Parece um
romance policial. Em 2009 duas historiadoras inglesas visitaram uma mansão
perto de Oxford e aí encontraram um quadro do século XVI que retratava uma rua
renascentista. Não se sabia se era uma rua real ou imaginada, nem quem a tinha
pintado. Depois de uma longa pesquisa, as historiadoras chegaram à conclusão de
que se trata de uma rua bem portuguesa que foi palco do comércio de mercadorias
de todo o mundo.
A casa foi
construída pelo escritor, artista e filósofo socialista William Morris, uma
figura pública da Inglaterra vitoriana. Lá viveu desde meados do século até à
sua morte, em 1896. É uma daquelas quintas inglesas cheias de carácter, rodeada
por um lindo jardim e recheada com móveis, livros e objectos de grande
qualidade. A viúva, e depois as filhas, conservaram tudo intacto até que, com o
falecimento da última, a casa passou para uma organização chamada Sociedade dos
Antiquários de Londres, que a mantém aberta ao público. Qualquer pessoa pode
passar uma tarde agradável nos jardins ou a inspeccionar a preciosa biblioteca
de William Morris.
Em 2009 duas
historiadoras inglesas, Kate Lowe e Annemarie Jordan Gschwend, visitaram esta
mansão do século XIX, Kelmscott Manor, localizada perto de Oxford. As duas
historiadoras repararam num quadro do século XVI que o pintor Dante Gabriel
Rossetti, amigo de Morris, lhe terá oferecido, ou vendido, e que estava
atribuído à escola de Velázquez. Mostra uma rua renascentista, e não se sabia
se era real ou imaginada, nem quem a tinha pintado.
Lowe e
Gschwend pesquisaram longamente, à procura de referências, tanto em livros e
documentos, como na própria pintura. Finalmente chegaram à conclusão,
indisputada, de que se trata da Rua Nova dos Mercadores, na baixa da Lisboa
manuelina. Ficava onde agora passa a Rua da Alfândega, e era o percurso mais
cosmopolita numa cidade onde se negociavam mercadorias de todo o mundo. Além de
algumas descrições da sua opulência, apenas existem poucas gravuras da cidade
inteira, sem pormenores das ruas. A Rua Nova dos Mercadores foi evidentemente
destruída pelo terramoto de 1755, e nunca mais voltou ao esplendor da Era das
Descobertas. O que resta hoje é a fachada manuelina da Conceição Velha,
reconstruída com um interior já pombalino.
O quadro é
incrivelmente detalhado – tem tantos pormenores que permite reconstruir uma
grande quantidade de informação sobre a Lisboa do século XVI e, por extensão,
da vida urbana dum grande centro europeu. Pesquisando à lupa, um grupo de
quinze historiadores de várias especialidades começou a descobrir o significado
de tudo o que lá se vê: a arquitectura ainda com influências árabes, o carácter
multirracial da população, habitantes e visitantes, os artefactos negociados
nas lojas e os produtos vindos de todo o mundo que estavam em exposição;
porcelanas chinesas, papagaios brasileiros, marfins de África e do Sri Lanka,
joalharia, lacados, têxteis da Ásia e pedras preciosas dos entrepostos onde os
portugueses negociavam. A partir dos objectos e figuras, os especialistas
conseguem extrapolar um sem número de factos, como os modelos de negócio então
praticados, o percurso dos produtos pelos portos dos sete mares e até hábitos
da vida quotidiana da cidade.
Nessa época de
abundância, os artefactos que anteriormente só eram usados pela realeza
tinham-se tornado comuns entre a rica burguesia. Neste particular, o quadro vem
confirmar o que se sabe de outras fontes. Por exemplo, uma guia de desembarque
de 1518 mostra que uma nau do Oriente trazia 19 mil leques chineses e duas
toneladas de seda da costa de Malabar. No quadro vêem-se esculturas de cristal
do Sri Lanka, biombos de laca indo-muçulmanos e esculturas cristãs feitas na
Índia.
O resultado de
todas estas pesquisas acaba de ser publicado num volume de grande formato, com
300 páginas, editado pelas historiadoras e com os comentários dos quinze
críticos. Chama-se "The Global City: On the Streets of Renaissance
Lisbon" e é editado pela Paul Holberton Publishing, uma casa especializada
em livros de arte altamente sofisticados e objectos exóticos e raros.
Infelizmente
não se viu notícia desta publicação por cá. Nós, portugueses, a quem este
assunto interessa mais do que a quaisquer outros, pois ainda vivemos a
nostalgia das Descobertas e poucas informações novas já se conseguem encontrar,
bem que gostaríamos. Entretanto, o livro pode ser comprado do editor (por 40
libras) ou, evidentemente, através da Amazon.
texto enviado por José Rui
Rabaça
José Couto Nogueira
SAPO 24 28/04/2016
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