Não
lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente
reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na
poeira da banalidade, embora pareça que ainda estamos vivos.
Mas
compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos
medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas
vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois
ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma
taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole
bebido.
Para
reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar,
no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais
ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me
tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do
cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça
e adotar o lema reconfortante: “Parar pra pensar, nem pensar!”
O
problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro
pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no
trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente
escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do
desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem
ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode
ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um
corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão
se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim
de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os
disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar
pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial
que nos pressiona tanto.
Somos
demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações,
corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de
tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e
analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo,
os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos
sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir
abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que
afinal nessa idade ainda é a vida.
Mas
pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é
sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe
finalmente respirar.
Compreender:
somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo
individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os
desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se
nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não
escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem
compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos
do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da
perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O
mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui
identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver,
como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para
ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada.
Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece
fácil: “escrever a respeito das coisas é fácil”, já me
disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular,
nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser
brilhante, importante, admirado.
Para
viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela
valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança;
qualquer esperança.
Questionar
o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada
sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar
sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a
si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso
apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na
liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha
obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E
que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que
afinal se conseguiu fazer.
Por Debora Oliveira
Para que a existência valha a pena.
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