quinta-feira, 2 de março de 2017

Do Ruanda à Síria o corpo é um campo de batalha

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Ipsilon
 
 
  Vasco Câmara  
 
Dorothée Munyaneza tinha 11 anos quando viu o Ruanda a encher-se de cadáveres no meio da rua, na berma da estrada, à porta de casa dela.
Mithkal Alzghair tinha 29 quando viu a Síria pela última vez. Ambos contam as suas histórias de guerra e de exílio nos espectáculos que este fim-de-semana trazem ao Porto - e contam-nas, por isso, também a Inês Nadais, nas páginas deste Ípsilon. "São corpos que não vêm só testemunhar, também vêm fazer perguntas difíceis."
Dorothée e Mithkal abrem e fecham o programa Foco Deslocações, Teatro Municipal Campo Alegre, Porto.
Samedi Détente (sexta-feira) é o nome que Dorothée quis dar à coreografia "extravagante, nalguns instantes mesmo festiva" - palavras da Inês -, apesar das catanas e do sangue, com que quis lembrar-se dos amigos mortos na Primavera de 1994, em Kigali, Ruanda.
Déplacement (sábado) tem a condição de refugiado de Mithkal Alzghair escrito na testa. Mithkal nasceu na Síria, em 1981de onde saiu para prosseguir os seus estudos de dança em Montpellier, e tem sido um telespectador da guerra civil em curso.
E continuamos pelo palco. 1746 quilómetros separam Lisboa de Antuérpia. Na cidade belga, um homem lê Anna Karenina, e o seu casamento afunda-se. Na capital portuguesa, uma mulher lê o romance de Tolstoi em 1967, para aprender francês com um autor russo. Duas histórias em espaço e tempo diferentes mas unidas pela leitura do mesmo livro, que passa a ser uma personagem - é assim que Tiago Rodrigues "adapta", se assim se pode dizer, o fresco romanesco de Tolstoi. Chamou-lhe Como Ela Morre, e com ela, com a peça, dá-se o reencontro com a companhia belga tg STAN (no D. Maria II, peça falada em português, francês e flamengo).
Um fresco, no espaço e no tempo: é essa a amplitude do texto de Francisco Noronha sobre o rapper Keso e o Bairro de Vilar, no Porto - aglomerado habitacional operário construído em finais do século XIX, demolido no pós-25 de Abril e a ser reconstruído -, de onde ele avista o mundo. Não seria preciso alibi para este fôlego, que alberga as reconfigurações de uma cidade, mas ele existe: a reedição de KSX2016, disco que integrou muitas listas dos melhores do ano passado e que agora é reeditado, e a realização, por Keso, de um videoclip.
A ouvir (e ler): Dulce PontesPeregrinação, do furor do grito à acalmia (Dulce é entrevistada por Nuno Pacheco); Manuel FúriaViva Fúria: levou Mário Lopes a uma quinta minhota onde Manuel Fúria e os seus Náufragos gravaram este disco de alguém às voltas com a sua memória musical - e não a escondendo, porque enquanto Manuel ouvia o disco com Mário, ia revelando: o break de bateria sacado aos Cure, a guitarra a Johnny Marr dos Smiths, os New Order ali, os Sétima Legião aqui...
Visitam-nos ainda nas páginas do Ípsilon João Reis, um dos poucos tradutores portugueses de línguas nórdicas (traduziu Knut Hamsun e Halldór Laxness) que publica o seu primeiro romance, A Avó e a Neve Russa;  Helder Macedo, que lança o volume de ensaios Camões e Outros Contemporâneos, abarcando oito séculos de literatura portuguesa e abrangendo 25 textos; Colm Tóibín (Homenagem a Barcelona), Teresa Veiga (O Último Amante) e Serge Daney (O Cinema que Faz Escrever - Textos Críticos).

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