sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Macroscópio – E agora, Catalunha? O pior pode mesmo acontecer.

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
O parlamento catalão aprovou hoje, ao início da tarde, a declaração de independência da Catalunha. Pouco depois, o Senado espanhol autorizou o governo de Madrid a accionar o artigo 155 da Constituição espanhola, que permite suspender a autonomia e nomear autoridades provisórias até à realização de eleições. Se ontem ainda pareceu possível encontrar um caminho intermédio, de compromisso, hoje deu-se o choque frontal que todos temiam. Ninguém consegue adivinhar o que se poderá passar a partir deste momento. Estamos em terra incógnita e em terrenos muito perigosos. Para além da informação do que se foi passando ao longo do dia – que pode ser recuperada aqui –, deixo-vos algumas análises publicadas nas últimas horas ajudam a perceber o que se passou, mas não é fácil prever o que vai passar-se.
 
Comecemos pelo que foi publicado em Portugal, onde quero destacar dois textos e um editorial:
  • Jorge Almeida Fernandes, no Público, interroga-se sobre se não estaremos perante Um “estado falhado”? Numa análise que descrevia os avanços e recuos de uma quinta-feira louca, explicou porque é que, no caso dos independentistas, “A desorientação tem explicações humanas. Como realizar a independência num país partido ao meio? Os independentistas invocam a sua maioria absoluta no parlament e a legitimidade do 1-O. Não tiveram, lembre-se, a maioria dos votos nas eleições. Se tal é irrelevante para formar uma maioria parlamentar, não é minimamente legítimo para promover uma secessão. Eles gostavam das sondagens quando, em 2012, uma curta maioria dos catalães se dizia favorável à independência. Hoje fogem das sondagens porque as opções dos catalães se inverteram. A última sondagem (Gesop-El Periodico) é preocupante: 68% dos catalães querem eleições autonómicas para sair do conflito e 55% consideram que o 1-O não legitima a declaração de independência.”
  • Diana Soller, investigadora do IPRI – Instituto Português de Relações Internacionais, recapitulou no Observador Um longo mês de Outubro, um período onde a relação de forças se foi alterando depois de um referendo que fora uma vitória de relações públicas para os independentistas (mesmo não sendo um triunfo de mobilização e, muito menos, um modelo de rectidão democrática). Como explica, “A verdadeira vitória de Madrid foi ter dado tempo suficientemente aos governantes (e opinião pública) catalães para exporem as suas divergências na praça pública. A Generalitat caiu em descrédito; se Puigdemont montou uma armadilha a Rajoy com o referendo ilegal, Rajoy montou uma armadilha a Puigdemont com a criação de um compasso de espera, que o líder do “Juntos pelo Sim” não foi capaz de gerir.
  • Já o editorial de Leonídio Paulo Ferreira no Diário de Notícias procura explicar em que é que Puigdemont acreditou, e como essas suas crenças lhe foram fatais: “Puigdemont acreditou demasiado, alheio à realidade. E depois recuou. Prometeu e logo suspendeu a declaração de independência. E começou a fazer ofertas de diálogo a Madrid. E a ter de lidar com divisões nas fileiras independentistas, alguns a falar de traição. E a hesitar, hesitar, hesitar. As sondagens dão agora o seu partido a fraquejar e o bloco nacionalista como um todo a não crescer. É incerto o que vem aí, até porque a aplicação do artigo 155.º da Constituição é inédita e ninguém, nem Rajoy, sabe bem como se substitui os governantes de uma região que o poder central considera agir fora da legalidade.”
  • (Nota ainda para o texto de José Milhazes no Observador, onde ele explica porque é que Putin não esconde ingerência na Catalunha.)
 

Indo agora para o que se passou em Espanha no dia em Puigdemont oscilou entre diferentes formas de enfrentar a ameaça da invocação do artigo 155, há alguns relatos interessantes na imprensa espanhola, nomeadamente a revelação pelo El Confidencial que Moncloa y la Generalitat estuvieron a punto del acuerdo. De facto houve negociações discretas para tentar evitar, em simultâneo, a Declaração Unilateral de Independência por Barcelona e, do lado de Madrid, a suspensão da autonomia. No fim do dia, porém, como relata o El Español, Puigdemont se desdijo al no lograr impunidad y ser tildado de “traidor”.
 
Agora os próximos tempos podem ser muito perigosos. Primeiro, não se sabe exactamente o que fará Madrid para controlar os centros de poder da Catalunha, mesmo sendo certo que procurará uma fórmula minimal, encontrando um governante interino que seja catalão e tecnocrata e não reconstituindo os diferentes ministérios. Contudo, escreve o The Economist em Spain prepares to intervene in Catalonia, “the conflict may soon get ugly”. Em concreto, “If it goes ahead, the government’s intervention is likely to start with the dismissal of Mr Puigdemont’s cabinet, the naming of new commanders for the Catalan police, and the takeover of the Generalitat’s finances and IT centre. The next targets might be Catalan public television and radio, which the government sees as separatist mouthpieces. “They will try and do it surgically,” says a former minister.”
 
Será possível fazer isto tudo pacificamente? É muito difícil, pois os independentistas, sobretudo os mais radicais, já mostraram que tencionam ocupar a rua.
 
 
A situação em que o líder catalão se colocou e colocou o povo da Catalunha é alvo de críticas muito duras vindas de diferentes quadrantes. E isso não é bom, como explicou sob anonimato um membro da administração catalã ao El Español, em "Puigdemont ha asumido su destino: se atrincherarán, la calle será un infierno": "Se atrincherarán. Llamarán a la gente a rodear las instituciones. La calle será un infierno y la situación, insostenible", explica este interlocutor, para quien la situación podría tener, por el alto nivel de confrontación, "reminiscencias venezolanas" que se sumarán a "una fractura social ya evidente y un desastre económico".
 
Não surpreende por isso que seja muito severa a avaliação de vozes respeitadas, como a de Xavier Vidal-Folch, catalão, director-adjunto do El Pais, durante muitos anos correspondente do jornal em Bruxelas e que conheci bem nos anos em que presidiu ao World Editors Forum e pude trabalhar directamente com ele. Na sua análise aos acontecimentos de ontem, Saturno devora el bocadillo de sus hijos, Vidal-Folch escreve que “Nunca como en estos días, un Gobierno fue más eficaz en la destrucción de las instituciones de un país, Cataluña. El Govern y el Parlament han sido sustituidos, en el caos nocturno, por la amalgama desnortada o la mayúscula anomia, por un estrambótico estado mayor del secesionismo. Un sanedrín o pinyol oscuro, irresponsable y en nada transparente, que no responde a ningún control democrático, sino que manda a los consejeros —estos sí, responsabilizados en cuerpo y patrimonio ante la justicia— en total desprecio al arrumbado (por ellos) Estatut y sus normas. Esa mezcla de soviet aficionado, somatén titubeante y patrulla boy scouts desbrujulada, marcará época y les perseguirá en los sueños de por vida.”
 
Já Rubén Amón, num texto publicado hoje já depois da declaração de independência no mesmo El Pais, No digas que fue un sueño, considera que “Cataluña es independiente en el orden retórico, se ha emancipado de España en la política-ficción. Y semejante placebo aspira encubrirse ahora con una llamada a la resistencia y con la coreografía de las movilizaciones organizadas. Cataluña es una república fantasma, y una comunidad autonómica real cuyo porvenir, credibilidad, seny, madurez, economía se ha visto expuesta a una implosión que ha maniobrado el cinismo de Junqueras [número dois da Generalitat e líder da Esquerda Republicana da Catalunha].”
 
Acontece porém que nos últimos anos se tem vindo a alimentar o caldo de cultura que levou a esta radicalização, algo que é feito, sem disfarces, através do sistema educativo público. Disso mesmo dá conta, em entrevista, um dos historiadores ingleses que mais trabalhou na história de Espanha, John H. Elliott. Em “Desde los años de Pujol se falsea la historia en la escuela” é muito claro: “Entiendo las razones que les han podido llevar hasta ahí. Sobre todo después de los años del franquismo. Pero no valorar el increíble cambio que se ha producido tanto en España como en Cataluña en los últimos 40 años, es un tremendo error”. Si a eso añadimos otros ingredientes, llegamos al callejón sin salida. “Por ejemplo, la educación. A lo largo de los años ochenta, con las competencias en las escuelas en los años de Jordi Pujol, se ha trasladado a esas generaciones una falsificación de la Historia y una manipulación con tintes nacionalistas. Han escondido deliberadamente esas partes en las que es de justicia hablar del progreso”.
 
E uma vez que cito John H. Elliott deixem-me referir que é o autor de uma obra clássica sobre a relação de Catalunha com Espanha, La rebelión de los catalanes. Un estudio de la decadencia de España (1598-1640). Neste link, da Amazon, pode ser lido em pré-visualização o novo prólogo que escreveu para a 2ª edição e que é especialmente interessante pois a obra foi originalmente publicada na década de 1960 e nele o autor faz algumas reflexões sobre a evolução da Catalunha no quadro da Constituição espanhola de 1978, a que resultou da transição democrática.
 
Como sabem o Macroscópio gosta, sempre que possível, de dar referências que permitam ir além da actualidade, sendo que encontrei uma bem interessante para todos os que quiserem ter uma ideia das origens do independentismo catalão. Trata-se de um artigo da Foreign Affairs, A Brief History of Catalan Nationalism – The Roots of the Current Crisis, de Sebastian Balfour. Pequeno extracto, mais próximo dos dias de hoje: “The contemporary project of independence offers the hope or illusion of a new nation unencumbered by austerity, corruption, and what Catalan nationalists view as Catalonia’s excessive contribution to the rest of Spain in the form of taxes and transfers to less wealthy regions. This narrative, however, ignores Catalan elites’ implication in corruption scandals, as well as Catalan nationalists’ record in government of applying unpopular austerity policies on behalf of the economic elites of both Spain and Catalonia. In the discourse of Catalan nationalism, that is, the politics of identity has trumped the politics of class.”
 

A promoção destas políticas identitárias – que na Catalunha permitiram, por exemplo, a coligação entre um velho partido burgês e o republicanismo radical de esquerda – é considerada muito perigosa por analistas de orientações bem diferentes. Dois exemplos significativos:
  • No Project Syndicate o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros alemão e líder históricos dos Verdes, Joschka Fischer, preocupa-se com  Europe’s Attackers From Within e fala de uma “historical absurdity”. Mais: “Independence for Catalonia would pose a fundamental problem for Europe, too. For starters, no one wants a repeat of the breakup of Yugoslavia, for obvious reasons. But, more to the point, the EU cannot countenance the disintegration of member states, because these states comprise the very foundation upon which it rests. The EU is an association of nation-states, not regions.
  • Walter Russell Mead, um investigador Hudson Institute, estabelece no Wall Street Journal paralelos entre os separatismos catalão, curdo, escocês e do Biafra, considerando em Secessionism’s Dangerous Return que “Ethnic nationalism is up. So is competition between great powers. It sounds like 1914”. Mais adiante sonsidera que “Rising great-power competition intersecting with a world-wide surge in identity politics—the combination does not point toward a calm future. At the end of the Cold War, many in the West looked forward to a “posthistorical” era in which conflict would be rare. Those predictions look increasingly forlorn; America must learn to chart its course in a grimmer and less forgiving world.”
 
Sem querer sugerir que na Europa a todas as antigas identidades correspondem movimentos independentistas, chamo-vos mesmo assim a atenção para o mapa que o Observador divulgou e reproduzo abaixo. Olhar para ele dá uma ideia do tipo de “caixa de Pandora” que se pode abrir se se ceder ao princípio de que qualquer região pode declarar-se independente mesmo que isso não seja feito no quadro das leis e das constituições dos diferentes países da União Europeia.
 
 
Por isso termino com dois textos mais opinativos da imprensa económica europeia:
  • Rule and Law in Catalonia é um editorial do Wall Street Journal que é muito claro na defesa da actuação de Madrid: “A duly elected national leader is trying to afford all citizens the protection of the national constitution against a minority of rabble-rousers. The biggest threat to Spain—and to Europe—would be to set a precedent for allowing fake votes to tear real countries apart. The virtue of Mr. Rajoy’s approach is that it would put Catalan voters firmly back in control, through a legal election. (...) A new ballot offers Catalans a path out of this crisis by taking political responsibility for the union.”
  • Whither the nation state? é um texto de Sebastian Payne onde se reconhece que “Regions and nations fed up with centralised rule and want a greater degree of control have raised questions of what defines a country”, mas onde também se alerta para os riscos inerentes a tal processo: “There is a point at which autonomy clashes with the integrity of the state. There is such a thing as too much devolution, where areas have competing agendas and national unity is fractured. Too little and the populous will find themselves increasingly aggrieved. As Janan argues, there is a risk that the richer regions tire of propping up the poorer parts of their countries (what price an independent Republic of London?). If that becomes the new norm, the nation state really is in trouble.
 
Desta vez a crise não se passa no outro lado da Europa, vive-se mesmo aqui ao lado em Espanha. Uma Espanha onde, paradoxalmente para sem surpresa, o processo catalão reavivou o velho nacionalismo, porventura a lendária “fúria”. Continuaremos atentos, no dia a dia do Observador e aqui nesta newsletter a uma situação que pode revelar-se mais complicada para a Europa do que o próprio Brexit.
 
Tenham um bom fim-de-semana, o calor volta a estar por aí (esperemos que não os fogos) e boas leituras são sempre uma forma de preencher estes dois dias que até têm uma hora extra. 

 
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