A 1 de Outubro, dia a que os portugueses deverão votar tão pacífica e rotineiramente como é habitual há mais de quadro décadas – a democracia, afinal, é feita de rotinas –, os catalães podem viver o dia mais perigoso desde que Espanha aprovou a sua Constituição democrática. O referendo convocado pelos movimentos separatistas pode realizar-se, mas como caricatura. Até lá veremos como se desenrola um braço de ferro que ameaça mergulhar o país vizinho numa crise sem precedentes e que, na Europa, pode funcionar como rastilho de outras crises.
Não vou aqui recapitular toda a informação sobre os desenvolvimentos dos últimos dias, que os leitores do Macroscópio podem recordar seguindo a tag Catalunha do Observador, antes começo por propor uma Breve chave de leitura para os últimos acontecimentos, uma análise de Jorge Almeida Fernandes no Público, onde se começa por recordar que “A primeira coisa a ter em conta é que a conduta dos independentistas obedece a uma lógica e tem um fim tão simples quanto difícil: tentar passar de minoria a maioria”. Depois de explicar como é que este processo se desenrolou, sublinha-se o papel central que os radicais acabaram por assumir, em concreto os radicais da CUP, pouco numerosos mas com imensa influência nas ruas e no condicionamento da política do governo catalão: “A CUP é uma reemergência do antigo e trágico anarquismo catalão. Anticapitalista radical e funcionando em assembleia, defende uma ruptura unilateral com o “reino de Espanha”, com a UE, a NATO e o FMI. Propõe uma estratégia de confronto e de desobediência perante o Estado. O que é notável é que os partidos tradicionais do Juntos pelo Sim depressa ficaram reféns da CUP. Foram os “cuperos” que forçaram a substituição de Mas por Carles Puigdemont na presidência da Generalitat e que, depois, passaram a ditar o ritmo.”
E continua precisamente por aqui, já que esta influência dos radicais preocupa editorialistas tanto em Madrid como em Barcelona. Começando por Barcelona recomendo a leitura de um colunista do La Vanguardia, o diário histórico da cidade ducal, e que não hesita em expressar o seu susto depois de ver o vídeo de promoção do voto no “sim” que a CUP difundiu via Youtube. É um vídeo que pode ser visto aqui e que está todo ele carregado de simbolismo, pois retrata o processo democrático como sendo uma furgoneta avariada que o povo se encarrega de atirar de um barranco. Não deixem de ver, tal como não deixem de ler ¡Ahora empieza el mambo!, de Josep Antoni Duran Lleida, onde se argumenta que aquele vídeo não deixa dúvidas sobre quais as reais intenções dos radicais independentistas: “¡Y ahí estamos! Donde ellos querían. En la injustificable desobediencia e insumisión arrojados a los brazos de la causa revolucionaria liderada por los extremistas de las CUP. Instalados en una legalidad virtual que pretende amparar un referéndum con ausencia total de garantías democráticas”.
Já em Madrid, o editorial do jornal online El Español defende que a situação é tão grave que o governo central deve mesmo ir mais longe do que já foi e, invocando o artigo 155 que permite suspender a autonomia, fazê-lo face à deriva catalã: Cataluña, en manos de la CUP: ¿Y el 155?. Aí também se defende que é hoje a CUP que detém a liderança do processo ao dominar as ruas – “Los dos últimos actos de Puigdemont han sido una declaración institucional para asegurar que el 1-O los catalanes votarán y la publicación del mapa de colegios electorales en su cuenta de Twitter. Pero a medida que el conflicto se traslada a la calle, menor control tiene el presidente de la Generalitat de su desenlace” –, pelo que “existe el riesgo de que la protesta callejera desborde la estrategia de presión por la que apuesta Puigdemont: en manos de la CUP, un partido revolucionario experto en la agitación, Cataluña puede acabar convertida “en la Venezuela de los Pirineos”, como ya avisan en el Gobierno de Rajoy.”
Não se pense contudo que é apenas este diário de Madrid que é duro nas suas análises. O El Pais, mesmo apelando ao diálogo, escrevia ontem um editorial violento sobre a intervenção do presidente a Generalitat, significativamente intitulado Las mentiras de Puigdemont. Eis um dos seus pontos: “El propósito de la operación es “suspender la actividad del Gobierno” catalán, “que tiene la legitimidad democrática”. Falso. Solo se ha intervenido sobre las actividades relacionadas con la organización del referéndum secesionista. El Govern sabe, pues así se lo ha comunicado el Tribunal Constitucional, que ese referéndum es ilegal y que no tiene competencias para organizarlo. Por otra parte, el Govern sostiene que basta con el apoyo de una mayoría de los diputados electos en las elecciones del 27 de septiembre de 2015 para derogar el Estatut de Autonomía. Pero se equivoca: lo que define a una democracia no es la existencia de una mayoría sino que esta no pueda saltarse la ley impunemente.”
(No Observador, um descendente de bascos e galegos que vive e trabalha em Lisboa, Iñaki Carrera Y Araujo, também argumentou no mesmo sentido no texto Em defesa da honra de Espanha. Por exemplo: “O movimento independentista catalão não é democrático (...). A falta de democraticidade deste movimento ficou demonstrada neste referendo que foi aprovado por uma lei que viola a Constituição, o Estatuto de Autonomia da Catalunha e o próprio Regulamento do Parlamento Catalão. Que não haja dúvidas, foi um golpe de Estado como o assistido na Venezuela.”)
Regressando ao El Pais, o seu fundador, Juan Luis Cebrián, deu-se mesmo ao trabalho de explicar alguns fundamentos básicos da democracia em Visca Catalunya!, texto onde escreveu que “La democracia incluye las reglas para su reforma y si alguien quiere cambiarlas al margen de ellas está abocado a la violencia. Violencia, en definitiva, aunque en grado todavía menor, fue lo que hubo en las últimas sesiones del Parlament.” A forma como a coligação independentista se comportou levou-o mesmo a fazer comparações com regimes autocráticos, mesmo que sufragados nas urnas: “Putin o Erdogan son dos de los muchos ejemplos que ponen de relieve hasta qué punto las llamadas voluntades colectivas, cuando se apartan del respeto a la norma democrática, acaban arruinando el ejercicio de la libertad de ese mismo pueblo al que enfáticamente aseguran servir.”
Continuando ainda no El Pais, noto o artigo de um historiador, Joaquim Coll, que reflecte sobre o futuro de El catalanismo después del 1-O. Aí se defende que “catalanismo y Cataluña nunca han sido sujetos intercambiables. No lo fueron antes cuando el catalanismo funcionaba como común denominador de un amplio abanico de fuerzas de derecha a izquierda, y su control suscitó durante décadas una enconada competición entre los partidos catalanes mayoritarios (CiU y PSC), como sucedió de forma aguda con el proceso de reforma del Estatuto bajo la presidencia de Pasqual Maragall. Ni aún menos ahora pueden ser sujetos intercambiables cuando el desafío separatista ha llevado a fracturar en dos mitades la sociedad catalana y su estrategia con vistas al 1-O pasa por estrellar a las instituciones del autogobierno contra el Estado democrático y de derecho.”
Uma visão de fora de alguém que passa muito tempo em Espanha, e em particular na Catalunha e na Andaluzia, é da de Matthew Parris que, na Spectator, em Catalonia vs Spain: a battle that neither side can win, já defendia antes dos últimos acontecimentos que “The October referendum on Catalan independence could become a tragic mess”. Uma passagem interessante deste texto é aquela onde procura explicar a lógica aparentemente suicida da liderança catalã: “So why is Carles Puigdemont, President of Catalonia, doing this? I’d speculate that, worried lest secessionist fervour abate, Catalan separatists actually want a violent response from Madrid to refuel the flame. And Mariano Rajoy’s weak PP government, narrowly returned at the last election, is not displeased to find a popular cause — threatening Catalonia with a bloody nose — to reinforce their hold on power.”
Digamos que não é uma perspectiva risonha, o que na opinião de catalães como Lluís Bassets, um velho jornalista e responsável do El Pais, faça como El mundo le mira (a Rajoy). Trata-se de um dos muitos textos onde se apela ao diálogo, reforçando a sua urgência com a inquietação que começa a sentir-se em muitas capitais europeias, pois “La idea de que toda población con capacidad para identificarse a sí misma como una nación pueda tener el derecho a decidir es geopolíticamente subversiva y desde el punto de vista de la Unión Europea una amenaza más peligrosa que el Brexit.”
Ao lado desta tormenta a corrida eleitoral alemã é quase uma sensaboria, até porque todos acreditam que Angela Merkel vai renovar o seu mandato como chanceler. Essa sensaboria é mesmo o ponto de partida de Rui Ramos que, no Observador, se interrogava hoje sobre Porque são as eleições na Alemanha tão chatas? Eis uma das suas respostas: “A chave para perceber a elite política alemã está na sua visão pouco entusiasmada do futuro. Merkel não espera muito de uma Alemanha (e de uma Europa) sem a população jovem dos países emergentes nem a capacidade de inovação tecnológica dos EUA. Por isso, não é fácil imaginar um Macron alemão, com vontade de enfrentar Trump, endireitar o mundo, reformar a UE, mudar o país. A Alemanha de Merkel tem estratégias, mas dispensa lideranças.”
De facto, odiada uns dias, glorificada noutros, a verdade é que Angela Merkel soube conduzir-se na política como uma mãe prudente que prefere o consenso ao confronto e o certo ao incerto. É assim que deverá conseguir ser chanceler pela quarta vez, podendo ficar no poder mais tempo do que todos os seus antecessores, com excepção de Bismarck, o que foi tema para mais um Conversas à Quinta onde dialogo com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto: Como Angela Merkel se tornou sinónimo de Alemanha. E de Europa. (podcast aqui)
Apesar desta ausência de emoção pareceu-me útil sugerir mais algumas leituras que, julgo, ajudarão a compreender um pouco melhor o que se passa na Alemanha e quem é Angela Merkel:
- Why Germany skips to a happier beat, de Josef Joffe no Financial Times, onde se defende precisamente que “Angela Merkel embodies a nation that has had enough of political thrills”. Em concreto, “Ms Merkel, who grew up in communist East Germany, is the perfect embodiment of a nation that has had its fill of political thrills. She is like a wary ship’s captain, plumbing the depths and going slow when the fog closes in. This is her secret, and it is why the country will grant her yet another term, at the end of which she will have been in office for a total of 16 years.”
- Cosmopolitan Lesbian Turns Far-Right Agitator, um retrato interessante, publicado no Handelsblatt, de Alice Weidel, a co-líder do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha e que é uma figura surpreendente pois nunca se esperaria vê-la naquele lugar: “I am portrayed as an infidel because I am engaged in an allegedly homophobic party, but that is not the reality,” she told Handelsblatt’s sister publication Tagesspiegel, adding that she and the AfD had “more important political fields” to pursue than gay marriage before it was legalized in July. For Ms. Weidel, who is an economist by training, the number one issue is getting Germany out of the euro zone. Euroscepticism is what brought her into the AfD in 2012 when it was just a protest gathering by a group of economics professors. Fluent in English and Mandarin and with a CV boasting stints at Goldman Sachs, Bank of China and Rocket Internet, she came in with a laissez-faire attitude and a loathing for the monetary policy of the European Central Bank.”
- The unknowable chancellor, um retrato que é também uma análise, um texto de Konstantin Richter no Politico onde se defende que “Merkel is, (...) the ultimate postmodern politician. There are almost as many readings of her as there are people trying to read her. Who is Merkel then? What’s the secret of her success? After all these years, the question of how an unassuming physicist from East Germany became one of the world’s most powerful leaders still puzzles people.”
- Who Leads the West and Why: Trump or Merkel? Constitutional Cultures in the United States and Germany, um ensaio um pouco mais longo da Telos onde o académico Russell A. Berman compara as culturas políticas alemã e americana e enquadra nelas os seus actuais dirigentes. Não resisti a uma citação também um pouco mais longa do que o habitual: “Even allowing for this regular sort of variation that defines democratic politics—the United States under Obama or Trump, Germany under Schröder or Merkel—these two liberal democracies display some deep variations in constitutional history, culture, and institutions. Where the American tradition invokes the figure of the free individual and the priority of liberty, Germany pursues the rational state as the vehicle with which to realize categorical imperatives. The success of the former depends on the virtue of the citizen and hence the importance of religion; for the latter religion is, at best, a marginal function of the state which collects taxes to support churches. Aside from his reference to external threats, Trump’s Warsaw address also warns that growing domestic bureaucracy can undermine the national will. While this is an expression of his characteristic libertarian populism, it also points to a basic asymmetry between the two models: it is nearly unimaginable that Germany or other European liberal democracies could develop significantly in directions that would prioritize liberty, but future American elections could very well steer emphatically toward a model of European statism and expanded bureaucracy. “There is a tide in the affairs of men.”
E por hoje é tudo, e julgo que já é bastante. Termino de escrever esta newsletter exactamente à hora em que entramos no Outono, mas este parece que vai chegar-nos com um fim de semana de sol e algum calor. Desejos por isso bom descanso e que estas minhas sugestões de leitura vos tenham sido úteis.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário