segunda-feira, 3 de junho de 2019

Adeus Agustina

É de Agustina o primeiro livro editado pela Guerra e Paz.
Hoje dizemos-lhe adeus.


A escritora Agustina Bessa-Luís morreu hoje, dia 3 de Junho, aos 96 anos. Neste momento de profundo pesar, a Guerra e Paz recorda a tarde do dia 10 de Abril de 2006, data de lançamento da editora, de que a escritora foi a primeira autora. Agustina devia ter presidido a essa sessão no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, para lançamento do livro Fama e Segredo na História de Portugal, mas um problema de saúde forçou a que a sua amiga Inês Pedrosa a substituísse.
Agustina não voltou a recuperar e esse foi o último livro que escreveu para a Guerra e Paz, que conta ainda no seu catálogo com a única autobiografia da maior escritora portuguesa do século XX, O Livro de Agustina.
Além destes dois títulos, a Guerra e Paz orgulha-se de ter sido a escolha desta incontornável figura da cultura nacional para a publicação de As Meninas, um livro único onde a escrita de Agustina encontra a pintura de Paula Rego. À família e amigos da escritora, a Guerra e Paz apresenta as mais dolorosas condolências.

AgustinaTestemunho do Editor, Manuel S. Fonseca
Conheci Agustina quando, com aquele descaramento tintado pela confiança que perpassa por certos heróis masculinos dos romances dela, arranjei maneira, primeiro de lhe telefonar, depois de a visitar na casa da Buenos Aires, em Lisboa, e por fim de lhe invadir a casa do Gólgota, no Porto. Nunca fiz isso com mais ninguém. E corrijo: a outra excepção é Mécia de Sena.
Conheci Agustina e, apesar de muito ter gostado de a conhecer, rói-me o desmedido e irrealizado desejo de não a ter conhecido menina. Vejam bem, a Agustina que eu conheci sempre teve o riso de menina, o gesto inocente de menina, como se a menina usurpasse nela a plenitude da mulher.
E se me é permitido dar asas megalómanas aos meus desejos, muito mais teria gostado de ter conhecido Agustina menina e na praia. Há um retrato dela, num dos livros que lhe publiquei, em que está de vestidinho de étamine cor de morango às pintinhas, as mãos postas no regaço. Está ao lado da mãe e na mãe já está a mulher que viria a ser a Agustina adulta. Até o vestido de seda crua. 
Eu diria que nos meus esparsos encontros com Agustina, nas apresentações de livros e até numa festa com Manuel de Oliveira (nos 90 anos dele?), a menina e a mulher se acotovelavam dentro de Agustina, entregando-se a essas conversas e reservados exercícios femininos que, por tão bem os conhecer, Agustina com facilidade atribuiu a Paula Rego no maravilhoso As Meninas,  o mais belo livro que me foi dado publicar, de texto tão irreverente, tão fino, tão caprichoso.
Sucessivamente, Agustina, ou a mulher com riso de menina e gestos de menina, escreveu para mim, depois de As Meninas,  também a sua autobiografia até ao 25 de Abril, a que chamou O Livro de Agustina dando-lhe por subtítulo A Lei do Grupo, o belíssimo texto com o provocantíssimo título Um Tijolo Quente na Cama”, para prefaciar o Cântico dos Cânticos, e resgatou a História de Portugal e os nosso heróis à chatice e ao convencionalismo, cantando-lhes a fatalidade com imaginação, e um humor que desce às cavernas de Ali Babá da irrisão, em Fama e Segredo da História de Portugal. 
E agora, sabendo o que foi esta última década de vida de Agustina, essa forma mais imponderável do que nefelibata de viver a vida, tenho dela esta visão: estou a vê-la e voltou a ser a menina de três anos que sai, sozinha, de um hotel de Espinho e caminha, levada pelo seu vestido de voile azul claro, rumo ao que ela chamava um fio de epilepsia. E rematava: «Talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico.»
Morreu Agustina e ficou, com os seus vestidinhos leves, cabelos alourados, a menina que guardaremos para sempre: e a menina é um rio de palavras, sobressaltado rio de incertezas profundas. É mais do que literatura, é milagre infantil e criação do mundo.

Mário Alexandre Borges 

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