sexta-feira, 17 de junho de 2016

Macroscópio – Uma nota triste, e depois uma longa e sugestiva lista

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Hoje gostava de dedicar todo o Macroscópio a Jo Cox, de deputada trabalhista que foi morta quando fazia falava com os seus eleitores no quadro da campanha para o referendo sobre o Brexit (na foto). Nunca tinha ouvido falar dela, mas o que pude ler sobre ela desde o anúncio de que não resistira aos ferimentos fez-me sentir que ela merecia pelo menos uma pequena homenagem. Sabendo que a próxima semana terei de dedicar pelo menos um Macroscópio ao Reino Unido e ao referendo, optei por um registo mais breve. Por isso deixo-vos apenas dois textos que senti serem mais significativos (uma escolha subjectiva, naturalmente):
  • My friend Jo Cox: she was the best of us, de Dorian Lynskey, um crítico musical que se cruzou com a deputada por Batley and Spen, um distrito eleitoral de Yorkshire, é um texto que recorda tempos passados em comum em Cambridge e em Londres: “Jo was so kind and generous that it took a while to realise how impressive she was. Naked ambition is easy to spot – there was plenty of that at Cambridge – but she had a quieter, more profound sense of moral purpose. She didn’t just want to be an MP; she wanted to be the MP for Batley and Spen, representing the people she’d grown up with. Even before that, when she was working for Oxfam, it became clear that she was the best of us. She had more grit and courage and clarity and hope. I marvelled at the good work she was doing: important work, which changed people’s lives for the better.”
  • A Day of Infamy, de Alex Massie na Spectator, uma coluna onde não apenas se reflecte sobre o assassinato mas também sobre as condições extremadas, e muitas vezes lamentáveis, em que sempre decorre um debate público quando está em causa um referendo: “Politics is, figuratively speaking, a contact sport. It is a hard business because it is an important business. It matters and it matters even more when the stakes are so very high. But just as class will out at the highest level in sport, when the stakes are the very greatest and everything seems to be on the line, so character reveals itself in politics too. Even, especially, when it really counts. A referendum is one of those moments when it counts. There is no do-over, no consoling thought in defeat that, at least, there’s always next season. No, defeat is permanent and for keeps. That’s why a referendum is so much uglier than a general election. The ‘wrong’ people often win an election but their victory is only – and always – temporary. There will be another day, another time. An election is a negotiation; a referendum is a judgement with no court of appeal. So character reveals itself.”
 Esta última reflexão é especialmente interessante pelo que nos diz sobre a forma como se disputam habitualmente os referendos, e talvez nos inspire daqui por uma semana, quando soubermos como termina a consulta eleitoral no Reino Unido. Mas hoje vou antes olhar um pouco para trás, e quase exclusivamente para o Observador, para recuperar uma mão cheia de trabalhos que me parecem merecer a vossa atenção e que podem ter passado despercebidos.


Começo por algumas entrevistas, um género jornalístico em que o Observador tem vindo a investir cada vez mais. Em diferentes registos:
  • Vasco Pulido Valente: “Marcelo é um desequilibrista”.  A propósito do lançamento do seu mais recente livro, uma colectânea de crónicas dos últimos 20 anos intitulada De Mal a Pior, Rui Ramos e Vítor Matos estiveram à conversa com o historiador e colunista e o resultado é, como sempre, provocador no bom sentido. Duas passagens: "Sou favorável a uma Constituição presidencialista. O mito do consenso nacional acabava. O consenso nacional é o Presidente da República. Tinha muito mais autoridade do que qualquer primeiro-ministro poderia ter e podia fazer as reformas que nenhum Governo pode fazer”; e "Acho que isto vai levar o seu tempo. Para haver uma ruptura neste Governo, é preciso que o eleitorado dos três partidos perceba que a austeridade não acabou nem vai acabar. A popularidade agora é muito fresca."
  • Mário Cordeiro. “Sou gestor dos meus filhos, não dono”. Num registo bem diferente, o de entrevista de vida, Ana Cristina Marques esteve à conversa com um dos pediatras mais lidos em Portugal para descobrir o homem, o filho, o irmão, o pai, o avô. De novo dois extractos: "Gosto do conceito de família e do de lar. Mas gosto ainda mais do conceito de tribo. Na idade adulta temos de ter à nossa volta, em saídas, programas ou relações, várias pessoas. Não é preciso ser uma multidão, acho que a vida não é uma página de Facebook. A vida é feita de alguns amigos."; e "Às vezes fico a pensar porque é que com 10 anos se reflete sobre a morte, mas acho que isso era de ler e de pensar muito. Não defendo que logo aos 10 anos se comecem a ler os clássicos russos, acho que uma boa banda desenhada é ótimo, mas ler faz falta. É o tempo da leitura e o tempo da reflexão."
  • Lena d’Água: “Nunca me armei em sex symbol, só que era muito gira”. De novo uma entrevista de vida, esta realizada por Rita Garcia, onde a cantora se revela sem falsos pudores, com toda a frontalidade: "[o Casal Ventoso] Era uma ilha. Bastava ires uma vez para ninguém estranhar que tu ias. Eu era a Lena d’Água. Ali dentro estava protegida. Nem tinha medo da polícia. Quando estás com aquela doença, o problema é tão grave que tudo o mais é secundário. Foram uns tempos horríveis, mas sempre com o meu dinheiro. Nunca tive de andar a enganar ninguém. Tive de vender o apartamento, comecei a atrasar as prestações da casa, do carro…"
  • “Os cirurgiões não gostam de admitir os seus próprios erros”é o resultado da conversa de Marlene Carriço com Henry Marsh, um neurocirurgião que acaba, também ele, de publicar um livro em Portugal, Não Faças Mal. Um conselho que o médico explica referindo, por exemplo, que, "Como se diz em Inglaterra: demoramos três meses a aprender a operar, três anos a aprender quando devemos operar e 30 anos a aprender quando não devemos operar." Mais: “Quando se está no meio de uma batalha não se consegue pensar como um advogado. Eu próprio fui descuidado. Eu não queria fazer mal, mas nós cometemos erros descuidados e fazer de conta que esses erros não existem é mais perigoso do que admitir que os cometemos. Não estou a dizer que os médicos não devem ser punidos. A questão é se a punição vai tornar o médico melhor. Se formos mais abertos e honestos em relação aos erros que cometemos aprendemos com eles. Se vivermos numa cultura de castigo é óbvio que as pessoas tendem a escondê-los. Nós não queremos deliberadamente magoar os doentes, mas nós somos seres humanos falíveis. A questão de punir os médicos é muito escorregadia.”
  • Devo também referir uma outra entrevista dada pelo mesmo Henry Marsh, esta a Ana Gerschenfeld, provavelmente um dos últimos trabalhos desta jornalista no Público (pois vai trabalhar para a Fundação Champalimaud): “Tenho um armário cheio dos meus piores casos”. Eis como nela este neurocirurgião que fala dos seus erros respondeu à questão sobre qual foi o seu pior caso: “Houve muitos. Não há um caso pior do que todos os outros. Tenho um armário cheio dos meus piores casos. Alguns deles, apesar de não serem devidos a erros meus, são insuportavelmente tristes. Por exemplo, há uns 15 a 20 anos, operei uma criança que tinha um tumor maligno do cérebro e que ia morrer fosse como fosse. E a criança esvaiu-se em sangue na mesa de operação. É muito invulgar que um doente morra durante a cirurgia – e é uma experiência abominável. Temos de acabar mais ou menos a operação, coser o couro cabeludo. Desliga-se o ventilador. As enfermeiras estão à beira das lágrimas. Normalmente, a atmosfera no fim de uma operação é animada, toda a gente fala, mas aqui temos o cadáver de uma criança na sala.”


Regresso ao Observador para vos recomendar mais meia dúzia de textos, bem diversos, uns de divulgação, outros mais ensaísticos, outros ainda de reportagem:
  • Podemos mudar o nosso cérebro para sermos pessoas diferentes?, um trabalho da Mosaic Science que editámos em exclusivo para Portugal e onde se trata da neuroplasticidade, isto é, da capacidade de “treinar”, mas não só, o nosso cérebro. Com limites: “Mesmo as pessoas cujas vidas estão a ser transformadas pela neuroplasticidade vão-se apercebendo de que a mudança cerebral é tudo menos fácil. Pensemos na recuperação de um AVC, por exemplo. "Para recuperar o movimento de um braço, o doente pode vir a ter de mexer esse braço milhares de vezes antes que se estabeleçam novos caminhos neuronais para se encarregar disso", diz Downey.”
  • Quando Marcello Caetano impediu António Champalimaud de engolir um terço da banca portuguesa, um Especial de Filipe S. Fernandes onde se recorda um episódio histórico do final do anterior regime quando um Governo também mudou uma lei por causa de um banco, como agora sucedeu neste regime por causa de um outro banco, o BPI. De facto, no tempo de Marcello Caetano, também houve um decreto à medida, só que nessa altura serviu para travar Champalimaud. Foi assim: “Dias depois, nascia a escapatória que permitiria reverter o negócio da venda das acções do BPA a António Champalimaud. Marcello Caetano conseguiu que o Governo elaborasse o decreto-lei 1/71 de 6 de Janeiro de 1971, da autoria do Ministério da Justiça, a que Francisco Salgado Zenha chamou decreto do “locupertinamento à custa alheia”, que, com efeitos retroactivos, criava condições para a reversão do negócio.”
  • A segunda vida de Clarice Lispector made in USA, um texto que Joana Emídio Marques introduz de forma a tornar quase inevitável a sua leitura: “É verdade que a palavra génio pode ter perdido alguma força. E usá-la com criaturas extraordinárias como Clarice Lispector, autora de uma obra que eleva a língua portuguesa acima das suas próprias fronteiras, é um risco. Até porque se há alguém que escapa constantemente a classificações simplistas é ela, a judia ucraniana feita voz maior da literatura brasileira do século XX, falecida em 1977 e tantas vezes esquecida, nomeadamente em Portugal.”
  • Lídia tentou vender o filho de ano e meio. Vai ser julgada por tráfico de pessoas, uma reportagem de Sónia Simões sobre um caso que abalou a Madeira o país, o caso de Daniel que tinha ano e meio quando a mãe acordou com um possível comprador a sua venda. Depois simulou o seu desaparecimento, mas o cliente ter-se-á arrependido e abandonou a criança à sua sorte. Depois… “Era manhã cedo, pelas 8h20, quando os funcionários da Eletricidade da Madeira o encontraram. Naquela zona, onde a casa mais próxima fica a um quilómetro e onde a estrada de terra batida encontra um fim, estava o pequeno Daniel, de ano e meio. A roupa molhada, o corpo frio demais e ninguém por perto. Era o menino que há dois dias a polícia procurava após um misterioso desaparecimento da casa de família. Seis meses depois, a PJ desvendou o mistério: Daniel não tinha desaparecido. A mãe vendera-o a alguém que acabou por abandoná-lo, temendo ser descoberto.”
  • Festinhas, botinhas e muitas dúvidas. Os quatro meses de incertezas até nascer Lourenço, um caso que é quase o negativo do anterior, a história do bebé que nasceu depois de a mãe morrer, um processo que Sónia Simões e Marlene Carriço reconstituíram com muita humanidade: “Eu acho que eles mesmo assim foram uns heróis porque suportaram a presença física de alguém que lhes era querido e que estava morto, a bem de uma incerteza que era o nascimento daquele bebé”, defende João. E todos os profissionais salientaram o quão difícil começava a ser encarar Sandra, mesmo para eles, que estão habituados. A mulher estava a ficar “com um aspeto cada vez mais cadavérico”, muito magra, com os “olhos encovados e olheiras gigantes”, sem músculos, com cabelo e unhas enfraquecidos e onde só se notava a barriga bem grande. Assinalaram ainda assim um “resultado extraordinário” — Sandra chegou ao fim de quase quatro meses sem uma única ferida no corpo.”
  • Há animais mais iguais do que outros?, um Especial de José Carlos Fernandes que escolhi para fechar a selecção de hoje e que, numa altura em há pressões no sentido de aprofundar a legislação que criminaliza os maus tratos a animais de estimação, coloca duas perguntas muito pertinentes: afinal, o que se entende por animais de estimação e por maus tratos? Como se verá lendo este texto muito bem informado, desde a Antiguidade que estes conceitos já tiveram e ainda têm interpretações muito diversas, tanto no nosso Ocidente como noutros cantos do nosso planeta.

E assim vos deixo à entrada de mais um fim-de-semana, que desejo repousado e tranquilo. Até segunda-feira.

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2016 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário