terça-feira, 22 de agosto de 2017

Como a indústria da tecnologia deixou as mulheres de fora da história


Dame Stephanie Shirley, que criou uma empresa de tecnologia












Da 2ª Guerra Mundial até a década de 1960, as mulheres eram uma parte importante do setor informático. A cultura tecnológica hoje seria menos sexista se elas não tivessem sido marginalizadas? A discussão que hoje está aberta no Vale do Silício, na Califórnia (EUA), tem raízes históricas, mas que só agora estão no centro do debate.

Susie, o computador: sofisticado e barato. Susie e sua amiga Sadie apareceram em anúncios da década de 1960 para promover uma empresa de computadores já desaparecida do Reino Unido, acompanhadas por uma jovem atraente e sem nome. Anúncios feminizados como esses eram um estratagema comum na Grã-Bretanha naquela época, quando gerentes e diretores, todos do sexo masculino e não iniciados nas complexidades dessa nova tecnologia, consideravam as máquinas intimidadoras.

"Os computadores eram caros e o uso de mulheres nas propagandas para divulgá-los passava a sensação para os gerentes que empregos envolvendo essas máquinas eram fáceis e podiam ser feitos com mão de obra barata", explica a historiadora da tecnologia Marie Hicks.

Talvez elas recebessem o salário de uma datilógrafa, mas as mulheres como aquela que aparece ao lado de Susie e Sadie não tinham essa função — elas eram programadoras qualificadas, mas sem o prestígio ou salário equivalente ao que hoje esses cargos têm.


                 A propaganda dos computadores Susie e Sadie

Hicks escreveu um livro que ilustra como essa situação era comum na Grã-Bretanha naquela época. Programmed Inequality ("Desigualdade Programada", sem tradução para o português) revela que as mulheres eram a maior mão de obra técnica treinada do setor tecnológica no período entre a 2ª Guerra Mundial e até meados dos anos 1960.

Elas operavam imensos computadores eletromecânicos do tamanho de um quarto que quebravam códigos, trabalhavam na logística militar e faziam cálculos balísticos durante a 2ª Guerra Mundial. Mais tarde, elas foram trabalhar para departamentos de serviços públicos, operando os computadores necessários para o governo reunir e executar dados corretamente. "Foi visto como trabalho não qualificado e altamente feminizado", diz Hicks. "As mulheres eram vistas como uma força de trabalho fácil e acessível para empregos que eram críticos e ainda desvalorizados."

Os gerentes perceberam que as mulheres eram ideais para a indústria de computação porque achavam que não seria necessário oferecer qualquer tipo de plano de carreira, explica Hicks. "Em vez disso, a expectativa era que a carreira de uma mulher fosse curta por causa do casamento e das crianças. O que significava uma força de trabalho que não se frustrava nem exigia promoções e salários mais altos."Imagens que ilustravam anúncios dos anos 1960

A mudança de patamar da indústria tecnológica aconteceu na entrada da década de 1970. Com a importância dos computadores cada vez maior, o mercado percebeu que tinha em mãos algo valioso para o futuro.

Assim, houve uma mudança na mentalidade e as mulheres não eram mais bem-vindas no local de trabalho: governo e indústria entenderam que os computadores eram poderosos e deveriam colocar as máquinas em nível gerencial — só homens entravam nessa seara. Isso atingiu em cheio as mulheres.

"Eles não iriam colocar mulheres, vistas como operadoras de baixo nível, como as responsáveis pelos computadores", afirma Hicks. Elas foram sistematicamente eliminadas de seus cargos e substituídas por homens, que receberam mais e tinham melhores títulos de trabalho. A tecnologia entrou de vez no mercado, desta vez com o aval masculino.

Discriminação ainda existe

Atualmente, as empresas tecnológicas ainda percebem que é lucrativo tratar as mulheres de maneira diferente dos homens. Elas recebem menos, mesmo que ocupem cargos semelhantes aos homens. E isso está no centro do debate do setor, principalmente no Vale do Silício.

A diretor de operações da Facebook, Sheryl Sandberg, falou recentemente contra as disparidades salariais de gênero, reais no segmento tecnológico, em que gigantes como a Google foram acusadas de sistematicamente pagar menos às mulheres.

         Sheryl Sandberg, COO do Facebook (Foto: Makers)

Dois fatos jogaram combustível na fogueira. Em maio, a empresa argumentou que seria um “incômodo financeiro” ter que compilar um relatório com os registros salariais solicitados pelo Ministério do Trabalho dos EUA na questão da disparidade salarial entre homens e mulheres.

Depois, em agosto, a Google teve de encarar ações judiciais sobre o vazamento de um manifesto de dez páginas em que um engenheiro de software criticava as iniciativas de diversidade, com o argumento de que os homens ocupam mais papéis de liderança do que as mulheres na tecnologia devido a "diferenças biológicas".

A herança da década de 1960 está presente até hoje. "Mesmo que empresas como a Google obviamente não existissem naquela época, elas ainda estão se beneficiando das mesmas culturas que afastaram as mulheres", diz Hicks.

O efeito da marginalização das mulheres

Caso as mulheres continuassem a ser uma força importante na computação, a indústria de tecnologia teria sido muito diferente, afirma a historiadora. "Se as mulheres tivessem sido uma parte mais importante da indústria de alta tecnologia o tempo todo, tantas plataformas e aplicativos teriam os mesmos problemas com o sexismo desenfreado e a misoginia em seus locais de trabalho e seus produtos? Provavelmente não."

A indústria de computação britânica perdeu muito quando removeu as mulheres — e, de certo modo, essa decisão prejudicou demais o setor, diz Hicks. "Houve uma contínua escassez de mão de obra, uma vez que as mulheres foram descartadas. Muitos jovens que treinaram para fazer esses trabalhos logo decidiram buscar outra coisa porque essa função era vista como trabalho feminino. Não havia uma carreira para seguir, acreditavam."

Para ajudar a corroborar sua tese de que a indústria teria sido outra se as mulheres continuassem sendo parte da força de trabalho, Hicks cita o exemplo de Dame Stephanie Shirley, pioneira da tecnologia e que rompeu com preconceitos na época.

Para não se submeter à discriminação que sofria repetidamente no local de trabalho, a jovem de 29 anos criou um negócio de software próspero para programadoras de computador.

Em uma entrevista recente, Shirley disse que sabia que seu trabalho em uma estação de pesquisa do posto dos Correios de Dollis Hill era bom o suficiente para que ela fosse promovida, o que nunca aconteceu. "Quando eu deixei claro que estava com uma carreira profissional vigorosa, então começou a se formar uma tendência para me descartar", disse a empresária. Quando ela se casou, era de se esperar que parasse de trabalhar imediatamente.

"As mulheres continuam a carregar essa pesada bagagem cultural heteronormativa", diz Hicks. "Eu acho que apenas confiar nas empresas para fazer o que é certo não vai funcionar e os sindicatos terão de se tornar uma força maior novamente."

Além disso, é vital que a força de trabalho feminina invisível que manteve a indústria de computação há mais de 50 anos não seja esquecida. "É fácil escrever a história apenas olhando as pessoas que são realmente boas empreendedoras — não é tão sexy ou emocionante se concentrar em uma ampla faixa de trabalhadores sem rosto —, mas a mudança histórica não vem de uma pessoa fazendo apenas uma coisa."

Fonte: The Guardian

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