowan Williams, ex-arcebispo de Cantuária e primaz da Comunhão Anglicana. “Há um profundo sentimento de crise espiritual que está profundamente entrelaçada com a crise ecológica que estamos a enfrentar. Este é um movimento que une tudo isso”, dizia também ao CMI.
“À beira de um suicídio”, dizia o Papa
Na segunda metade de 2015, a propósito da Cimeira do Clima, em Paris, vários grupos cristãos mobilizaram-se para pressionar os governos no sentido de que estes tomem decisões concretas: uma peregrinação de cristãos atravessou vários países europeus, uma petição que congregou as redes Act Alliance (protestante) e Global Catholic Climate Movement (católica) reuniu quase um milhão de assinaturas. O texto, que tinha também o apoio explícito do Papa Francisco, afirmava: “A mudança climática afeta a todos, mas principalmente aos mais pobres e vulneráveis entre nós.”
No voo que o levou ao Quénia, Uganda e República Centro-Africana, pouco antes da Cimeira de Paris, naquele que foi um dos seus apelos mais dramáticos, o Papa dizia: “É agora ou nunca mais! Até hoje, fez-se pouca coisa e, cada ano que passa, os problemas são mais graves. Atingimos o limite! Estamos à beira de um suicídio – para usar uma palavra forte.”
O texto da encíclica tem servido também de inspiração para várias intervenções de cristãos no campo ambiental – quer individualmente, quer em diferentes organizações confessionais ou ecuménicas. Marcial Felgueiras confirma isso mesmo: “A Laudato Si’ é um texto profético para toda a Igreja [cristã], até vir a ser plenamente entendida e vivida pelos cristãos. Há muito caminho a fazer ainda e a encíclica pode ajudar.”
Um princípio fundamental do Deus da Bíblia
“Preocupar-se com o conjunto da criação de Deus é um princípio fundamental do Deus da Bíblia e vital para o cumprimento da sua finalidade, para os seres humanos”, escreve Dave Bookless, pastor anglicano e diretor teológico de A Rocha, organização ambientalista de inspiração cristã. Ainda mais neste tempo em que as alterações climáticas e vários outros problemas colocam em questão a própria sobrevivência do planeta – da humanidade e da natureza em conjunto.
No livro Dieu, L’écologie et moi (Deus, a ecologia e eu), Dave Bookless acrescenta que a missão de salvação de Deus “não se destina apenas às pessoas que Deus criou, que ele ama, cuida e para as quais restaurou um relacionamento justo com Ele através de Jesus, mas abrange toda a criação”.
“Qualquer cidadão, com qualquer fé ou sem nenhuma, tem uma responsabilidade ambiental. Mas, para um cristão, essa responsabilidade tem um suporte bíblico, pois o primeiro mandamento é lavrar e cuidar da terra”, acrescentava, em declarações à revista Bíblica, Marcial Felgueiras, responsável da Cruzinha, o centro de interpretação e investigação de A Rocha no Algarve.
Esta não é uma organização diferente de muitas outras, acrescenta o responsável português da organização. “O que nos torna únicos é combinarmos diferentes características, sendo uma delas a fé cristã, pela esperança que ela nos traz de que o mundo criado pela bondade de Deus terá um destino final bom.”
Marcial Felgueiras pensa, no entanto, que há ainda muito por fazer em conjunto: “O trabalho ambiental não é feito apenas de grandes coisas. Ela tem a ver com pequenos hábitos familiares quotidianos, como o poupar água e luz, ter uma condução amiga do ambiente ou reduzir o consumismo. Esquecemo-nos que essas tarefas pequenas são muito importantes. Mas há muito para fazer também a nível ecuménico e interconfessional.”
7 Margens
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