Por Vanessa Chanice
Em tempos de discussão de relacionamentos abusivos, nós estamos ficando cada vez mais conscientes de quando nossos namorados ou namoradas estão sendo tóxicos para a nossa saúde mental. Continua sendo tão difícil quanto nunca romper um ciclo de abuso, mas o acesso à informação torna cada dia mais fácil identificarmos esse tipo de situação: o que é sempre o primeiro passo para interrompê-las.
O problema é identificarmos com clareza uma relação abusiva quando ela se esconde atrás de discursos normatizados de “educação”, “instrução”, “preocupação” – mas se manifesta na total falta de respeito da individualidade dos filhos e no abuso de autoridade, tendo consequências extremamente danosas para o nosso crescimento em um ambiente seguro.
Mãe, você é abusiva.
Não é saudável me comparar todos os dias com a minha prima/irmã/vizinha e chorar lamentações sobre “por quê você não pode ser mais como a Mariazinha?”, porque eu não posso ser ninguém além de mim mesma. E quem eu sou não deveria ser causa de lamentação.
Não é saudável quando você me coloca pra baixo em toda a oportunidade que tem e expõe que a minha única salvação na vida é encontrar algum homem. E nem que “meu homem” seja minha única conquista decente na vida e que eu precise agradecer todos os dias por esse milagre e me cuidar para que ele não perca o interesse.
“É por isso que você ainda está sozinha”; “se estivesse casada não estaria passando por dificuldade agora”; “se continuar descuidada desse jeito seu marido vai encontrar alguém mais bem cuidada rapidinho”; “com esse seu estilo esquisito você não vai encontrar nunca um homem que te queira”; “precisa casar com um homem que te cubra de porrada pra você aprender a ser mulher”.
Mãe, você é abusiva.
Você é abusiva quando enxerga na minha vida uma extensão da sua e projeta em mim tudo aquilo que queria ter sido e não foi e tudo aquilo que queria ter feito e não fez. E se frustra toda vez que eu tomo um caminho diferente do que você queria tomar. Quando percebe que eu não tenho os mesmos gostos nem reproduzo os mesmos pensamentos que os seus e toma atitudes cada vez mais drásticas na tentativa desesperada de retomar o controle. Quando confunde dominação com instrução e não aceita apenas me dar orientações, mas precisa viver por mim e controlar cada detalhe da minha vida e cada escolha que eu preciso tomar. Que amigos ter. Por quem me apaixonar. O que estudar. Que função exercer. Que preferência política ter. O que fazer no meu tempo de lazer.
Você é abusiva quando faz com que eu me frustre por não conseguir corresponder às suas expectativas. E que eu lamente por ser a pessoa que eu sou, que eu me repreenda e tente me transformar em alguém que eu não queria ser. Que eu me odeie por isso. Me ache errada e me questione todos os dias: porque eu não posso simplesmente ser mais como a Mariazinha? Por quê eu sou esse monstro que causa tanto sofrimento na minha mãe?
Você é abusiva quando se utiliza de discursos maternais sobre como me ama e “só quer o meu melhor” para abusar do seu poder de mãe e revirar minhas gavetas, mexer no meu celular, olhar minhas mensagens, jogar minhas roupas fora, esconder meus batons. Dizer que eu estou horrorosa e vou passar vergonha saindo de casa daquele jeito, porque “é melhor ouvir da sua mãe do que de um desconhecido”. Ou quando me faz sentir culpa por existir. Porque “eu não sirvo pra nada mesmo”. Ou só existo pra te dar prejuízo. Fui um erro que você não compreende. A prova do seu fracasso. A concretização do alerta que todos te fizeram quando você optou por ser mãe solteira. “São todas putas” – eles disseram.
E, ah, as chantagens emocionais! Não podemos nos esquecer dos jogos psicológicos e das tentativas múltiplas de manipulação. Das lágrimas, dos choros e das ameaças.
“você não me ama”; “você só causa desgosto”; “você ainda vai me matar um dia”; “onde foi que eu falhei como mãe?”; “espero que um dia Deus me perdoe pela filha que eu criei”; “você não tem respeito por pai e mãe”; “é muito egoísmo da sua parte”; “porque você é tão ingrata?”; “não faz nada pela sua mãe”; “você não tem medo de ir pro inferno?”; “eu estou à ~isso aqui~ de não te considerar mais minha filha”; “lembre-se que você é sustentada por mim”; “enquanto viver nessa casa…”; “você não valoriza nada que eu faço por você”; “eu sacrifiquei minha vida toda por você e é assim que você me retribui?” “o que o resto da família vai fazer quando souber o tipo de pessoa que você realmente é?”; “não consigo olhar na cara das pessoas de tanta vergonha por ter uma filha como você”; “se eu morrer saiba que foi você quem me matou”; “e eu ainda faço questão de deixar uma carta por escrito dizendo que foi você, pra todo mundo ficar sabendo”.
Tudo isso pra conseguir o controle de volta e me fazer tomar a decisão que você gostaria que eu tomasse. Não pense nem por um segundo que eu estou tendo que ouvir essas coisas porque cometi algum crime terrível. Eu não estou bebendo, me drogando, me prostituindo ou reprovando de ano: coisas que jamais poderiam ser possibilidades reais dentro desse nosso lindo universo familiar tradicional brasileiro.
É apenas porque eu não quis cursar Direito no vestibular. É porque eu quis raspar o cabelo. É porque eu não me sentia bem usando vestido no Natal. Ou depilando minha perna pra ir pra praia. É porque eu não me calei na mesa de jantar diante daquele tio sexista ou homofóbico. Porque eu não quis namorar com aquele garoto que você escolheu. Porque eu coloquei aquele piercing ou fiz aquela tatuagem.
Não é amor. Não é preocupação. Não é educação. Não é saudável. Não é o seu melhor. Não é pro meu próprio bem.
É abuso.
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