Manuel Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião
No início de 2016, podíamos ter esperança, mas não sabíamos se Portugal iria resistir ao autêntico assédio da União Europeia e de outros credores contra a nova maioria parlamentar e respetiva solução governativa e, por arrasto, contra o país. As interrogações dos portugueses perante uma solução nova e inovadora e, acima de tudo, as cargas de desconfiança que a Direita e Cavaco Silva colocavam na "geringonça" traziam para a sociedade uma perspetiva de possível falhanço.
Quando se observam as pontuais mas significativas melhorias das condições de vida de milhões de portugueses, as alterações nos indicadores económicos ou nos níveis de confiança em vários campos, só podemos concluir que, desde o outono de 2015 até à passada quarta-feira, dia em que a Assembleia da República (AR) discutiu o Estado da Nação, a mudança é quase da noite para o dia, mesmo que esse dia não seja, e não é, de céu limpo. Não há razões para pessimismo perante nuvens provocadas por problemas conjunturais, mas de forma alguma nos podemos deslumbrar. É caso para dizer que, por detrás do desafogo que permite respirar melhor, há mesmo diabos à espera de oportunidade.
O desemprego apesar de vir diminuindo mantém-se elevado, continuando a impelir os jovens para a emigração e a impedir regressos. A dívida mantém-se muito alta, constituindo um grave problema estrutural que, de forma alguma, pode ser escamoteado. Os salários continuam muito baixos para a maioria dos portugueses e as precariedades acentuam-se. Existem claros indícios de dinâmicas especulativas no setor imobiliário, pelo menos nas grandes cidades, que dificultam a vida a quem procura habitação e podem degenerar em "bolhas", diferentes das anteriores nas causas mas semelhantes nas consequências.
Teria sido muito positivo que o último debate sobre o Estado da Nação tivesse incidido sobre problemas como estes. Alguns deles poderiam ser minorados, senão resolvidos, precisamente pela ação e decisões da AR. Por exemplo, a queda persistente da remuneração dos novos contratos de trabalho e a crescente precarização deste novo emprego indicam-nos perigosos bloqueios ao desenvolvimento do país, constituindo-se assim como um problema social, económico e político que Assembleia da República e Governo devem encarar responsavelmente.
Como se explica que o aumento do emprego seja acompanhado da queda dos salários dos novos contratos de trabalho? Dir-se-á que o desemprego continua a ser elevado e isso explica a continuação dessa queda. Se fosse esse o caso, bastaria esperar que o desemprego diminuísse, para assistirmos a uma recuperação dos níveis salariais. Infelizmente, pode não ser assim. A concomitância do aumento do emprego com o abaixamento de salários é observada não só em Portugal como em outros países europeus, e hoje é vista com preocupação inclusive por muitos que a desejaram e promoveram, caso do governador do Banco Central Europeu. Os salários caem até em países que têm baixas taxas de desemprego. Em todos os casos, a austeridade impôs "reduções dos custos do trabalho", em simultâneo com "reformas estruturais" que tinham por objetivo enfraquecer a posição negocial dos trabalhadores e dos seus sindicatos. Foi a forma de desimpedir caminho para a imposição do poder e dos interesses unilaterais das entidades patronais, numa selva em que as estratégias dos grandes grupos tudo aprisionam.
A AR e o Governo devem reparar os danos causados nas instituições que regulam a fixação dos salários e as condições de trabalho, desde logo repondo equilíbrio de poderes e liberdade individual e coletiva que encoragem e dinamizem a contratação coletiva. Patrões e sindicatos têm meios e capacidades para, pela negociação coletiva, melhorar as relações de trabalho, a qualidade do emprego e as condições de vida de quem trabalha. Será muito pelo empenho da Assembleia da República e pela ação do Governo que poderão surgir alterações positivas nas práticas dos atores. E não se esqueça que as possibilidades de eficácia da Inspeção do Trabalho, ou mesmo o entendimento dos tribunais são determinados, não só pelos conteúdo das leis, mas ainda, e bastante, pelo que as relações de forças no terreno lhes permitem constatar.
Tornemos o dia mais limpo.
*Investigador e professor universitário
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