quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Macroscópio – É desagradável, mas incontornável: o caso Ronaldo

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Há histórias que não são agradáveis, e esta é seguramente uma delas. Refiro-me à que envolve Cristiano Ronaldo e ocorreu há mais de nove anos num hotel de Las Vegas, num Verão em que o jogador estava de saída do Manchester United e de chegada ao Real Madrid. Em condições normais não seria um tema para Macroscópio. Mas acontece que nem tudo o que tem sido escrito e dito pode ser considerado “normal”. Por isso, e fugindo a julgamentos, deixo-vos o essencial daquilo que se sabe (com o aviso de que ler alguns dos artigos de investigação jornalística pode não ser recomendável para estômagos mais sensíveis) e alguns artigos das palavras que se têm cruzado nos espaços de opinião, sobretudo para notar como, com frequência, ficamos sem saber muito bem onde mora a racionalidade ou a mais elementar moderação. 
 
Começando pelos factos, um bom resumo, porventura o melhor da imprensa portuguesa, foi aquele que Carolina Branco preparou para o Observador. Em O que se passou em Las Vegas? A noite contada pela mulher que acusa Ronaldo de violação ela recapitula os pontos essenciais desta história: “O conhecimento na discoteca. O quarto de hotel com jacuzzi. A insistência na casa de banho e a violação na cama. A compra do silêncio por 375 mil dólares. E o porquê da denúncia agora.”
 
Mesmo assim não há nada como ler o trabalho original da Der Spiegel, um trabalho de investigação que teve como ponto de partida documentos revelados no “futebol leaks” e que, mesmo sendo duro, é muito exaustivo. Em  Her Name Is Kathryn - The Woman Who Accuses Ronaldo of Rape conta-se detalhadamente o que terá acontecido em 2009 em Las Vegas, dando-se voz à mulher que tinha acordado ficar calada em troco de um generoso pagamento. Como escreve a revista, “She possesses a document that could be extremely dangerous for him”. Eis a passagem em que esse documento é brevemente citado: 
DER SPIEGEL has obtained a copy of the letter which is almost six pages long. It is difficult to read. Essentially a long, desperate wail.
"I screamed NO NO NO NO NO NOOOO over and over I begged you to stop."
"You jumped on me from behind," she writes, "with a white rosary on your neck!! What would God think of that!!! What would God think of you!!!"
"I hope you realize what you have done and learned from this terrible mistake!! Don't take another woman's life as you did mine!!"
"I don't care about your money that was the last thing I wanted!! I wanted justice! There really is 'no justice' in this case."
 

Na edição seguinte da revista alemã, datada de 5 de Outubro, conta-se How Ronaldo's Legal Team Dealt with Disaster, revelando-se o que terão sido as pressões dos seus advogados para evitar que a história viesse a público: “When DER SPIEGEL first reported about Mayorga's case a year and a half ago without mentioning the alleged victim's name, the magazine received letters from two law firms specialized in media law. They hoped to be able to prevent the story from being published. A negotiator was also sent to Hamburg, where DER SPIEGEL is based, to learn more about the planned report -- a task at which he did not succeed. The man no longer works as part of Ronaldo's management team.”
 
Continuando ainda no que respeita a informação pura e dura imagino que muitos leitores se interrogarão sobre o que pode agora acontecer a Ronaldo uma vez que a polícia de Las Vegas reabriu a investigação criminal. No Observador tratámos desse tema em O que pode acontecer a Ronaldo em 20 respostas , um trabalho de João Francisco Gomes, Sónia Simões e Sara Antunes de Oliveira. Está bastante completo e analisa os diferentes cenários, incluindo os mais desfavoráveis para CR7, mas é curioso ver a avaliação feita pela americana Sports Ilustrated em Rape Allegations vs. Cristiano Ronaldo and the Many Legal Layers to a 9-Year-Old Case. Do ponto de vista estritamente criminal aquela publicação considera que é pouco provável que o jogador português venha a ser condenado e explica porquê: “To be clear, the likelihood of Ronaldo being criminally charged for an incident that occurred in 2009 remains low. A significant amount of time has passed since 2009. Both witness recollections and available evidence are likely much less persuasive now than they were in the weeks and months following the incident. Along those lines, over time witnesses can become unavailable and evidence can be lost or damaged. Also, the fact that law enforcement did not pursue Mayorga’s claims in 2009 could suggest that there are complications or discrepancies in her account that would make a prosecution difficult and thus unappealing to prosecutors.” Tudo isto apesar de a lei no estado Nevada para crimes de violação se ter tornado mais severa. 
Já no que diz respeito às perdas comerciais estas podem ser enormes, mesmo sem condenação ou mesmo sem processo e acusação: “As a secondary concern to Ronaldo, his endorsement contracts could become endangered if endorsed companies determine he is too unpopular due to the rape allegation. Ronaldo has a lot on the line in endorsement money. According to Forbes, Ronaldo earns $47 million a year in endorsements, including from lucrative deals with Nike and EA Sports. Endorsement contracts with major companies virtually always include “morals clauses.”
 
É neste pano de fundo que se têm cruzado vários debates em Portugal. Num deles políticos e dirigentes desportivos entenderam dever sublinhar as virtudes de Ronaldo. Marcelo Rebelo de Sousa disse que não mudaria “de ideias quanto ao papel desportivo e nacional que alguém que hoje está envolvido na justiça teve na vida do nosso país”, enquanto António Costa sublinhou que o jogador “muito tem honrado e prestigiado Portugal”. Apesar de nenhum deles se pronunciar directamente sobre as acusações, esta defesa indirecta de Ronaldo foi criticada por Alexandre Homem Cristo no Observador em Ronaldo acima do bem e do mal, considerando este autor que “Estas reacções cometem um mesmo erro grave que mancha quem as pronunciou e as instituições que representam: respondem a uma acusação de violação com o reconhecimento profissional e social do atleta, misturando os assuntos e visando ilibar indirectamente Cristiano Ronaldo – como quem diz “uma pessoa assim não pode ser culpada”. Mas pode”. Mais adiante sublinha-se que “o que é detestável na fúria persecutória do #MeToo é exactamente o mesmo vício que é detestável na rejeição liminar das acusações de abusos sexuais que ídolos nacionais são alvo: a indiferença pelos factos e pela verdade. É essa indiferença que tem de ser combatida, reforçando a legitimidade da Justiça e do Estado de Direito. E são declarações como as de Marcelo Rebelo de Sousa que prejudicam esse combate.”
 
Em dois textos também bastante políticos, ainda no Observador, Paulo Almeida Sande e Alberto Gonçalves divergem claramente. O primeiro, em Em defesa de Ronaldo, prefere sublinhar a presunção de inocência – “Por Ronaldo ser uma vedeta, um herói mediático, um divulgador do nome do país, não pode ter mais direitos do que o comum dos cidadãos – mas também não pode ter menos. Conceder-lhe o benefício da dúvida, acreditar na sua inocência, é agradecimento maior, mais justo, do que dar o seu nome a um aeroporto.” – enquanto o segundo, em A união faz a força bruta, depois de sublinhar que, sobre o tema, a sua opinião é nenhuma, denuncia as indignações selectivas do feminismo: “se as denúncias provêm de uma americana que, em vez de comprometer um juiz escolhido pelo sr. Trump, compromete o sr. Ronaldo, certo “feminismo”, pelo menos de extracção caseira, sofre novo abalo e procede, hesitante, à desvalorização da fêmea em causa para não desvalorizar o motor do orgulho pátrio. Aqui, escusado notar, o “machismo”, que nunca hesita, fica a um passo de propor o esquartejamento da tal senhora.”

 
Esta selectividade indignações foi também tema para João Miguel Tavares que, no Público, em Viva o #MeToo! (A não ser que atinja CR7), foi muito cáustico com o silêncio cúmplice, ou mesmo com as justificações trapalhonas a que se entragaram muitos comentadores e comentadoras: “O #MeToo é um movimento excelente e necessário, sim senhor, desde que não se meta com o nosso menino bonito da Madeira, porque esse é um herói nacional. E, assim, uma jovem americana que em situação normal seria apresentada como pobre vítima, neste contexto não passa de uma desavergonhada oportunista. Onde estão a CIG e as Capazes quando mais precisamos delas? Ah, já sei: estão entretidas a ler cadernos de exercícios da Porto Editora e a apresentar queixas do economista Pedro Arroja e do taxista Jorge Máximo por dizerem idiotices. Quando o acusado se chama Cristiano Ronaldo, o machismo mais desbragado já tem ordem de soltura.”
 
Mas onde se tem uma verdadeira ideia da ginástica argumentativa a que algumas se entregaram é nesse mesmo Público, muito pela mão de Ana Sá Lopes, quer pelos exemplos que cita, quer pelas reacções que o seu texto Santo Ronaldo e as prostitutas provocou. Não admira, pois são muitos os exemplos referidos nessa coluna, alguns deles de mulheres conhecidas pela sua militância esquerdista. Veja-se este exemplo: “[Raquel] Varela recusa-se a misturar as “verdadeiras violações” com o caso “Ronaldo e a garota de programa”. A diabolização da queixosa não podia ser mais cruel. É por estar em causa Ronaldo, a nossa bandeira nacional? É mais complexo: o profundo machismo entranhado em extensas partes da população feminina vai demorar séculos a erradicar.”
 
Claro que Raquel Varela não se ficou e teve direito a espaço no público para uma conversa com Teresa Rita Lopes, a que chamaram Luta de sexos, o novo feminismo. Não sei bem como descrever o delírio, mas deixo duas passagens: 
Raquel Varela:“O MeToo, embora pareça de esquerda, porque é "amigo das vítimas", trata-se de uma reacção mundial conservadora em curso em vários países que defende que em nome da segurança deve-se diminuir a liberdade, ou suprimi-la em parte. É um movimento conservador contra as Luzes.”
Teresa Rita Lopes:“Na presente novela ronaldiana é ser irracionalmente feminista defender cegamente a fêmea, que, coitada, foi forçada a... neste caso, não só a assinar o compromisso de calar o bico a troco de 300 e tal mil euros como, se calhar, a ignorar agora o contrato e pedir mais!
 
Com isto nestes termos foi um antigo deputado bloquista, João Teixeira Lopes, que no mesmo Público, em A conversa de café de Raquel Varela e Teresa Rita Lopes, sentiu que, mesmo estando todos na mesma área política, a coisa tinha ido longe demais: “A Serra de Sintra a arder, os paióis do exército roubados, Bolsonaro no Brasil e estas fêmeas, as novas feministas, desenfreadas a darem nas vistas contra a violação! É preciso topete, dizem as duas amigas na conversa de chá. Mas o paroxismo estava reservado a Raquel Varela e ao seu azedume a Kathryn Mayorga, a pura ideologizada, vanguardista e revolucionária contra a puta.”
 
É possível que, nesta altura, o leitor já tenha perdido por completo o fio à meada, e na verdade nem fio esta última meada tem. Recomendo-lhe por isso que fuja destes desvarios, vá às fontes (o texto da Spiegel e aqueles que, em Portugal, melhor sintetizaram a história aí revelada) e, como eu tantas vezes sugeri, procure formar a sua opinião – que como é óbvio não tem de ser o seu julgamento de culpado ou inocente. Aliás não deve ser. 
 
Tenham todos bom descanso e boas leituras. 
 
 
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