sábado, 19 de novembro de 2016

Macroscópio - A Europa entre o mar das tormentas e a enseada de todos os perigos

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
As notícias que nos chegam dos Estados Unidos são muitas e inquietantes, não parecendo haver grandes sinais de que Donald Trump abandone algumas das suas posições mais desconcertantes e perigosas. Uma entrevista e uma mão cheia de escolhas para lugares-chave da Casa Branca permitiriam muita reflexão – alias já permitiram – mas hoje o Macroscópio vai olhar mais para este lado do Atlântico, para uma Europa que entra em mares tormentosos.
 
Barack Obama veio esta semana visitou-nos e escolheu despedir-se da Europa enquanto Presidente dos Estados Unidos com uma visita a Berlim e um encontro com Angela Merkel. Eis uma escolha de enorme significado, como sublinha Philip Stephens no Financial Times, em Now Angela Merkel wears the west’s mantle: “It is hardly a surprise that Obama chose Berlin for his farewell to European leaders”. Quem diria que, aqui há dois ou três anos, nos voltaríamos para Berlim vendo aí a referência mais poderosa do mundo que ainda é o nosso? Poucos, certamente (eu fui uma excepção, pois mesmo quando Merkel era pintada com um bigodinho de Hitler nas paredes de toda a Europa sempre a defendi, mas isso são contas de outro rosário). Agora o essencial é o argumento deste colunista do FT: “Europe is in a wait-and-see mode. How many of the campaign pledges will carry through into government? The choice looks to be one between a bad outcome and a very bad one. Europeans have struggled for some time to uphold their values against authoritarians without and populists within. The danger now comes from across the Atlantic. It falls to Ms Merkel to speak for what during the past seven decades we have known as the west.”
 
Há contudo que ser prudente e não alimentar demasiadas expectativas. Ninguém sozinho, tal como nenhum país sozinho, mesmo da dimensão da Alemanha, que possa resolver tudo sozinho. Isso mesmo se lembra na The Economista, em Iron waffler. Primeiro, porque “Germany and its chancellor are still too hesitant to be able to lead the free world”. Depois porque – e aqui o argumento é também conoscos – “Germany’s stake in the global liberal order is immense. Its export-led economic model relies on robust international trade; its political identity is inexorably linked to a strong EU; its westward orientation assumes a friendly and engaged America. All of these things may now be in jeopardy, and Germany would suffer more than most from their demise. But do not look to Mrs Merkel to save them, for she cannot do so alone”.
 
E não será que a Alemanha se encontra de novo mais sozinha? Esta semana celebrou-se muito em Portugal a dupla decisão da Comissão Europeia de não aplicar sanções e de não levantar problemas ao Orçamento para 2017. Lendo a imprensa europeia percebe-se duas coisas: primeiro, que Espanha e Portugal beneficiaram muito de outros países ainda estarem mais em falta, especialmente Itália, e de ninguém querer criar problemas políticos numa altura em que o governo de Roma enfrenta um referendo que pode abrir (mais) uma crise política. Depois, que se assistiu a uma mudança de orientação da Comissão Europeia, que comissários como Carlos Moedas elogiaram. Basta ler o artigo que escreveu para o Observador, Uma Comissão Europeia assumidamente política, onde escreve que sente “uma enorme satisfação em ser membro de uma Comissão Europeia que soube aplicar as regras de forma inteligente”.
 
É óbvio que nem todos receberam com o mesmo entusiasmo a forma como as “regras” foram interpretadas, bastando para tal ler a imprensa alemã. Gabor Steingart, o publisher da Handelsblatt Global Edition, na sua newsletter diária de ontem, significativamente intitulada Hailing the Age of Irresponsibility in Brussels, não podia ser mais directo: “The era of austerity in Europe is over. At least, according to the European Commission. Yesterday, Commission President Jean-Claude Juncker announced the 28-nation bloc's return to a more expansive fiscal policy. Given rising debt levels in Greece, France, Austria and Italy, it's an appeal to irrationality and irresponsibility. Clearly, Juncker knows how to encourage many kinds of delirium.” Nesse mesmo jornal escrevia-se, em No Friends of the Stability Pact, que “If neither Spain nor Portugal has reason to fear sanctions from Brussels, then this is all the more true for Italy – especially because the E.U. is quite worried about political developments in the country. There is a good chance Prime Minister Matteo Renzi will suffer a defeat in early December in the referendum on his constitutional reform. This could cause his political downfall – and bring anti-European populists to power. Brussel’s fear of that eventuality is greater than its urge to maintain the stability pact.”
 
Em contrapartida um dos apoios mais veementes à decisão do colégio de comissário veio de Londres, de outro jornal financeiro, este de um país já com um pé fora da União Europeia. Refiro-me de novo ao Financial Times onde Martin Sandbu, no seu Free Lunch (paywall), defendeu a ideia que, com este movimento, Europe tries to find its footing. Assim: “Brussels’s call for a “fiscal expansion of up to 0.5 per cent of GDP in 2017 for the euro area as a whole” is therefore just what the doctor ordered (or at least, it’s a start). It would also relieve the need for monetary stimulus — which some European Central Bank policymakers are chafingunder, and to which German public and official opinion also tends to object.”
 
Seguimos portanto em marcha desordenada mas determinados, aparentemente, em não fazer ondas para ver se as decisivas eleições do próximo ano não correm mal em países tão importantes como a Holanda, a França ou a própria Alemanha. E não se pense que o pior não é possível, mesmo que improvável. Num especial hoje publicado no Observador sobre as primárias da direita francesa, E agora França. Qual destes homens vai enfrentar Marine Le Pen?, César Avó dá-nos conta da inquietação que já chegou às mais altas instâncias: “Antigos primeiros-ministros da direita, como Jean-Pierre Raffarin ou Dominique de Villepin, mostram inquietação. “Desde o Brexit que a linha da frente da razão já não existe. Hoje a madame Le Pen pode ganhar”, afirmou o primeiro, apoiante de Juppé. O segundo, que declarou abster-se nas primárias, também crê na hipótese da vitória da extrema-direita. Aos microfones da France Info, o antigo diplomata afirmou: “O medo e a raiva são os atores principais da democracia e a razão ao serviço das elites já não convence ninguém”.
 
O medo, a raiva e acrescento eu, o preconceito. Eu ou Christophe Guilluy, um geógrafo que, entrevistado pela revista Le Point, considera que "Faire passer les classes populaires pour fascisées est très pratique". Uma ideia que explica assim: “Faire passer les classes moyennes et populaires pour « réactionnaires », « fascisées », « pétinisées » est très pratique. Cela permet d'éviter de se poser des questions cruciales. Lorsque l'on diagnostique quelqu'un comme fasciste, la priorité devient de le rééduquer, pas de s'interroger sur l'organisation économique du territoire où il vit. L'antifascisme est une arme de classe. Pasolini expliquait déjà dans ses Écrits corsaires que depuis que la gauche a adopté l'économie de marché, il ne lui reste qu'une chose à faire pour garder sa posture de gauche: lutter contre un fascisme qui n'existe pas. C'est exactement ce qui est en train de se passer.”
 
Claro que esta miopia tem consequências, e a principal tem sido a erosão progressiva dos partidos de centro-esquerda, um tema que já abordámos várias vezes no Macroscópio e ocorre muito por uma parte da sua base popular, e operária, se passar de armas e bagagens para partidos populistas de vários matizes. Recomendo por isso a leitura de Sheri Berman no mais recente número do Journal Of Democracy: The Specter Haunting Europe: The Lost Left (paywall). Aí defende que “European democracies are going through what may be their most difficult period since the Great Depression. Europe’s mess can be traced to a number of distinct causes, but one that has been largely undervalued is the decline of the center- or social democratic left. This decline has hurt European democracy both directly, as many of these parties’ voters have fled to extremist parties, and also indirectly, for these parties played a crucial role creating and maintaining the postwar order upon which stable democracy was built. Absent a revivification of the center-left, it is hard to see how this order—and perhaps even well-functioning democracy generally—can be resuscitated in Europe.” 
 

Uma das formas que o populismo que tem vindo a ocupar este vazio assume é a do nacionalismo radical, ou de um novo tipo de nacionalismo, aquele a que o número de hoje da The Economist dedica a capa (de que é a imagem acima) e o principal editorial, falando-nos do The new nationalism, algo que associa ao fenómeno Trump e considera especialmente perigoso. Como aí se escreve, “For the first time since the second world war, the great and rising powers are simultaneously in thrall to various sorts of chauvinism. Like Mr Trump, leaders of countries such as Russia, China and Turkey embrace a pessimistic view that foreign affairs are often a zero-sum game in which global interests compete with national ones. It is a big change that makes for a more dangerous world.”
 
Tenhamos contudo cuidado e não deitemos fora a criança com a água do banho: o nacionalismo não é um mal em si mesmo, bem pelo contrário, como fez questão de recordar o filósofo Roger Scruton no The Telegraph, em National borders are the only sure guardians of democracy. The EU ignores them at its peril. O argumento é conhecido e importante, é o argumento de que a democracia expressa-se no espaço das nações e não em instâncias supranacionais como a União Europeia: “Our law is a territorial law, operative within borders that define the nature and extent of its jurisdiction. This territorial law is a precious inheritance since it is the guarantee of our freedom, in the home that we share. Moreover, it is because we live under a territorial jurisdiction that democracy is possible: a democratic government is exercised over a certain territory, by the people who reside there. The European Union has refused to recognize the importance of borders and the territory defined by them. It has established a trans-national, bureaucratic form of legal order in which laws are not changed or adopted by popular sovereignty but imposed by official decree.”
 
Da mesma forma que devemos ter claridade quando discutimos conceitos como o nacionalismo, é importante saber do que falamos quando falamos de populismo. Depois de Trump podemos ter tendência a olhar para o populismo apenas como uma reprodução, com outros protagonistas, da sua forma de fazer política, mas Paulo Tunhas recorda-nos em Populismo, na sua coluna no Observador, que também existe uma defesa teórica do populismo de esquerda. Fá-lo a partir de referências a um livro, chamado exactamente Populismo, de José Luis Villacañas, que apresenta como “uma tentativa de compreensão e uma crítica daquele que é talvez o principal livro de Ernesto Laclau, A razão populista. Laclau, para quem o não saiba, é um filósofo político argentino, morto há dois anos, que, vindo do peronismo, se tornou um personagem central em certa esquerda radical, teorizando, entre outras coisas, a Venezuela de Chávez como modelo de democracia. Além da amizade com Chávez, aconselhava muito, parece, Cristina Kirchner e amava, de um amor puro, a Cuba de Fidel. O Podemos de aqui ao lado, o Podemos de Pablo Iglesias, por exemplo, deve-lhe muito. E a sua obra é exactamente um elogio das virtudes do populismo de esquerda.

 
A obra de Laclau é também uma das referências de Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, no Conversas à Quinta desta semana e que também debateu esta temática dos Populismo(s): de onde vêm, para onde vão, como nos desinquietam. Foi de novo uma conversa fascinante (desculpem a falsa modéstia de quem é parte interessada...) onde se explicou que não há um populismo – há populismos. Que estes são de diverso tipo e diferentes linhagens. Que uns assumidos, outros envergonhados. E que apenas gritar contra o populismo pode ser o pior dos antídotos, sobretudo nesta nossa Europa a braços com tantas divisões, tantas tensões e... tantas eleições.
 
Mais: uma Europa a braços com uma América imprevisível onde o presidente eleito parece disposto a romper com  consensos de décadas, algo que William A. Galston nos recordou de forma eloquente este semana no Wall Street Journal em Trump Threatens the Postwar Order - America’s role as a beacon of freedom and democracy is being jeopardized. Aquele cientista política recorda que “In the wake of World War I, Americans rejected continued foreign engagement and turned inward, opening up a space that anti-democratic movements were happy to fill. As World War II drew to a close, American statesmen were determined not to repeat this fateful mistake. They took the lead in building a network of alliances and institutions to promote an open economic order, international security and universal human rights.” As sete décadas de consenso bipartidário que se seguiram e ajudaram a garantir o mundo que hoje temos podem estar a acabar, e com elas “America’s global role as a beacon of freedom and democracy”, o que nos afectará a todos. Merkel, recordemos, pode não ser suficiente, mesmo que Obama tenha procurado passar-lhe o testemunho.
 
Muito que pensar, muito que ler e, se o fim-de-semana for invernoso como promete ser, muito tempo para o fazer. Desejos um repouso reconfortante mesmo sabendo que não é só no nosso céu de Novembro que as nuvens estão negras e pesadas.
 
 
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