segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A ONGNIZAÇÃO DAS PERIFERIAS

Rui Peralta, Luanda 
Com a imposição, por parte do FMI, do “Ajustamento Estrutural”, os governos cortaram despesas públicas nos sectores da saúde, educação, assistência a crianças, etc., abrindo as portas para as ONG`s entraram. A privatização da vida económica também significou a ONGnização da economia e da política social. Os empregos e meios de subsistência desapareceram? Eis as ONG`s, uma importante fonte de emprego!

Certamente que nem todas se regem pela mesma bitola. Dos milhões de ONG`s existentes na economia-mundo, algumas fazem um trabalho notável e seria caricato e irrealista pintá-las todas com o mesmo pincel e da mesma cor, ou com ligeiras variações. No entanto, é bom não esquecer e ignorar, que muitas ONG`s são um instrumento para desestabilizar, comprar e infiltrar os movimentos de resistência, exactamente da mesma forma que os accionistas compram acções de empresas, e em seguida tentam controlá-las a partir de dentro. Funcionam como nódulos do sistema nervoso central, os caminhos ao longo dos quais fluem as finanças globais. São transmissores, receptores e amortecedores, um alerta para cada impulso, cuidadosas e suficientemente diplomáticas para não irritar os governos dos seus países de acolhimento (não é por acaso que a Fundação Ford, por exemplo, exige que as organizações que financia assinem um compromisso com essa finalidade).

Servindo como postos de escuta, produzindo relatórios, workshops e outros dados de alimentação de actividade, movimentando-se num elaborado sistema de vigilância, as ONG`s operam no terreno de forma mais ou menos discreta, conforme a sua actividade seja consciente da sua função ou inadvertida (infiltrada). O seu numero numera determinada área é determinado pela conturbação, ou seja, quanto mais conturbada uma área for, maior será a quantidade de ONG`s. 

Um dos focos principais da sua actividade (um dos seus nichos de mercado) é o da “indústria dos direitos humanos”, um discurso cujo objectivo é a utilização dos direitos humanos para actividades de desestabilização politica, recrutamento, vigilância, propaganda e contra-informação, além de permitir uma análise baseada em atrocidades, onde o factor principal é bloqueado. Focam as atrocidades e as violações primárias com o objectivo não de denunciar mas de encobrir as causas. Desta forma contam-se estórias que nos põem com uma lágrima no canto do olho e afastam-nos da História e da realidade do presente.

Também o movimento feminista foi objecto deste discurso. Na década de 60 estes movimentos revelaram incapacidades diversas em acompanhar a radicalização das mulheres no sentido das lutas anti-imperialistas e anticapitalistas. Uma forte corrente do movimento feminista caminhou neste sentido mas muitas outras tendências não o fizeram, deixando o movimento fragilizado e tendente a divisões, o que foi aproveitado, de forma genial, pelas fundações dos oligopólios e pelas ONG´s. A ONGnização do movimento das mulheres fez do feminismo liberal ocidental (a “marca” mais vendida) o porta-estandarte do feminismo. A batalha jogou-se sobre o corpo das mulheres, resumindo-se a posições de liderança, burcas e moda feminina. Para trás ficaram as mulheres trabalhadoras, a luta surda contra o patriarcado no seio da família patriarcal, os direitos no trabalho, o acesso ao mercado, a violência contra a mulher (abordada sempre de forma muito inconsequente e baseada na agressão física, nas marcas no corpo) e outras formas de exploração da mulher.

Para as ONG`s, através do seu discurso anódino, tudo é assunto particular, profissionalizado, de interesse especial. Neste âmbito, o desenvolvimento comunitário, liderança, direitos humanos, saúde, educação, direitos reprodutivos, AIDS, órfãos com AIDS é marcado e encerrado no seu próprio espaço, para melhor ser rentabilizado o financiamento atribuído. Questões sociais como a pobreza, a miséria, a precariedade, tornam-se - através do discurso insalubre do ONGnismo - um problema de identidade (a exemplo do feminismo), como se os pobres não fossem obra da injustiça, mas uma tribo perdida que só se limitou a existir e pode ser resgatada em pouco espaço de tempo por um sistema de alívio à injustiça (administrado pela ONG e pelo seu “activismo”), no âmbito da politicamente correcta “boa governação”.

ONGnizados, os pobres, as mulheres, os trabalhadores, as vítimas da guerra, da fome e da miséria, as vítimas do abuso, as vítimas do desrespeito pelos direitos humanos, assumem o seu lugar nos mercados periféricos da economia-mundo…

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