É a própria direção do CM, ao defender a publicação do vídeo como "jornalismo do melhor, sem medo, livre", a autoacusar-se de total desrespeito pelas regras, alardeando o seu sentimento de impunidade. Alegar que esta mesma direção é responsável por "um historial importantíssimo" é dizer "rouba mas faz". Por outras palavras, o CM pode ser corrupto e corromper tudo, desde que faça o trabalhinho.
Fernanda Câncio |
Não: publicar um vídeo que circulava nas redes sociais, de um rapaz a meter a mão nos jeans de uma rapariga enquanto à volta, num autocarro, outros rapazes e raparigas incitam e aplaudem, não é jornalismo. Um vídeo não é uma notícia. Notícia - porque tem interesse público - é informar sobre existência do vídeo, perguntar às autoridades se estão a investigar, procurar saber que autocarro era aquele, se o motorista sabia, tentar falar com alguns dos presentes ou até com os protagonistas, enquadrar o ocorrido em termos legais - pode ser crime? Se sim, qual? No caso de a jovem ser menor, quais as implicações? Filmar aquilo é lícito? E difundir?
Tentar responder a estas perguntas básicas seria jornalismo. Mas acarretaria trabalho e tempo. E desde logo tornaria evidente que filmar sem autorização dos filmados e difundir sem ela é crime (artigo 199.º do Código Penal, eventualmente associado ao 192.º, devassa da vida privada), agravado (197.º) se ocorrer por meio de comunicação social, visar o enriquecimento do agente ou causar prejuízo a outra pessoa. Mais: que no caso de a jovem ser menor o filme entraria na categoria pornografia de menores (176.º). Ou seja: fazer jornalismo implicaria tornar claro que ao publicar o vídeo o CM estaria a incorrer em vários crimes. Informar não seria compatível com publicar. Portanto publicou-se. E publicou-se aquilo que o CM, apesar de nada ter feito para se inteirar sobre o sucedido, apresentou como sendo o filme de um crime: "Rapariga filmada e abusada no Porto e ninguém fez nada." Publicitou-se o vídeo de um crime sexual, revitimizando sem piedade aquela que se apresenta como vítima, obrigada a rever o ocorrido e a confrontar-se com os comentários do público. Difícil encontrar adjetivos para tanta crueldade, para a perversidade de, ao mesmo tempo, escrever "e ninguém fez nada".
Acresce que, ao contrário do que a direção do CM pretende na resposta às críticas, quando o vídeo foi colocado no site todos os rostos estavam nítidos à exceção do da rapariga em causa - e mesmo essa seria identificada por quem a conhecesse. Só mais tarde as imagens foram tratadas, desfocando por completo os intervenientes.
Óbvio que, para além de incorrer nos vários crimes enunciados, o CM violou praticamente todas as regras jornalísticas. Inundada de queixas, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social instaurou um procedimento; o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas censurou o CM e apelou a que retire o vídeo do site (ainda lá está, contabilizando 15 889 partilhas - um êxito). Mas a Comissão da Carteira de Jornalistas, que tem o poder de zelar pelo cumprimento da lei que rege a profissão e cujo presidente foi tão lesto a gritar crime quando Ronaldo mandou o micro da CMTV ao lago, está como morta. E da PGR nem um pio. O facto de ninguém lhes ter perguntado nada ajuda: não houve um único artigo noticioso nos media portugueses - um único - sobre o assunto. Deve ser porque não tem importância nenhuma, não é?
Mesmo na opinião publicada impera o silêncio. Cinco dias depois (escrevo no domingo) contei apenas duas de jornalistas no ativo. Destas, a mais assertiva é a de Diogo Queiroz de Andrade, no Público: "Aquilo não é jornalismo", diz, afirmando que o desrespeito pelas regras evidenciado pelo CM na publicação do vídeo é, não uma exceção, mas o método do projeto. No mesmo sentido vão os colunistas Daniel Oliveira, no Expresso, e Pedro Marques Lopes, no DN: verberam a conivência silenciosa que tem, dos jornalistas à justiça e políticos (incluindo os que escrevem e colaboram com CM e CMTV), passando pela regulação, permitido, credibilizado e abençoado os desmandos do CM. E, notável, no próprio CM, Ricardo Valadas, presidente da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da PJ, repudia a publicação do vídeo, caracterizando-a como "violência gratuita", "exploração comercial" e "venda de conteúdo a todo e qualquer preço".
É tudo. E é normal. Porque quem ataca o CM sabe o que o espera. Veja-se a tese de João Miguel Tavares: sim, o CM "errou" ao publicar o vídeo mas é "abusivo" caracterizar o projeto a partir deste e outros "erros". Porquê? Porque, diz JMT, tem "um historial importantíssimo no escrutínio do poder político e na denúncia da corrupção". Sucede que é a própria direção do CM, ao defender a publicação do vídeo como "jornalismo do melhor, sem medo, livre", a caracterizar o seu entendimento e prática e autoacusar-se de total desrespeito pelas regras, alardeando o seu sentimento de impunidade. Alegar que esta mesma direção é responsável por "um historial importantíssimo" é dizer "rouba mas faz". Ou seja, não interessam os meios, quantos atropelos comete, crimes, atentados éticos, vidas destruídas. Por outras palavras, o CM pode ser corrupto e corromper tudo, desde que faça o trabalhinho. Pode até financiar-se à custa de vídeos de miúdas a ser abusadas, e ai de quem o atacar por isso: JMT e o CM cá estão para nos acusar de conluio com corruptos e "ódio".
Perguntou Bruno Nogueira, no Mata-Bicho da RDP: se não se reage a sério, com consequências, a isto, vai-se reagir a quê? Vamos esperar que o CM mate e viole para pôr os vídeos no site?" Boa pergunta. E a resposta é: sim, vamos.
Nota: Tenho, a correr nos tribunais, processos contra a Cofina, empresa proprietária do Correio da Manhã e da CMTV.
Fonte: DN
22 DE MAIO DE 201700:04
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