Helmut Kohl foi o Chanceler da reunificação alemã. Estava no sítio certo na altura certa, mas soube transformar-se no homem certo. Há uma Alemanha antes e depois do Chanceler e isso assegura-lhe um lugar na história, como se tivesse sido ele a coser a sutura que Hitler abriu.
Helmut Kohl ficará para a história como o homem que fez regressar o sonho de Bismark à Alemanha – esse país com mais de 1.500 anos de fronteiras impostas pelas guerras e pelos ódios que distribuía quase irmãmente pelos vizinhos, próximos ou nem tanto. Depois de um século em que os avatares da política interna alemã produziram uma guerra que ninguém queria mas todos sabiam que ia acontecer (a I Grande Guerra) e outra que todos preferiram fazer de conta que não ia acontecer mas aconteceu (a II Guerra mundial), foi Helmut Kohl quem assumiu a vontade e a perseverança de juntar os cacos e, de dois, fazer um país.
Dirão dele que estava no lugar certo à hora certa, sem que por isso fosse verdadeiramente responsável. É possivelmente verdade: quando, em 1 de Outubro de 1982, sucedeu a Helmut Schmidt como Chanceler, a possibilidade de a República Federal da Alemanha (RFA) e a República Democrática da Alemanha (RDA) se juntarem num único país era uma probabilidade absolutamente remota, sobre a qual ninguém se demorava um segundo. Mas Kohl soube ler os sinais e, por isso, soube transformar-se no homem certo na altura certa: Lech Wałęsa, líder do movimento grevista nos estaleiros de Gdansk, Polónia, ainda não tinha sido atropelado por nenhum tanque russo; João Paulo II, Papa desde Outubro de 1978, também era polaco; do outro lado do oceano, um ex-actor excitadamente anti-comunista, Ronald Reagan, prometia acabar com a semente do diabo sem que, do lado de lá da cortina de ferro, Moscovo lhe respondesse com a mesma virulência; e finalmente, precisamente nessa cidade do lado de lá da cortina de ferro, Moscovo, apareceu de repente (em Março de 1985) um homem, Mikhail Gorbachev, que parecia disposto a fazer uma revolução tranquila no interior da URSS.
Não podia ser de outra forma: a Alemanha de Helmut Kohl tornou-se no mais importante ponto de apoio de Gorbachev na Europa – os dois países têm relações antiquíssimas, chegaram a ter fronteiras comuns e era ali que estava a fronteira entre os dois blocos.
O Chanceler alemão percebeu rapidamente que estava ali a sua porta de entrada para a eternidade. Tendo substituído Schmidt sem ir a votos, liderando uma economia que estava longe de ser o motor da Europa e uma sociedade que ainda não se tinha livrado do terror dos Baader-Meinhof (financiados, veio a saber-se mais tarde, pela polícia secreta da RDA e que só seriam definitivamente desactivados em 1993), Kohl não era o mais amado dos chanceleres alemães, nem interna nem externamente.
Fazer parte da mudança
Helmut Kohl nasceu em Ludwigshafen am Rhein a 3 de Abril de 1930. Era o terceiro filho de um funcionário público e de uma dona de casa, que constituíam uma família conservadora e católica romana, que viu o filho mais velho sucumbir na II Guerra como soldado ainda quase criança e desesperou ao ver o último e lunático esforço de guerra de Hitler chamar o jovem Kohl para as suas fileiras. Não chegou a combater, mas deu mostras de querer entrar muito cedo nos avatares do pós-guerra: juntou-se à CDU, recentemente criada, em 1946, e foi um dos fundadores da juventude do partido na cidade onde nasceu.
Entretanto, desistiu de um curso de Direito para concluir um de História e Ciências Políticas – chegou a ser professor na Universidade de Heidelberg – e foi subindo os degraus no interior da hierarquia do partido até ter chegado, em Maio de 1969, a governador do Estado da Renânia-Palatinado (que fizera parte da zona de ocupação francesa no final da II Guerra), e, pouco mais tarde, a membro do Parlamento Federal (Bundestag). Já antes, em 1960, casara-se com Hannelore Renner (que haveria de se suicidar em Julho de 2001), com quem teve dois filhos.
Nas eleições federais de 1976, Kohl foi o candidato a Chanceler pela coligação CDU/CSU, tendo obtido 48,6% dos votos. Mas não chegou: o SPD de Helmut Schmidt, em coligação com o FDP, formou governo. Kohl decidiu então desistir do governo da Renânia-Palatinado e concentrar-se na liderança da oposição à coligação de centro-esquerda. Mas o partido acabaria por o castigar: nas eleições de 1980, Kohl foi preterido, e a coligação apresentou Franz Josef Straub como candidato a Chanceler. Também perdeu (outra vez para Schmidt) e voltou para o estado da Bavaria, de que era governador.
Dois anos mais tarde, um conflito entre os dois partidos de coligação no governo – o FDP queria uma liberalização radical das leis do trabalho, enquanto que o SPD preferia continuar a tradição proteccionista de que Bismark tinha sido pioneiro na Europa – ‘atirou’ o poder para os braços de Helmut Kohl. Através do chamado (e muito pouco usado e não isento de críticas) voto construtivo de desconfiança – que permite a um parlamento retirar a confiança a um governo se houver uma alternativa de sucesso potencial junto da oposição – Kohl tornou-se Chanceler da Alemanha.
A vantagem europeia
O novo homem forte do país não perdeu tempo a pensar quem tinha razão, se o SDP, se o FDP (que fazia parte do governo, juntamente com a CDU/CSU, depois de ter apoiado o voto de desconfiança): desde a primeira hora, Kohl mostrou à Alemanha que era tempo de liberalizar a economia. Deu início ao processo de privatizações (com a venda da Volkswagen, da eléctrica VEBA e da Lufthansa), mostrou que as leis do trabalho iriam ser revistas – ganhando o ódio de muitos sindicatos – e abriu as portas do país aos misseis que a NATO, a mando de Reagan, quis apontar para o Kremlin, Praça Vermelha, Moscovo. Para compensar a chuva de assobios que a militarização da Alemanha patrocinou um pouco por todo o mundo, foi, em Janeiro de 1984, o primeiro Chanceler alemão a discursar no Knesset, o parlamento israelita – mas isso não chegou para o ‘atirar’ para o plano muito restrito dos grandes estadistas europeus. Até porque Kohl era observado pela esquerda moderada europeia – onde se incluía o na altura presidente francês François Miterrand – como uma espécie de parceiro excessivamente amigo de Ronald Reagan.
A evidência de que Gorbatchev iria deixar ‘cair’ a cortina de ferro, a cintura de países ‘amigos’ à volta da URSS e, por arrasto, o muro de Berlim, catapultou Helmut Kohl para a ribalta da política internacional. Concluiu com o líder soviético uma espécie de armistício em tempo de paz – onde se incluiu a impossibilidade de a NATO colocar armas nos países vizinhos da Rússia, algo que foi rapidamente esquecido pelo lado ocidental e que foi uma das causas da guerra na Ucrânia – e tratou de juntar RFA e RDA naquilo que, afinal, sempre foram: uma nação.
A factura da reunificação – que, todos sabiam, iria ser muito pesada – resultou numa onda de desemprego, que na RDA assumiu proporções de epidemia, na falência de uma série de empresas ‘encostadas’ à economia planificada do lado oriental, em conflitos laborais e numa inesperada aceitação, por parte do Bundesbank, de uma paridade entre o marco ocidental e o marco oriental que era tudo menos sustentada na realidade da economia.
Essa factura foi passada em nome da Alemanha, mas também da União Europeia, mas foram os germânicos que, à posteriori, mais ganharam com ela: o país tornou-se o maior parceiro económico dessa ‘nova Europa’ que surgiu a Leste e para onde foram canalizados muitos milhões de investimentos.
Bolsos rotos
Apesar de tudo, Kohl acabou derrotado pelo SPD de Gerhard Schröder nas eleições de Outubro de 1998 (que governaria até 2005). Percebeu que o seu tempo estava esgotado e abandonou o partido e a actividade política. Até que, subitamente, a consultora Ernst and Young se lhe atravessou no caminho: uma auditoria às contas do partido descobriu que, entre 1991 e 1998, pelo menos 2,5 milhões de euros circularam em contas clandestinas que serviam para financiar o partido. O Chanceler recebia o dinheiro em liquidez e entregava-o aos responsáveis administrativos da CDU, que por sua vez o encaminhavam para a direcção financeira do partido. Os donativos eram disfarçados em transferências de menos de 20 mil marcos (dez mil euros) para escapar à lei do financiamento dos partidos que exigia a publicação da identidade de doadores de montantes superiores. “Uma tragédia”, haveria de dizer à altura o novo presidente do partido, Wolfgang Schaeuble, que chegou a convidar o seu antecessor a revelar a identidade dos misteriosos doadores. Uma mancha indelével no percurso político de Helmut Kohl.
Quando se retirou, deixou um(a) delfim: Angela Merkel, alguém que, precisamente, tinha nascido na RDA e que de algum modo, ao substituí-lo, fecharia o círculo da reunificação. Esteve ao seu lado na ascensão no interior da hierarquia do partido, mas deixou de estar quando Merkel se tornou numa das torcionárias das economias da Europa do Sul. Kohl não lhe perdoou que à solidariedade demonstrada pela União Europeia durante os períodos mais duros da reunificação – que fizeram aumentar genericamente o desemprego e a inflação e lançaram a economia da ex-RDA no caos mais absoluto – a Alemanha respondesse, duas décadas mais tarde, com uma única palavra: austeridade. “Não sabe”, “não tem ideia”, “não vê mais além”, disse Kohl em várias ocasiões sobre o que Merkel sabe, ou não sabe, sobre a condução da Europa, “da minha Europa”, como o velho Chanceler gostava de dizer.
Segundo muitos observadores, foi a reunificação que determinou o peso que a Alemanha tem hoje na União Europeia. E foi também a reunificação que fez Helmut Kohl entrar no muito restrito grupo de grandes estadistas europeus, depois de ter arriscado ser apenas mais um Chanceler sem presença assegurada nos livros de História. É que, para todos os efeitos, Helmut Kohl foi o homem que fechou com eficácia (económica, social e geo-política) o buraco negro para onde Adolfo Hitler e a sua ignóbil loucura haviam lançado um povo inteiro.
Fonte: Jornal Económico
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