Depois de uma semana nos Estados Unidos, regresso à pátria sem trazer notícias entusiasmantes e aqui chego para logo constatar que a febre patriótica continua em alta, mesmo passada uma semana sobre a vitória da selecção. Por Belém vão passando os condecorados, pelas rádios e televisões as indignações com as sanções que podem chegar de Bruxelas. Por isso, e para contrariar um pouco o sentido dos ventos, resolvi reunir no Macroscópio de hoje um conjunto de textos que, de uma forma ou outra, divergem do que me parece ser o padrão dominante. E tenho uma boa razão para isso.
A boa razão para esta opção é um sinal inquietante de que parece que não temos mesmo emenda, e estou a falar de nós, os portugueses. Esse sinal preocupante – e de alerta – encontrei-o num artigo do Expresso do passado sábado, aquele em que Joana Nunes Mateus fazia contas à poupança das famílias e constatava algo de Inédito: Poupança cai para terreno negativo no primeiro trimestre (paywall). Em concreto, “Nos primeiros três meses de 2016, o consumo excedeu o rendimento disponível das famílias em €356 milhões”. Sim, leram bem: mal se deu um sinal de que se podia desapertar o cinto começou-se a gastar mais do que se ganha: “É algo nunca visto na economia portuguesa. A poupança das famílias foi negativa no primeiro trimestre de 2016, (…) quer nas novas contas nacionais do Instituto Nacional de Estatística (INE), que recuam até ao primeiro trimestre de 1999, quer nas séries longas do Banco de Portugal (BP), que recuam até 1977. Não é novidade que a reduzida poupança das famílias é um motivo de preocupação para a economia portuguesa, (…) mas neste primeiro trimestre de 2016, o problema ganhou uma nova dimensão. De acordo com as estatísticas do INE, a questão já não está no facto dos portugueses pouparem cada vez menos, (…) a questão agora é que a poupança não só desapareceu como é negativa, uma vez que as despesas de consumo final das famílias e das instituições sem fins lucrativos ao serviço das famílias excederam, pela primeira vez, o chamado rendimento disponível para gastar ou poupar. Simplificando, (…) o dinheiro que os portugueses receberam em salários, juros, rendas, pensões e outros rendimentos (…), descontado dos impostos, contribuições sociais e outros encargos (…), não chegou para cobrir todas as despesas de consumo de serviços e bens.”
Ou seja: temos um problema e esse problema é connosco, não pode ser empurrado para outros. Por isso me parecem bem oportunas algumas reflexões que reuni para elaborar este Macroscópio
Começo por António Barreto que, no Diário de Notícias, em As dívidas da Pátria, a propósito de toda a discussão em torno de saber se merecemos ou não as sanções, colocou o dedo num dos males da pátria, o da autocomplacência: “Estamos a chegar lentamente ao país dos crédulos: nós temos sempre razão, eles, nunca! Os debates parlamentares resumem-se a isto. Os fiéis de um culto só acreditam no seu sacerdote. Os simpatizantes de um partido só confiam nele. O pensamento é o do rebanho. Inteligência, informação, razão e rigor são dispensados. Estas semanas de futebol só vieram agravar os espíritos. O que importa é ganhar, nem que seja com a mão, dizia alguém na televisão. A lógica é a mesma. Com argumentos nacionalistas, que as esquerdas envergonhadas designam por patrióticos, com emoções patetas e com sentimentos totalmente deslocados, pretende-se manter aliados e iludir eleitores. Sendo que os apoiantes comunistas e bloquistas querem mais do que isso. Querem mesmo dar cabo do Euro, do Tratado Orçamental e desta União. Para o que esperam evidentemente pela cumplicidade pacóvia dos socialistas e pelos sentimentos patrióticos dos Portugueses vexados na sua dignidade nacional!”.
Este tipo de registo, uma mão no peito e outra na bandeira, também foi criticado por João Miguel Tavares no Público, emPatriotismo? Tenham vergonha, sendo que aqui as baterias do colunistas apontaram muito especialmente à esquerda, aquela eu antes tinha horror ao nacionalismo. Escreveu ele que “Aquilo a que chamam patriotismo é o eterno prolongamento do Portugal de mão estendida e incapaz de produzir o suficiente para sustentar o seu nível de vida. Patriotismo é tentar quebrar esse círculo vicioso. Patriotismo é trabalhar pelas reformas indispensáveis, é fazer sacrifícios por um país melhor, é lutar pela nossa independência financeira. Patriotismo não é berrar alto, a ver se nos voltam a encher a velha gamela. Dizem por aí que o bom aluno era demasiado subserviente. Já o aluno cábula, esse, é um grande patriota. Com uma mentalidade destas, só temos aquilo que muito patrioticamente merecemos.”
De novo no Diário de Notícias, Alberto Gonçalves notou que Quem não chora não é patriota. Ou seja, “A acreditar nas reações indígenas às eventuais sanções, patriotismo não nos falta. O que nos falta é juízo. Não vale a pena descer aos pormenores técnicos do que está em jogo (guardem os cachecóis, que este é um jogo diferente): o detalhe é aborrecido, embora muito menos aborrecido do que as suas consequências. Em descarado resumo, sucede que, para continuar a sustentar-nos, a Europa impõe-nos um valor máximo para o desvario, perdão, o défice. O governo anterior, que graças a umas habilidades discutíveis fora capaz de alguns progressos, graças a habilidades indiscutíveis e ao desejo de ganhar eleições descuidou o orçamento de 2015. Por isso é que, quando não culpa a prepotência de Bruxelas pelas sanções, o governo actual culpa o PSD e o CDS. O governo actual só não culpa a despesa pública em geral, que de resto pretende aumentar até ao limite da sobrevivência política do dr. Costa ou da economia nacional, de acordo com o que falecer primeiro.”
André Azevedo Alves, agora aqui no Observador, tenta perceber o que nos está a acontecer e o que aí vem, sendo que, em É o défice, estúpido!, também traça um quadro pouco risonho ao mesmo tempo que sublinha que o patriotismo, o que conta, é algo bem distinto daquele que por aí se alardeia: “Como até o Quantitative Easing do BCE deverá ter os seus limites, será muito difícil arranjar quem pague a reversão de medidas do governo anterior e o laxismo orçamental. Seria importante perceber de uma vez por todas – e independentemente das cores partidárias – que o que realmente constitui uma traição a Portugal é não aprender nada com os erros cometidos, empurrando alegremente o país para um desastre anunciado e um novo pedido de assistência externa.”
Seguindo por caminhos parecidos, Joaquim Aguiar defende, no Jornal de Negócios, que estamos perante A política da ocultação. Isto porque “Políticos e jornalistas ganharam o hábito, nos últimos tempos, de falar de sanções por défice excessivo na Zona Euro como se fossem punições impostas por torcionários a vítimas inocentes e indefesas, surpreendidas por acontecimentos de que não são responsáveis. Não é objectivamente verdade: os procedimentos acordados por todos os participantes no euro foram concebidos para proteger todos dos potenciais incumprimentos de alguns na utilização de uma moeda que é comum - não há vítimas de um lado e castigadores do outro. Não é subjectivamente verdade: os responsáveis políticos portugueses sabem muito bem que escolheram voluntariamente a via do incumprimento.”
Protagonistas central neste processo tem sido, como de resto não poderia deixar de ser, o primeiro-ministro, pelo que interessa conhecer a análise de Francisco Sarsfield Cabral em O dilema governamental, na Rádio Renascença – “Como se sabia, mas o Governo de António Costa tentou encobrir, a questão das sanções não tem apenas a ver com o passado, em particular com o facto de o défice orçamental do Estado português em 2015, tal como contabilizado pela Comissão Europeia, ter ficado acima de 3% do PIB. A questão tem muito a ver, também, com o que o Governo socialista vai fazer, este ano e sobretudo no próximo Orçamento para 2017.” – e, também, a crítica ao seu estilo de actuação, agora interpretação de Camilo Lourenço, do Jornal de Negócios, em O "wrestler" do Largo do Rato – “A Comissão diz que quer ver o "draft" do Orçamento de 2017? António Costa diz nem pensar e atira-se a Wolfgang Schäuble. O Ecofin avança com sanções e dá 10 dias para Portugal responder? António Costa recusa novas medidas e diz que basta cativar despesa para diminuir o risco de derrapagem. O primeiro-ministro conhece os tratados que Portugal subscreveu. E sabe que no âmbito da governação económica da Zona Euro a Comissão Europeia passou a ser o árbitro da política orçamental. Mas está a jogar como aqueles artistas de "wrestling" que fazem as delícias dos miúdos”.
A fechar chamo a atenção para a análise, pessimista, de João Ramos de Almeida, alguém que conhece os corredores de Bruxelas e que, no Observador, defendeu que, neste processo, A Espanha tramou Portugal. Isto porque, “Depois do governo espanhol ter apresentado medidas extraordinárias, Madrid terá garantido que as sanções serão meramente simbólicas. Portugal terá que seguir o exemplo espanhol. Se não o fizer, não terá direito ao mesmo tratamento que a Espanha. A Comissão não poderá tratar do mesmo modo um país que apresentou medidas excepcionais e outro que se recusa a fazer o mesmo. E o governo espanhol, provavelmente apoiado por outros governos, não aceitará que se trate situações diferentes como iguais.”
A situação na Turquia
Enquanto esperamos para ver se esta última análise se confirma, e para não deixar passar em claro os graves acontecimentos na Turquia (e ainda terei de ir a Nice e às suas ondas de choque, mas isso fica para outro dia), termino a newsletter de hoje com duas sugestões que remetem para análises publicadas hoje na imprensa portuguesa:
- Rui Ramos, Observador, reflecte sobre o que considera ser O fracasso da Europa na Turquia. Eis uma passagem relevante da sua argumentação: “Porque é que os governos ocidentais levaram tanto tempo a reconhecer que a onça não era um gato doméstico? Não apenas porque na década de 1990 acreditaram que a globalização significaria a ocidentalização do mundo, mas também porque a Turquia — uma população jovem de 80 milhões de habitantes, uma das 20 maiores economias do mundo, com altas taxas de crescimento, e o maior exército da NATO depois dos EUA –, é demasiado importante para ser afrontada por uma Europa envelhecida, desarmada e afligida pelas migrações e terrorismo do Médio Oriente. O novo sultão não precisa de cavalaria para ameaçar Viena: basta-lhe deixar passar mais migrantes, como no ano passado.”
- Jorge Almeida Fernandes, no Público, explica-nos o originou e o que decorre do Contra-golpe de Erdogan em marcha.Nesta sua análise sublinha que, depois do que aconteceu, a “A oposição está encostada à parede. Gostaria de ver afastado um autocrata disfarçado de presidente eleito. “Mas, exactamente porque levantam a bandeira da democracia liberal, não poderiam apoiar um golpe militar”, observa o analista israelita Zvi Ba’rel. Pior do que isso: estão sob chantagem. Jornais que criticavam Erdogan não ousam pôr em causa a versão oficial sobre Gülen. “O paradoxo é que, ainda mais do que no passado, a oposição precisará de provar o seu patriotismo para não ser acusada de inimiga da democracia, depois de Erdogan se ter tornado o ícone da democracia graças aos conspiradores.”
De resto por hoje é tudo. Ao longo dos próximos dias continuarei a publicar no Observador trabalhos, reportagens e entrevistas sobre as presidenciais norte-americanas, resultado da minha viagem aos Estados Unidos, mas chamo desde já a vossa atenção para duas entrevistas já editadas: “Eu vi como os ingleses votaram no Brexit. Por isso, não se iludam: Trump pode ganhar”, com o historiador Timothy Garton Ash; e “Nunca imaginei ver a América transformada numa espécie de Argentina”, com um republicano que recusa render-se a Trump, o analista neoconservador William Kristol.
Continuem pois atentos ao Observador, à vossa caixa de email, não deixem de seguir o que se passa na nossa terra e no mundo com a ajuda que entretanto lhe puder dar. Tenham boas leituras e bom descanso, mesmo sabendo, como costuma escrever Vasco Pulido Valente, que o mundo está um lugar perigoso.
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