sábado, 10 de fevereiro de 2018

Macroscópio – Às vezes suspeita-se que há quem não saiba ler. E nem tente compreender.

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Foi mais uma daquelas vezes em que as redes sociais se incendiaram e as caixas de comentários se encheram de indignações, mas sobretudo foi mais uma daquelas vezes em que a leitura descontextualizada de um texto complexo alimentou uma controvérsia em que não se inibiram de entrar até alguns que tinham obrigação de falar com ponderação. O tema a que me refiro é, naturalmente, o bruaá levantado pela notícia do Público sobre a Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica 'Amoris Laetitia' publicada por D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa. O título sonante prestava-se à controvérsia – Católicos recasados devem ser aconselhados a abster-se de ter relações sexuais –, uma controvérsia de que o mesmo jornal tratava de dar hoje conta, tal como o Diário de Notícias.
 
Antes de dar conta de algumas reacções a este debate – e também à nota de D. Manuel Clemente – parece-me relevante remeter para os documentos originais. Devo dizer que, como jornalista, é um hábito que ganhei nos anos do papado de Bento XVI tantas eram as vezes que as suas intervenções apareciam truncadas ou mal interpretadas até pelas agências noticiosas internacionais. Nessa altura o Vaticano já tinha um excelente site, pelo que era fácil consultar os documentos em várias línguas e na sua versão autentificada. Não poucas vezes verifiquei que as interpretações eram distorcidas ou as frases eram citadas fora de contexto, pelo que ontem tive a mesma reacção ao deparar-me com a notícia. A leitura cuidada dos documentos não sustenta, na minha perspectiva, o burburinho que se levantou, mas não há como cada um julgar por si.
 
Primeiro que tudo vamos às origens, e as origens estão na exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amos), escrita pelo Papa Francisco na sequência do Sínodo dos Bispos dedicado às questões da família. Esse documento pode ser lido aqui na íntegra, na tradução portuguesa oficial do Vaticano: EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL AMORIS LÆTITIA DO SANTO PADRE FRANCISCO AOS BISPOS, AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS, ÀS PESSOAS CONSAGRADAS, AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA.
 
Decorria desta exortação que os bispos deveriam, nas suas dioceses, procurar interpretar as suas orientações da forma mais adequada às realidades locais. Os bispos, como os padres e todos os fiéis. Isso mesmo tem vindo a acontecer, sendo que o documento de D. Manuel Clemente trata precisamente do capítulo que mais dúvidas e discussões tem suscitado, o capítulo VIII, onde se abordam as chamadas “situações irregulares”, nomeadamente a de fiéis recasados. Neste processo destacou-se a carta dos bispos de Buenos Aires, "Criterios Básicos Para La Aplicación Del Capítulo Viii De La Amoris Laetitia", um documento que o próprio papa Francisco acolheu de forma entusiástica (no link pode ser lido tanto o documento dos bispos, como a carta que Francisco depois lhes enviou). As suas palavras não deixam lugar a dúvidas: “El escrito es muy bueno y explícita cabalmente el sentido del capitulo VIII de Amoris laetitia. No hay otras interpretaciones. Y estoy seguro de que hará mucho bien.”
 
Ora foi precisamente o documento dos bispos de Buenos Aires que o Cardeal Patriarca toma como referência para o texto, citando-o longamente na missiva que publicou e para a qual volto a deixar a ligação: Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica 'Amoris Laetitia'. Ora sucede que é precisamente no documento argentino que surge a referência à “continência”, algo que é explicitamente citado na alínea b) do ponto 2 da Nota:
b) Quanto ao processo: «… pode-se propor o compromisso em viver em continência. A Amoris laetitia não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)». Continuando: «Noutras circunstâncias mais complexas, e quando não se pôde obter uma declaração de nulidade, a opção mencionada pode não ser de facto fatível. Não obstante, é igualmente possível um caminho de discernimento. Quando se chega a reconhecer que, num caso concreto, há limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade (cf. 301-302), particularmente quando uma pessoa considere que cairia numa ulterior falta, prejudicando os filhos da nova união, a Amoris Laetitia abre a possibilidade do acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia (cf. notas 336 e 351). Estes sacramentos, por sua vez, dispõem a pessoa a prosseguir amadurecendo e crescendo com a força da graça.»  
 
É neste quadro que, já no final do texto, D. Manuel Clemente deixa as suas sugestões sobre a forma de lidar, na sua diocese – a de Lisboa – com situações que a Igreja Católica, por considerar o matrimónio indissolúvel, trata como “irregulares”. São seis “alíneas operativas” que devem ser tomadas em conjunto e não isoladamente, sendo que é nelas que volta a surgir a referência à “continência”. Vejamos quais são:
a) Acompanhar e integrar as pessoas na vida comunitária, na sequência das exortações apostólicas pós-sinodais Familiaris Consortio, 84, Sacramentum Caritatis, 29 e Amoris Laetitia, 299 (cf. apêndice). 
b) Verificar atentamente a especificidade de cada caso. 
c) Não omitir a apresentação ao tribunal diocesano, quando haja dúvida sobre a validade do matrimónio. 
d) Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação. 
e) Atender às circunstâncias excecionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados.
f) Continuar o discernimento, adequando sempre mais a prática ao ideal matrimonial cristão e à maior coerência sacramental.
A fechar a nota D, Manuel Clemente recorda três pronunciamentos de São João Paulo II, Bento XVI e Francisco sobre o acompanhamento de divorciados recasados.
 

Sendo eu hoje um não crente mas que teve formação católica posso entender que a linguagem da Igreja nem sempre é fácil de entender e ainda menos me custa verificar que existe um grande desconhecimento sobre a sua doutrina, as suas regras e o seu porquê. Por isso, ainda antes de qualquer troca acalorada de argumentos, que é sempre possível e salutar, importa compreender o enquadramento tanto da exortação apostólica do Papa Francisco, como da nota do Cardeal Patriarca. É precisamente isso que se faz em Divorciados, abstinência sexual e Igreja. 8 perguntas para perceber a polémica, um explicador do Observador onde João Francisco Gomes procura esclarecer oito temas:
  1. Como começou a polémica sobre os divorciados recasados?
  2. Afinal, o que defende o Papa Francisco que seja feito nestes casos?
  3. Em que casos é que a Igreja admite o acesso aos sacramentos?
  4. O que faz a Igreja para facilitar as declarações de nulidade do matrimónio?
  5. Porque é que o cardeal-patriarca escreveu agora este documento?
  6. E o que diz o documento?
  7. O cardeal-patriarca aconselha os divorciados recasados a não terem relações sexuais?
  8. Que outras dioceses portuguesas estão a aplicar estas novas orientações? E de que forma?
 
Esperando ter contribuído para que se possa partir para esta discussão de uma base mais esclarecida, acrescento mais duas sugestões relativas a dois textos onde o ponto de partida é mais informado. O primeiro é uma peça da agência Ecclésia onde se dá voz um médico e padre e a um juiz: «Acompanhar e integrar» são objetivos de diferentes propostas para várias situações familiares. Pequena passagem: “Para o juiz Pedro Vaz Patto, só quem vive a “fidelidade a uma promessa” e acredita na “indissolubilidade do matrimónio” coloca a possibilidade da “vida em continência”. “É uma proposta difícil, mas há quem o faça, da mesma maneira que há quem renuncie ao casamento depois de ter sido abandonado pelo cônjuge por fidelidade a uma promessa que foi feita”, acrescentou.
 
Um outro texto bastante interessante – e até combativo – é o do padre jesuíta Miguel Almeida, que mesmo estando nos Estados Unidos em estudo e em missões que têm precisamente a ver com a família, não passou ao lado da controvérsia suscitada pelos artigos dos jornais. Em O Patriarca e o sexo dos recasados critica os “títulos bombásticos”, lamenta que poucos vão ler a nota e lamenta os termos de um debate criado “porque, enviesadamente, para não variar, os jornalistas puseram os óculos do sexo e veem tudo pelo mesmo ângulo”. Ao longo do texto faz críticas quer aos católicos mais conservadores, quer à discussão aberta pelos jornais: “O Patriarca de Lisboa, na sua missão de bispo local, declarou-se em comunhão com o Papa e com a Igreja universal. E, lendo a nota pastoral, vê-se que o fez de modo prudente, tentando respeitar as diferentes sensibilidades que sabe coexistirem na sua diocese. Mas, para alguns, esta atitude é condenavelmente progressista. À fogueira! Para o resto das pessoas, que tiveram acesso a esta nota exclusivamente através das notícias nacionais, D. Manuel Clemente é exposto a um idealismo ridículo porque propõe que os “Católicos recasados devem ser aconselhados a abster-se de ter relações sexuais” (título do Público). Ridícula é a notícia!”
 
Mas assim estivemos, e estamos. Espero que, com esta ajuda e recorrendo aos documentos originais, os leitores desta newsletter possam ficar mais esclarecidos. E também lhes desejo, naturalmente, um bom fim-de-semana, com ou sem folguedos de Carnaval a animar.
 
 
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