- Péricles Capanema
O verdadeiro afeto nutre a sinceridade. Ou a franqueza, tanto faz. Semanas atrás recebi com especial agrado presente valioso de amigo antigo e próximo, era livro que ele sabia ser de meu gosto; encontrara-o, creio, em andanças pelos sebos. “Aparências e realidades”, o título do volume, edição de 1922 (Monteiro Lobato & Cia Ltda), reúne coletânea de Gilberto Amado (1887–1969), escritos respigados entre 1919 e 1922. Vou destacar aqui apenas trechos de um dos trabalhos “A propaganda maximalista e a sua superfluidade”. Maximalista, na linguagem da época, significava comunista. Propaganda comunista, portanto, no Brasil de 1920. Será, linhas gerais, artigo de transcrições. A matéria de Gilberto Amado — hoje especialmente atual, penso, no aspecto que destaco — contém análise severa sobre características do povo brasileiro. Borbota viva, ouso afirmar, do enorme afeto que tinha pelo torrão natal, esteado na veracidade, honestidade e funda percepção. São franquias, direitos concedidos ao afeto autêntico, no caso dele isento de ufanismos ocos e chavões distantes do real.
Atalho necessário. Faço um volteio. Para entender de forma arejada e aproveitar bem as censuras do ilustre sergipano, tido como dos homens mais inteligentes do Brasil, convém pequeno desvio. As palavras dele não brotaram de coração ressentido, borbotaram vivificadas pela benquerença. Vamos lá. Amado morreu em 27 de agosto de 1969, morava, havia pouco, algum tanto isolado e doente, no Rio de Janeiro. Amigos e admiradores fizeram-lhe homenagem prestigiosa. À maneira da época, foi organizado jantar solene, presentes personalidades de destaque, no Country Club, tendo como motivo (e pretexto) o lançamento da 3ª edição de um de seus livros — Eleição e Representação. Para a noite de gala foi escolhido como orador o deputado Gustavo Capanema (1900-1985), cujo discurso de reconhecimento e homenagem, 20 de agosto, nota melancólica, antecedeu de uma semana a morte de Gilberto Amado. Na oração, é o que agora mais nos interessa, Capanema lembrou numerosas afirmações do pensador nordestino sobre o Brasil, entre elas as palavras finais do livro relançado inicialmente em 1932, a seguir transcritas: “Nós somos responsáveis pelo mais belo pedaço do planeta. Temos de polir e facetar o maior e mais admirável diamante do mundo. Aumentar-lhe o valor, afinar-lhe as arestas para que ele dê, aos olhos do mundo, toda a sua luz. Não o estraguemos com os instrumentos de uma ourivesaria bronca e primitiva, tenhamos a mão sábia no tocar essa peça prodigiosa. Quem perde a esperança no Brasil não é digno de viver”. Capanema assim terminou seu discurso: “Sempre fui fascinado pela vossa genialidade. Mas o que mais admiro em vós, ó grande Gilberto Amado, é o vosso patriotismo”.
Sinceridade cauterizante. Patriotismo real dá direito a franquezas. Fazem bem franquezas expressas com tato nas horas certas, cauterizam feridas infectadas de há muito. É o caso. Gilberto Amado viu muita superficialidade de espírito e imitação servil, sintomas alarmantes, cuja persistência prejudicaria gravemente o futuro pátrio, em episódios de nossa história, em geral objeto de vanglória, como, por exemplo, na independência, abolição da escravidão, proclamação da República e a separação da Igreja do Estado: “Concluímos daí uma superioridade de que nos vangloriamos. Nessa vanglória é que está a superficialidade. Dela nos deveríamos entristecer”. Seria uma tristeza restauradora.
Povo reflexo. Para ele, o impulso maior de todos esses movimentos foi mera imitação de modas estrangeiras. Modas intelectuais, modas políticas: “Nenhum sinal é mais forte de que não temos sido senão meros reflexos de outros povos”. Avança: “No terreno das ideias e dos sentimentos, o Brasil é um país reflexo, espelho da vida e das formas que o esforço humano vai criando e aperfeiçoando em outros ambientes”.
Proclamação da República na indiferença e cegueira generalizadas. O texto é longo, aqui deixo apenas um exemplo de suas elucidativas constatações:
“A República, sim, é que é o fato característico da indiferença política da população. Ao pensar no modo pelo qual tudo se fez, que o povo brasileiro (escrevo povo brasileiro, fazendo certa violência à clareza da expressão, pois população não é povo), estava cego, e que se fez, diante dele, a mutação de cenário, sem que seus olhos se apercebessem do que se passava. Esse fato é um fenômeno colossal. O caso desse rei, nativo do Brasil, que reinou durante quase meio século, que é expulso de seu país, sem que em seu favor se levante um grito, uma palavra, um movimento de reação ou solidariedade, representa por si só uma das coisas mais espantosas de que há memória desde que o mundo é mundo. No dia 15 de novembro, às 5 horas da tarde, depois de proclamada a República, dir-se-ia ninguém se lembrava mais que tinha havido até poucos minutos, no Brasil, uma dinastia, uma monarquia, uma corte. Na retina opaca dos cegos não passou nenhuma irisação de luz, denunciando que alguma coisa de novo e de anormal acontecia. O imperador não tinha um amigo. Apeado do poder, o príncipe augusto, cujas mãos limpas e fracas acariciaram durante cinquenta anos o dorso mole do povo distraído, subitamente deixou de existir. A República se instalou serenamente. Mandou buscar seus novos costumes nos Estados Unidos”.
Separação da Igreja do Estado revela despreocupação religiosa. Observa Gilberto Amado: “A prontidão e a calma com que se fez a separação da Igreja do Estado, por um simples decreto, é outro dos motivos de orgulho para muitos dos comentaristas otimistas ou apressados a que aludimos de começo. Mas a verdade é que nisto se prova apenas que o Brasil é um país sem religião”. O comentário realça a ausência do fervor, mas deixa de lado ponto importante no acontecimento: a Hierarquia eclesiástica de alguma maneira se sentiu aliviada com a separação, pois o Padroado, vigente no Império, incomodava.
Maximalismo. Maximalismo, lembrei, na época equivalia a comunismo. Havia pequena propaganda do comunismo entre 1919 e 1922. Gilberto Amado afirma que o comunismo venceria fácil no Brasil, não pela ação dos propagandistas, mas por outro fator: “Se o maximalismo vencer na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos, nós o adotaremos aqui de um dia para outro, haja ou não haja preparo na propaganda”. Vai adiante: “Esperam pelo que se fizer na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. O que qualquer dessas nações realizadoras da nossa história fizer, nós faremos. Fazer, originariamente, porém, nos é impossível”. De outro modo, servilismo. Nenhuma originalidade, autonomia tísica; enfim, irrigação mirrada das raízes.
Continua o mimetismo. Hoje é diferente? No geral, para desgraça nossa, tudo permanece do mesmo jeito, subserviência generalizada, animando retrocessos. Dou só um exemplo, poderia lotar o texto com vários. A reforma agrária, entre nós, foi feita por imitação a modas estrangeiras; o disparate contínuo e empobrecedor vem desde a década de 50. Modas estrangeiras, aliás, que deram errado onde foram aplicadas. O grande responsável institucional pela gastança desenfreada de dinheiro público com prejuízo gritante da produção, da produtividade, do emprego e da renda é o Estatuto da Terra de 1964 (governo Castelo Branco), entulho autoritário, fonte perene de atraso, que até hoje nutre e estaqueia radicalismos que vieram depois, obstáculos, repito, a aumentos de produtividade, emprego e renda. Se somarmos o dinheiro público jogado no ralo com o mensalão e o petrolão, estou certo, é só fazer as contas, a soma representará porcentagem pequena em relação à riqueza surrupiada do povo e do Estado pela aplicação durante décadas da reforma agrária de inspiração socialista, com viés confiscatório. Em manifesto de dezembro de 1964, largamente difundido no Brasil, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira e a então diretoria da TFP qualificaram o texto da nova lei de “incorreto em sua terminologia, confuso e passível eventualmente das mais perigosas interpretações; constitui para o Brasil uma verdadeira encruzilhada, a mais grave de sua história”. Estavam certos. Perderam os necessitados, perderam os proprietários, perdeu o Brasil. Informa o INCRA, dados recentes, talvez já haja mais terra desapropriada, já foram desapropriados no Brasil 87.535.596 hectares, mais que a área somada de Minas e Rio Grande do Sul. O agronegócio, que impede a quebradeira do Brasil, ocupa espaço menor. Roubalheira, contratos de gaveta, produtividade mínima, criminalidade, é o histórico macabro dos assentamentos. Visite um deles, qualquer um, pergunte aos vizinhos, fuja dos folhetos oficiais, e verificará a realidade. A respeito do desastre da reforma agrária, comentou Xico Graziano, dos maiores especialistas na área:
“O Brasil cresceu, urbanizou-se, virou potência mundial agrícola, sem necessidade de reforma agrária. A terra está produtiva, gerando milhões de empregos. Gente boa, miserável, mistura-se aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos assentamentos. Iludidas com promessa de futuro fácil, massas são manipuladas e treinadas para invadir fazendas e erguer lonas pretas. A classe média se apieda, enquanto a burguesia, assustada, apoia veladamente. Imaginar que um pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada, possa se tornar um agricultor de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos, significa raciocinar com o absurdo. Abstraindo os picaretas da reforma agrária, que engrossam as invasões, os demais, bem-intencionados, dificilmente sobreviverão”.
O servilismo amordaça as bocas e entorpece as mentes. Não nos iludamos. O servilismo amordaça as bocas e entorpece as mentes. Ninguém, ou quase ninguém, ousa falar a respeito do desastre da reforma agrária. Fato óbvio, contudo. Constatação macambúzia, considerando como fator de previsão o histórico decepcionante, não iremos abandonar por agora o tóxico entorpecedor, temos xodó por esse tumor de estimação. E até é generalizada a birra com quem dele fala mal. Em resumo, no fato acima lembrado e em vários outros aspectos da realidade brasileira, para infelicidade geral, em particular dos menos assistidos, perdura a situação de povo reflexo, escravo de modas do Exterior. Gilberto Amado lá pelo início do século passado, franco e lúcido, apontou defeitos que impedem prosperidade real. Merece por isso nossa gratidão e releitura, textos atuais.
ABIM
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