sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Macroscópio – Algumas notas sobre a eleição de António Guterres e o mundo que o espera

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Era inevitável. Numa semana que recordaremos como aquela em que um português, António Guterres, foi escolhido para secretário-geral das Nações Unidas (sim, eu sei, ainda falta a eleição na Assembleia-Geral, mas será pouco mais do que uma formalidade), era inevitável que o Macroscópio dedicasse uma edição ao significado deste triunfo. E vamos fazê-lo procurando fugir ao muito que já disse e escreveu em Portugal (com uma ou outra excepção) para nos centrarmos nos editoriais e análises da imprensa internacional. Com um extra: no final desta newsletter haverá uma pequena surpresa, que peço que não deixem escapar.
 
Antes de irmos à imprensa internacional, deixo apenas quatro referências portuguesas que me pareceram mais merecedoras da vossa atenção:
  • “Estou rendido” a Guterres, disse Boris Johnson. Os segredos do sucesso da campanha na ONU. De entre os vários trabalhos especiais que o Observador dedicou à eleição escolhi este, da autoria da Rita Tavares e do Pedro Rainho, por me parecer que, dos diferentes textos publicados na imprensa portuguesa, ser o mais rico nos detalhes. E por contra a deliciosa reacção do loiríssimo ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Boris Johnson, que no seu modo expansivo disse a Margarida Marques, à margem de um encontro em Berlim, como Guterres o tinha convencido: “Estou rendido ao teu candidato. Fiquei impressionado”.
  • O mundo e os desafios que esperam António Guterres. Esta semana a minha habitual conversa com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto foi naturalmente em torno dos desafios que esperam António Guterres, nela se destacando os limites do poder da Nações Unidas e as muitas tensões de uma ordem mundial cada vez mais pulverizada. Como os seguidores destas Conversas à Quinta já sabem trata-se sempre de uma troca amena de impressões, deste vez especialmente bem informadas, até pela experiência passada de Jaime Gama. Também pode ser ouvido em podcast.
  • O mundo que espera Guterres. Agora salto para o Público, onde Jorge Almeida Fernandes explicou como “era mais fácil ser secretário-geral da ONU na era do mundo bipolar e da Guerra Fria ou na brevíssima e ilusória Pax Americanaque se lhe seguiu.”
  • Guterres e Marcelo. A longa história de dois amigos rivais. Regresso ao Observador e a um dos nossos especiais, este bem à margem da eleição propriamente dita, mas de leitura bem interessante pois nele Vítor Matos (o nosso editor de Política e autor de uma biografia de Marcelo Rebelo de Sousa) conta como “Eram amigos. Formaram um grupo católico para influenciar o poder. Foram poder. Nunca se defrontaram. Atacaram-se. Traíram-se. Fizeram as pazes. Um está no topo do mundo. O outro no topo de Portugal.” Quem diria olhando para velhas fotos do seu tempo de juventude?
 
                       
Mas chega de referências portuguesas, pois se prosseguisse teriam de ser dezenas. Vamos antes a algumas referências internacionais que julgo especialmente significativas:
  • Why Guterres won the race for U.N. secretary general despite not being a woman. Uma análise de Max Bearak no Washington Post que conta como o desempenho de Guterres no ACNUR foi decisivo, mas não só: “He is a charismatic speaker who isn't afraid to call out adversaries in his speeches, even if they are in Washington or Moscow. Given the soft-spoken demeanor of the current secretary general, Ban Ki-moon, Guterres promises to bring at least some more rhetorical firepower to the U.N. Ban hasn't been loud, literally and figuratively, and under his tenure, the role of secretary general has lacked the commanding moral authority that one might expect from the convener of the world's nations.”
  • A safe pair of hands. É assim que a The Economist classifica a escolha do Conselho de Segurança. Que depois descreve a sua missão colocando a fasquia da exigência bem alto: “The secretary-general has three broad tasks: to encourage a multiplicity of agencies to help poor countries grow less so; to uphold human rights across the world; and to prevent war and pick up the pieces after violence has broken out. His job was described by a previous incumbent as “the most impossible on earth”. Mr Guterres, a man of principle as well as pragmatism, will need luck as well as skill.”
  • A New Voice for a Complicated World. Editorial do New York Times, claramente entusiástico: “Mr. Guterres, a forceful personality and an effective political communicator, may become, as Matthew Rycroft, the British ambassador to the United Nations, said, the kind of secretary general “who will provide a convening power and a moral authority at a time when the world is divided on issues, above all like Syria.” If Security Council members permit Mr. Guterres to do that, he may yet restore the mission and reputation of an international institution that is still trying to find its role in a perilous and complicated world.”
  • Guterres has a delicate path to tread at the UN. A análise do principal comentador de assuntos internacional do Financial Times, Gideon Rachman, onde se considera que “The very fact that Mr Guterres has got the job, at all, points to his diplomatic qualities. Originally, it was widely assumed that the next UN Secretary-General would probably be a woman – and would probably hail from Eastern Europe. But Mr Guterres managed to confound those expectations. Above all, he managed to avoid drawing a veto from either the US or Russia. At a time of heightened tensions between Washington and Moscow, that was a difficult task.”
  • The new UN secretary general’s biggest priority must be Syria. Mark Seddon, que foi corresponde nas Nações Unidas da Al Jazeera, escreveu no The Guardian que terá de haver uma mudança de prioridades por comparação com o ainda secretário-geral: “His predecessor, Ban, has made tackling climate change and the new sustainable development goals very much his signature tune. A good deal of the groundwork has been done but, as the world continues to warm, much of the heavy lifting remains. (…) The new secretary general will hopefully use his good offices to encourage the security council to give up its power of veto when war crimes are being committed, as they are today in Aleppo and in Yemen. The UN must be able to act decisively and with properly supported peacekeeping operations.”
  • The UN Security-Council Has Selected A Secretary-General Of Humanity. Yasmine Sherif, uma advogada especializada em direitos humanos, escreveu no Huffington Post que esta eleição a encheu de esperança: “Without making a comparison to the legendary UN Secretary-General, Dag Hammarskjold just yet, there is hope that Mr. Guterres may not be far from also becoming a similar personification of the United Nations principles and vision.” [Dag Hammarskjold, um diplomata sueco, foi secretário-geral das Nações Unidas de 1953 a 1961, tendo morrido num acidente de aviação a caminho de umas negociações de paz. Já foi classificado como o melhor secretário-geral da história da organização.]
  • Antonio Guterres, le bon candidat pour l’ONU. A tomada de posição editorial do francês Le Monde, ainda antes da eleição, onde se desvalorizava a ideia de que o lugar devia ser entregue a uma mulher de um país do Leste da Europa e se defendia a candidature do antigo primeiro-ministro: “A 67 ans, il a l’avantage d’avoir été dans le cercle des dirigeants mondiaux, il connaît par cœur la machine onusienne pour avoir géré le Haut-Commissariat aux réfugiés jusqu’en 2015, et, ce qui ne gâche rien d’un point de vue français, il est francophone et socialiste.”
 
 
Talvez pudéssemos esperar mais variedade e mais editoriais, mas a verdade é que a eleição de António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas suscitou muito manos atenção por parte da imprensa internacional do que outras eleições para outros lugares em organismos internacionais. O Politico foi mesmo fazer as contas e concluiu que a sucessão de Joseph Blatter como presidente da FIFA teve quatro vezes mais cobertura pelas cadeias de televisão e pela imprensa económica do que a eleição agora ganha por Guterres. É uma estatística que, julgo, diz algo sobre as prioridades informativas no mundo em que vivemos. Ou será mesmo, muito cruamente, sobre as reais prioridades deste nosso mundo?
 
Para não terminar este Macroscópio com esta nota algo amarga encontrei uma sugestão de leitura que é a tal surpresa que guardei para fechar esta que é a última newsletter desta semana. Trata-se de um muito interessante, e heterodoxo, trabalho do diário económico alemão Handelsblatt, Rebooting the Global Economy. Trata-se de um trabalho sobre o lado sombrio da economia mundial, um dossier que chama a atenção para o facto de algumas das receitas adoptadas para combater a crise terem criado uma situação perigosa. Por exemplo: “During that period, the big four big central banks in the United States, Japan, Britain and in the euro zone have quadrupled their balance sheets to a combined €10.4 trillion. Ten years ago, a central bank’s balance sheet would never have exceeded 20 percent of a country’s GDP; today, it is touching 80 percent.” Depois de chamar a atenção para os riscos de taxas de juro excessivamente baixas (e para o facto de as dívidas se continuarem a acumular), sendo que ao mesmo tempo este remédio não está a curar o mal da falta de crescimento, o texto conclui: “ECB president Mario Draghi famously said he would “do anything it takes” to keep the euro zone financial system working. But, despite all the interest rate cuts and buying programs, the result has been that while Germany is bursting with strength, experiencing a record labor market boom and rehabilitating its state finances, the periphery of Europe continues to lurch from crisis to crisis.”
 

Temos vivido do oxigénio fornecido pelo Banco Central Europeu, não sabemos por quanto tempo e com que consequências. O debate sobre o que fazer e como fazer, esse continua e continuará, também aqui nestas newsletters.
 
Tenhum um bom fim-de-semana, retemperador e com boas leituras. 

 
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