domingo, 9 de outubro de 2016

CRISTALINO

Isabel Moreira – Expresso, opinião

A forma como decorreu a eleição de António Guterres para o cargo de SG da ONU não pode deixar de merecer uma dupla reflexão.

Em primeiro lugar, se sabemos que a ONU não é uma organização de iguais, sabemos que nesta eleição em particular foi assumido um compromisso de transparência traduzido no processo a que todos pudemos assistir: aberto, com debates e sucessivas votações. Se Ivanova Kristalina tivesse posto em causa a eleição de António Guterres, a tentativa de credibilização da ONU cairia por terra num buraco fundo e a causa da igualdade de género seria manchada pela eleição manipulada de uma mulher. A eleição de António Guterres credibiliza a ONU, que resistiu a manobras pouco recomendáveis e abre as portas para uma liderança que, entre outros fatores positivos, pode colocar no topo da agenda a matéria relativa aos refugiados.

Em segundo lugar, a vitória de António Guterres como que grita em voz alta a vergonhosa prestação da comissão europeia e da Alemanha. O mundo não é a europa e impressiona recolher pontos de vista de observadores deste processo de países não europeus. A estupefação é a norma.

Numa UE a braços com o Brexit, com o drama mal gerido dos migrantes, com o referendo xenófobo da Hungria, com a crise económica e social em que muitos dos seus países estão mergulhados, encontramos o esplendor da direita na atitude de Merkel, que se prontificou a apoiar a candidatura imoral de Ivanova Kristalina.

A atitude de Merkel está em linha com a da comissão europeia, da qual Ivanova Kristalina é comissária, que teve por eticamente esplêndido conceder uma licença sem vencimento à candidata de última hora. Assim, sem tapar a cara de vergonha.

Enquanto uns se candidatam desde o início do processo ao cargo de SG da ONU prestando provas e sujeitando-se a sucessivas votações, outros, neste caso a senhora Kristalina, têm, pelos vistos, a possibilidade do respaldo de uma comissão europeia que guarda o emprego de quem queira fazer batota.

A vitória de António Guterres é a vitória dele, em primeiro lugar, do seu mérito posto à prova de acordo com o procedimento anunciado e concluído de forma transparente.

A vitória de António Guterres é a derrota de uma certa direita europeia, de um conceito de diplomacia europeia que nos envergonha e no qual não nos podemos reconhecer e dos que se têm alinhado, em todos os dramas que enfrentamos, no lado desnorteado da história.

É cristalino.

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