terça-feira, 19 de julho de 2016

HOJE HÁ PALHAÇOS DO TERROR

Consideramos que o Expresso Curto de hoje contém excessiva propaganda norte-americana intoxicante que pode ser nociva para os que a consumam. Recomenda-se que leiam tudo com as devidas precauções.
Donald Trump, o palhaço de serviço, no Expresso. A abrir. Abrir ainda mais a Caixa de Pandora que são os EUA. De mansinho a media vai suavizando a figura do estuporado Donald. Ele pode ser o vencedor das eleições nos EUA. Por consequência o próximo presidente do país do fel aspergido por todo o mundo.

A madame Clinton está repleta de rabos de palha, de trampas do passado. Os norte-americanos não estão a gostar dos enganos a que ela os levou. Como se os cidadãos norte-americanos fossem estúpidos em escala só ali tão elevada e demente que não saibam que estão a eleger os que são inimigos deles próprios e amigos das corporações do capital que representam. Continuem, lutem pelo império que vos trama e trama o mundo inteiro. Lembrem só que todos os impérios ao cimo do planeta Terra têm caído. O dos EUA também vai cair. Com estrondo. Aliás, já há muito que está a cair. Ora vejam lá se não! Palhaços nos EUA é o que não falta. Nem faltam criminosos nas elites. Nem faltam racistas na sociedade, não só na polícia – é geral! 

Anote: Dos dois candidatos presidenciais perfilados o conteúdo quase em nada se diferencia. Entre esses dois palhaços do terror que venha o diabo e escolha. (PG)

Bom dia, este é o seu Expresso Curto 

Filipe Santos Costa – Expresso

O circo chegou à cidade

Senhoras e senhores, meninos e meninas, o circo chegou à cidade. A cidade é Cleveland, que esta semana é uma cidade global. Ligue a tv para o maior espetáculo do mundo: luz, cor e movimento, música e majoretes, balões e papelinhos, stars and stripes, corações ao alto e manifestações à porta. Não estão previstos palhaços, nem malabaristas, nem contorcionistas, nem o homem-bala, nem elefantes, nem macacos - mas Donald Trump, sozinho, assume esses papéis todos e mais os que forem precisos. Ele é o homem-bala, o contorcionista, o trapezista, o elefante na loja de porcelanas, o macaco fora do seu galho. O one-man show que garante riso, emoção, saltos, contorcionismos, coelhos na cartola e até medo, muito medo, numa retórica carregada de ameaças sobre mexicanos e árabes e islamistas e chineses e tudo o que fuja ao cliché do all-american.

Bem-vindos à convenção do Partido Republicano, o GOP, o Grand Old Party. O partido de Abraham Lincoln, de Theodore Roosevelt, de Dwight Eisenhower, de Ronald Reagan (e, enfim, dos dois Bush...) será a partir desta semana o partido de Donald, "o" Donald. Os trabalhos começaram na noite passada e o grande tema da noite foi, claro, a segurança: um desfile de testemunhos a acusar Hillary Clinton de não saber e não querer proteger a América, com um dos oradores a bradar "Lock her up!" ("Prendam-na!"). Apesar desses momentos de êxtase, o ponto alto da noite foi a Senhora Trump, apresentada pelo Sr. Trump como "a próxima primeira dama". "Ele nunca vos desiludirá", garantiu Melania com o seu sotaque esloveno, numa frase que dificilmente seria subscrita pelas muitas mulheres que Donald escolheu antes dela (o New York Times publicou há tempos um excelente trabalho sobre como Trump se comporta em privado com as mulheres). À antiga modelo nunca se ouviram grandes ideias, mas ela (ou alguém por ela) ouviu grandes discursos do passado - por exemplo, o discurso de Michelle Obama na convenção democrata de 2008, onde Melania foi "inspirar-se" para algumas passagens. À falta de cabeças de cartaz partidários, os familiares e amigos de Trump serão o prato forte da convenção. Cleveland não é tanto um facto politico, mas mais um facto pop - o candidato surgiu em palco no meio de fumos e ao som de "We are the champions" e, não por acaso, o símbolo da convenção é o tradicional elefante (mascote dos republicanos) em cima de uma guitarra elétrica.

O Washington Post publicou um guia bastante útil sobre as sete coisas a que é preciso estar atento durante a convenção. Mas a grande dificuldade dos artigos que tentaram antecipar o que irá acontecer no palco de Cleveland tem a ver com a imprevisibilidade de Trump e a forma como divide as águas. Os livros dizem que o homem que promete fazer a América grande outra vez terá, primeiro, de unir o seu partido, o que está longe de ser garantido. Mas, se tivermos em conta que Trump chegou a Cleveland contra o partido, e graças a isso, a unidade partidária pode parecer um pormenor, mas também pode estragar a festa televisiva que é a convenção. Aliás, o arranque dos trabalhos foi atribulado, com protestos de alguns delegados.

Trump ainda é tratado como "presumível" candidato, pois até ao lavar dos cestos é vindima. Isto não significa que possa haver um golpe de teatro de última hora - até há poucos dias houve muito, entre o establishment republicano, quem puxasse pelas meninges paraarranjar uma maneira de deitar Trump borda fora, e nas últimas horas ainda se falou disso. Mas mesmo os seus adversários mais ferozes (do clã Bush a Mitt Romney, o candidato republicano de 2012) já perceberam que "o Donald" é uma realidade com que terão de viver pelo menos até às eleições de novembro.

O Guardian elaborou esta útil galáxia Trump - marcando distâncias e proximidades em relação a alguém que, tendo tendência para se comportar como um Rei-Sol, não deixa de ser um corpo estranho no firmanento político norte-americano. Mas a verdade é que, apesar daguerra civil republicana, os jogos estão feitos e a ala "Never Trump" perdeu. Afinal, foi Trump quem as bases republicanas escolheram, e em boa medida porque o empresário representa o choque frontal com aquilo que tem sido o establishment do partido. A sua maior concessão (talvez a única) ao GOP foi o nome escolhido para vice-presidente, Mike Pence, governador do Indiana, que em tempos também zurziu Trump. Depois de virar a casaca e ser anunciado como nº2 do ticket conservador, Pence protagonizou na televisão uma bizarra entrevista conjunta em que Trump basicamente não o deixou falar e assumiu que não precisa dele para nada. Pelo sim pelo não, tenha pipocas à mão: esta bem pode ser uma convenção para a história - e, quem sabe, redefinir a história do Partido Republicano.

Trump não deixará de puxar dos galões pelo seu percurso como empreendedor e empresário e a Politico Magazine fez um bom exercício de especulação informada: fala com dezenas de pessoas que negociaram, colaboraram ou de alguma forma interagiram ao longo dos anos com o empresário Donald Trump para tentar traçar um perfil de como será essa pessoa caso transfira o seu escritório para a Sala Oval. O texto, bem escrito e sustentado, tem passagens como esta: "He is both impulsive and intuitive, for better and for worse. He hires on gut instinct rather than qualifications; he listens to others, but not as much or as often as he listens to himself. He’s loyal—“like, this great loyalty freak,” as he once put it—except when he’s not." Enfim, nada que tranquilize o cidadão comum - seja americano ou cidadão do mundo.

Mas mais inquietante ainda é o furo jornalístico publicado na última edição da New Yorker. Sabe quem é Tony Schwartz? Não? Mas ele sabe bem quem é Donald Trump, e isso é que interessa. Schwartz, que nos anos 80 era jornalista da revista New York, deu a Trump uma das suas primeiras capas - era a história de como essa figura emergente da sociedade novaiorquina (emergente é a palavra, quando estava em causa a espampanante Trump Tower) recorria a todo o tipo de métodos sem escrúpulos para afugentar os inquilinos de outro imóvel que havia comprado e queria transformar num empreendimento de luxo. O empresário era retratado como um escroque, mas Trump adorou o retrato e adorou ser capa. Poucos meses depois Shwartz foi convidado para ser o escritor-fantasma do livro que começou a construir o mito Trump: "The Art of the Deal”. Conviveram durante mais de um ano para ser produzido o livro editado em 1987. O jornalista nunca falou sobre isso... até agora. Porque tem medo que o Trump que conhece possa chegar lá.

Se voltasse hoje a escrever um livro sobre Donald, diz, o título seria "O Sociopata". Trump é um mentiroso compulsivo "e não tem qualquer consciência disso", diz Schwartz. Ao contrário das outras pessoas, que "são constrangidas pela verdade", Trump é completamente indiferente a esse facto, "o que lhe dá uma estranha vantagem". Hoje, confessa-se arrependido por ter escrito o livro que deu uma aura de vencedor e respeitabilidade a Trump. "Pus baton num porco", admite na entrevista à New Yorker. "Sinto um enorme remorso por ter contribuído para apresentar Trump de uma forma que lhe deu mais protagonismo e o tornou mais apelativo do que ele é." Dando ao caso contornos faustianos, o jornalista admite que só fez esse pacto com o diabo por dinheiro e garante que vem agora a público porque o caso é demasiado sério para silêncios: "Acredito mesmo que se Trump ganhar e tiver acesso aos códigos nucleares há uma enorme possibilidade de que ele leve ao fim da civilização".

Em todo o caso, as sondagens ainda não prenunciam o fim do mundo. À beira das duas convenções, Hillary Clinton mantém vantagem sobre o adversário conservador na generalidade dos estudos de opinião.

Outras notícias

Se há coincidência feliz por estes dias, é o facto de Donald Trump se ver coroado como candidato à Casa Branca no mesmo momento em que meio mundo enloquece com o jogo de realidade aumentada Pokemon Go. Trump é, ele próprio, uma espécie de político-realidade-aumentada, que surge não se percebe bem como, que não encaixa bem na realidade que conhecemos, mas é um entretenimento escapista de que muitos pareciam estar à espera. Ninguém se espantaria muito se a Quicken Loans Arena se tornasse um recinto de Pokemon Go: está a imaginar os apoiantes de Trump de smartphone em punho à procura, não de pokemons, mas de figuras de primeira linha do partido que possam ir ao palco falar em defesa do candidato? Ok, talvez a associação esteja a ir longe demais... Mas era divertido. (No caso de não fazer ideia do que estou a falar, leia o textodo Pedro Miguel Oliveira e vai perceber que isto está longe de ser uma brincadeira. Não é todos os dias que uma pequena multidão em Nova Iorque larga carros na estrada e se precipita para um local onde está um Pokemon raro...).

Mas deixemo-nos destes jogos e olhemos para outros. Por exemplo, os jogos de números entre Portugal e Bruxelas.

Bruxelas exige maior consolidação orçamental? Exige. O governo promete cumprir? Promete. Isso significa mais austeridade? O governo jura que não. Isto tudo bate certo? Não se vê como. Na carta que o governo enviou à Comissão Europeia contestando as prometidas sanções por défice excessivo em 2015 e respondendo aos avisos da CE sobre as contas deste ano, algumas perplexidades saltam à vista. Primeiro: o Governo garante que já estavam previstas no OE 2016 as cativações que permitem cumprir as exigências de Bruxelas, ou seja, o famoso plano b sempre existiu, só que sempre esteve à vista de todos. Mas não explica que as cativações significam despesa que estava prevista e não será cumprida, portanto, haverá mais austeridade em algumas áreas - por exemplo, na função pública, escreve o Público. Outra perplexidade: Mário Centeno continua a falar na existência de almofadas que permitem acomodar novas exigências, apesar de ser evidente que o cenário macro-económico de 2016 terá de ser revisto, tal como (quase) toda a gente avisou que teria de ser revisto. Ou seja, as coisas estão a correr pior do que era suposto, porém, há sempre dinheiro a ser descoberto debaixo do colchão. O que vem, mais uma vez, levantar a suspeita de que, afinal, a situação herdada do governo anterior não era assim tão dramática como nos quiseram pintar. Por fim, mas não menos importante, a carta enviada pelo ministro das Finanças para Bruxelas nunca releva um ponto que devia ser fundamental na argumentação portuguesa: eu ouvi o PM no Parlamento a garantir que, descontado o apoio ao Banif, o défice de 2015 ficou nos 3%. Palavra de primeiro-ministro. Esse que devia ser o ponto de finca-pé de Portugal - se o défice cumpriu os limites, nem se devia falar de sanções. A forma como o Governo deixou cair esse argumento cheira, mais do que nunca, a gestão política dos números.

PCP e BE, os outros dois pés do tripé da geringonça, assistem com expectativa à novela epistolar entre as Finanças e Bruxelas. À cautela,cada um vai preparando caminho para poder saltar fora caso seja inevitável mais austeridade (Jerónimo de Sousa abriu essa porta no fim de semana), mas ambos sabendo que saltar pode ser um mergulho mortal. Enquanto isso, António Costa continua a portar-se qual homem-bala, tentando proezas nunca vistas e otimista sobre o resultado - talvez o facto do circo europeu estar a pegar fogo o ajude a cumprir o seu número.

Por falar em pegar fogo, recomendam-se vivamente os novos capítulos do longo suicídio público, com recurso a morte por via do ridículo, do que sobra do PCTP-MRPP. Contado ninguém acredita, mas a luta, pelos vistos, continua. (E, de acordo com o jornal I de hoje, Arnaldo Matos, o eterno "grande líder da classe operária", considerou o atentado de Nice "um ato legítimo de guerra").

Ainda na política interna embalada por números e contas, ficou ontem a saber-se que o Governo põe mesmo de parte qualquer hipótese de voltar a injetar dinheiro no Novo Banco. Ou é vendido no prazo previsto - até daqui a um ano - ou o que sobra do BES entra em processo ordeiro de liquidação. Nada de novo? Nem por isso: pode ser mais uma pedrinha na engrenagem da "geringonça", tendo em conta que tanto o PCP como o BE têm defendido a nacionalização do Novo Banco. Até agora, Costa tem dito "nim" a essa proposta dos dois partidos que suportam o PS. Agora, parece mesmo ser um não.

O outro bico de obra que o Governo tem para resolver no setor financeiro parece ir-se compondo. Depois de Marques Mendes ter divulgado a carta muito dura do BCE sobre os planos do Governo para a Caixa (carta que, já antes, o Jornal de Negócios havia noticiado, mas com menos impacto) o Executivo admite que está em negociações com Bruxelas não só sobre a composição da futura administração, mas sobre a operação de aumento de capital. No Expresso Diário de ontem, a Anabela Campos e o João Vieira Pereira noticiaram que, afinal, os valores que o Estado terá de injetar no banco público podem ser bastante inferiores ao que tem sido falado. A coisa pode ficar por pouco mais de dois mil milhões de euros, metade do valor que chegou a ser noticiado. Dito assim até parece uma pechincha, certo? Alguém andou a jogar com os números...

Outros jogos, mais sérios: os perigosos jogos de guerra de Erdogan, o cada vez mais todo poderoso presidente turco, e os seus opositores. A facilidade com que foi dominada a tentativa de golpe de Estado no domingo e a rapidez com que de imediato as forças de Erdogan se lançaram numa purga contra inimigos reais ou suspeitos, que já contabiliza 7500 detidos e 8500 demissões e muitos outros sob investigação, levanta demasiadas suspeitas. Tudo parece demasiado fácil, demasiado rápido, demasiado conveniente. Erdogan falou à CNN e abriu o jogo sobre a perseguição aos "traidores", a exigência de que os EUA extraditem o clérigo Fethullah Gulen, acusado de ser o líder dos revoltosos, e a possibilidade de repor a pena de morte. Mesmo que isso signifique ficar de vez fora da União Europeia - mas quem estamos a tentar enganar? Já todos perceberam que a UE nunca quis abrir a porta à Turquia, nem a Turquia fez o esforço necessário para que a porta não se fechasse.

A Europa vive dias estranhos e perigosos, todos sabemos, e quase todos os dias nos chegam mais notícias disso. Esta noite, a notícia veio da Alemanha: um refugiado afegão de 17 anos entrou num comboio e atacou cerca de vinte pessoas com um machado e uma faca. O atacante foi abatido pela polícia e há três feridos graves e vários passageiros em estado de choque. Mas o choque e as consequências da notícia podem ser bem mais profundas, num país que já acolhe cerca de 1,2 milhões de refugiados. O tema tem sido lenha para a fogueira ateada sobretudo pela extrema-direita, contra a política de fronteiras abertas defendida por Angela Merkel. Um afegão com um machado num comboio não é exatamente aquilo de que a causa da tolerância e da integração precisava.

E tudo isto quando a França ainda lambe as feridas do ataque em Nice e tenta percebê-lo. Começa a ser tudo demasiado parecido e reconhecível: um homem sozinho, com um nome "árabe", armado com o que calha - um machado, uma faca, um camião - e a atacar onde menos se espera, contra qualquer um. "Podia ser qualquer um de nós", como escreve o Hugo Franco. Nestes casos, a retórica política é sempre musculada, mas não mascara o sentimento de insegurança e a frustração - a vaia ao primeiro-ministro Manuel Valls, ontem, na homenagem às vítimas, foi bem sintoma disso. E as consequências políticas não se fazem esperar: "desta vez, não houve unidade nacional", escreve o Le Monde - Nicolas Sarkozy entrou a pés juntos contra o governo, com o discurso securitário que fez a sua fama, há muitos anos, quando era ministro dos assuntos internos.

O Expresso Diário de ontem reflete sobre outro aspeto do massacre de Nice: o massacre perpetrado por alguns meios de comunicação social contra o código deontológico do jornalismo, as regras básicas de informação, a moderação e o bom senso. Em Portugal, a pornografia do horror que se viu na CMTV motivou diversas queixas à Entidade Reguladora da Comunicação Social, mas o caso mais aberrante foi o do canal France 2, cujo jornalista fez um direto com um sobrevivente, ao lado do cadáver da mulher, disparando a pergunta a sangue frio e à queima-roupa: "Boa noite, senhor, acaba de perder a sua mulher. Qual é a sua reação, em direto para a France 2?". "Quais sãos os limites para a comunicação social mostrar o horror?", é a pergunta a que a Maria João Bourbon tenta responder.

O que ando a ler

Não há coisa melhor para um leitor compulsivo do que entrar numa livraria e comprar livros por impulso: porque a capa nos puxou o olhar, porque o título nos ressoou na massa cinzenta, porque as críticas na contracapa não nos deixam voltar a pousá-lo ou porque o tema nos interessa mesmo que nunca tenhamos pensado muito nisso. Se a livraria em questão for a Strand, em Nova Iorque, a probabilidade de sair com sacos cheios de livros que nem sabíamos que existiam é ainda maior, conforme confirmei, mais uma vez, nestas férias.

Um desses livros que comprei nesse impulso de miúdo-numa-loja-de-doces é o que estou a acabar de ler: “Twenty Minutes in Manhattan”, do arquiteto, professor e ativista social Michael Sorkin (ed. North Point Press, 2013). O pressuposto do livro, de 260 páginas, é simples: durante mais de vinte anos Sorkin fez todos os dias o trajeto a pé desde o seu apartamento, um quinto andar (sem elevador) em Greenwich Village, para o seu atelier, num 14º andar de Hudson Street, em Tribeca. São uns vinte quarteirões por downtown Manhattan, vinte minutos, mais coisa menos coisa, dependendo do trajeto escolhido - e é a partir desses trajetos quotidianos, que começam com uma escolha tão simples como virar à esquerda ou à direita ao sair do edifício, que Sorkin nos leva por uma viagem pela sua Nova Iorque. “Invariavelmente, a caminhada ganha uma qualidade narrativa. (...) Caminhar não é apenas uma oportunidade para observar, mas um instrumento analítico””, escreve o autor, sobre essa oportunidade diária para pensar a cidade nas suas múltiplas dimensões, contemplando momentos e lugares que se vão sobrepondo numa narrativa pessoal só permitida pela repetição: o que permanece e o que muda, os projetos que avançam e os que falham, as modas e as atividades sazonais, as mudanças na malha humana, comercial, cultural.

Apesar de ter sempre o mesmo destino, o autor nunca se prende a um trajeto - é um flâneur que nos leva pelas ruas, cafés, parques, lojas, quiosques de jornais, num percurso que tanto é uma história de Nova Iorque, como um pequeno tratado sobre arquitetura e urbanismo, um ensaio sobre sociologia e uma afirmação política sobre o papel do Estado e dos cidadãos na construção de uma cidade que possa ser vivida com um sentido coletivo.

Bastante erudito, às vezes académico, profundamente humano e frequentemente divertido, Sorkin leva-nos desde as escadas do seu prédio centenário (o primeiro capítulo entitula-se “Stairs”) até ao “stoop”, aquele espaço onde estão as escadas de acesso ao edifício, que faz as vezes de pórtico, micro-jardim e depósito de caixotes de lixo, partilhando anedotas e pequenos dramas sobre recolha de lixo urbano ou a pressão de viver em casas de renda controlada numa cidade onde nenhum senhorio perde a oportunidade de apanhar boleia da valorização galopante dos metros quadrados. Seguimos depois pelo quarteirão, a seguir vem a praça (Washington Square, com uma rica história política, cívica e urbanística), e vamos, rua a rua, bairro a bairro, pela Village, pelo que sobra de Little Italy, pelo que ainda existe de Chinatown, até Tribeca, com um sem número de histórias sobre o que esses lugares são, o que foram e como e porquê mudaram.

Como nos ensaios de Montaigne, Sorkin vai associando temas e saltando livremente do plano micro para o plano macro, e vice-versa, seja para falar de trânsito e mobilidade, de praças e espaços verdes ou da relação da arquitetura com a vida dos cidadãos. Sempre presente, o tema que marca a vida das grandes cidades contemporâneas: a gentrificação. Como garantir que a recuperação das zonas degradadas ou com menor densidade humana - recuperação essa feita quase sempre à boleia do turismo e da especulação imobiliária de grandes fundos financeiros - não mata o que esses locais têm de genuíno e irrepetível? E, por genuíno e irrepetível, tanto vale o pequeno café local e ou a livraria independente, como a possibilidade de fazer vida de rua, em espírito de pertença a uma comunidade.

Nova Iorque é a cidade que nunca dorme, já se sabe, a cidade que está sempre a mudar, e Sorkin vive bem com isso: defende a ideia de que a cidade deve ser a “integração da diversidade”, resultando de tensões que lhe garantem essa caraterística de ser vivo. O problema é quando a tensão empurra toda para o mesmo lado. “Uma razão para objetar à renovação urbana e à gentrificação é a quantidade de atividades comunitárias que são obliteradas pela destruição dos seus lugares físicos, bem como pela homonegeização que resulta quando os preços empurram todos os que não são ricos para fora duma área”.

E é aí que tudo começa a parecer fake: e se Nova Iorque já não for mesmo Nova Iorque, mas apenas a nossa ideia de Nova Iorque, moldada pelo cinema e pelas séries de TV? A pergunta vale para essa cidade, que todos conhecemos (mesmo quem nunca lá esteve), mas também para todas as outras que, como Lisboa, enfrentam desafios semelhantes de recuperação urbana à la carte.“Um dos testes sobre a boa cidade contemporânea”, escreve Sorkin no final do livro, “é: detetamos aqui Disney?”. O teste vale lá como cá.

Fica por aqui este Expresso Curto (que talvez mais pareça um daqueles longos “americanos” para ir bebendo pela rua num copo de cartão - deve ser da minha falta de prática, que sou novato a tirar expressos). Amanhã será a Cristina Peres a acordar cedo para abrir a loja. Até lá, não se esqueça que pode ler tudo no Expresso online e no Expresso Diário, às 18h. Aproveite o sol e tenha uma excelente terça-feira.

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