Artigo publicado em maio na Nature Medicine mostra que o tratamento crónico com THC, um componente da maconha, reverte o declínio cognitivo em camundongos idosos e restaura a capacidade de aprendizado
Perante a Inquisição, Galileu Galilei foi forçado em 1633 a renegar a noção de que é a Terra que se move em torno do Sol, e não o contrário. Galileu teria murmurado “Eppur si muove” – “no entanto ela se move” em ato de resistência ao irracionalismo eclesiástico. Essa situação esdrúxula tem paralelo hoje no impasse verificado no debate público sobre maconha medicinal.
Há fartas evidências de que a maconha e seus princípios ativos têm grande potencial terapêutico para uma ampla gama de doenças, tais como epilepsia, isquemia, doença de Alzheimer, mal de Parkinson, síndrome de Tourette, depressão, psicose, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, anorexia, diabetes, fibrose cística, bem como dores crônicas e neuropáticas. Pacientes com essas doenças frequentemente são refratários aos medicamentos disponíveis, um problema que costuma ser abordado clinicamente pelo aumento das doses dos medicamentos, com elevação dos riscos de efeitos colaterais como paradas cardíaca ou respiratória. Medicamentos canabinoides são bastante seguros, por não haver receptores dessa substância em centros neurovegetativos.
Um dos avanços recentes mais promissores diz respeito ao uso da maconha na terapia de câncer. Sabemos hoje que os canabinoides são úteis não apenas para aliviar ansiedade, dor, falta de apetite e sono decorrentes da químio ou radioterapia, mas também por suas surpreendentes propriedades antitumorais. Um bom exemplo é a sinergia entre tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) no aumento da eficácia da radioterapia para o tratamento do glioma.
Outro avanço recente se refere ao uso geriátrico da maconha. Um estudo feito na Alemanha e Israel, publicado no periódico científico Nature Medicine em maio de 2017, demonstrou que o tratamento crônico com THC reverte o declínio cognitivo em camundongos idosos, restaurando a capacidade de aprendizado, a plasticidade sináptica e o perfil de expressão gênica típico de animais jovens. O estudo mostrou ainda que camundongos adolescentes ficam cognitivamente prejudicados após o mesmo tratamento, por excesso de plasticidade. A maconha caminha a passos largos para suplantar a bengala como melhor amiga da velhice.
Diante desse quadro, é gritante o descompasso entre ciência e medicina no Brasil. Apenas em maio de 2017 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária incluiu a maconha na lista de plantas medicinais, mas o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria logo se manifestaram contra a medida. “Não li e não gostei” tem sido a tônica dessas instituições, ignorando que o cultivo caseiro da maconha medicinal é uma realidade na Holanda, Canadá, Alemanha, Espanha, Chile, Itália, Austrália, República Checa, Colômbia e várias regiões dos Estados Unidos. Até quando persistirá a interdição ideológica do tratamento de pacientes em sofrimento, contra tantas evidências científicas?
Os riscos associados ao uso da maconha e sobretudo do THC têm sido usados como espantalho intelectual nesse debate, pois muitas das substâncias vendidas em farmácia são agudamente perigosas em altas doses, o que não ocorre com a maconha. Justificar a proibição da maconha com base em seus grupos de risco é ignorar que toda substância os tem. Para dar um exemplo cotidiano, não é porque existem pessoas intolerantes à lactose que o leite deva ser proibido.
Os efeitos indesejados do THC podem ser evitados com segurança pela mistura com o CBD, tal como tipicamente ocorre na planta. Isso se embasa na noção de efeito entourage, termo cunhado em 1998 pelos químicos Raphael Mechoulam e Simon Ben-Shabat para se referir aos efeitos cooperativos dos múltiplos compostos presentes na maconha, que podem potencializar a eficácia clínica e atenuar efeitos colaterais. Os compostos orgânicos chamados terpenos, abundantes na maconha, podem facilitar a passagem dos canabinoides pela barreira hematoencefálica e contrabalançar os déficits de memória induzidos pelo THC. Do ponto de vista psiquiátrico, CBD e THC têm efeitos complementares, causando respectivamente relaxamento e excitação. Enquanto o CBD é ansiolítico e antipsicótico, o THC é ansiogênico. A presença de ambos os compostos na planta resulta em um efeito tamponado que é clinicamente seguro.
Por todas estas razões é crucial legalizar o uso e o cultivo medicinal da maconha. Isso dará aos médicos, pacientes e pesquisadores o máximo de opções, reduzindo custos, oferecendo acesso conforme cada perfil de paciente ou tipo de pesquisa, evitando dependência de produtos estrangeiros, e também que pacientes recorram à compra de maconha no mercado ilícito (de qualidade questionável e com princípios ativos em concentrações desconhecidas), fomentando a produção por associações de pacientes e promovendo o autocultivo.
O uso fitoterápico da maconha é muitas vezes atacado como se houvesse mais conhecimento sobre os efeitos dos canabinoides purificados do que sobre os efeitos da planta. Isso não procede. O uso da maconha tem milênios de experiência cultural, enquanto que os canabinoides isolados apenas recentemente começaram a ser investigados. A seleção artificial da maconha, realizada sistematicamente ao redor do Himalaia nos últimos 6 mil anos, originou cepas com misturas de canabinoides, em vez de cepas dominadas por um único canabinoide. Se os compostos purificados fossem realmente melhores para as terapias, as cepas contendo um único princípio ativo deveriam ter sido selecionadas ao longo do tempo, o que não ocorreu. A principal questão agora em jogo é o fato de que a maconha medicinal tem custo baixo devido ao cultivo doméstico. Canabinoides purificados, por outro lado, necessariamente chegarão ao consumidor final a preços muito mais altos. Literalmente uma questão de bilhões de dólares...
Enquanto tudo isso passa ao largo, ainda não superamos a discussão sobre o valor medicinal da maconha. Felizmente, a TV aberta começa a encarar a polêmica. O jornalista Pedro Bial abriu seu programa na rede Globo, em 30 de maio, enunciando a máxima de Paracelso: a depender do uso e da dose, qualquer droga pode ser veneno ou elixir. O que se seguiu foi extremamente revelador da estratégia avestruz de muitos médicos brasileiros. Arthur Guerra, coordenador do desastrado programa de internação forçada na Cracolândia, foi questionado sobre a base científica para a proibição da maconha e outras substâncias atualmente ilícitas. Saiu-se com a seguinte pérola: “A base científica é a estrutura da medicina, Pedro. É a partir dessa convicção que nós podemos dar passos mais avançados. Que drogas não são boas, óbvio, por isso que o nome usado são as drogas (...) qualquer uso de droga não vai fazer bem ao cérebro”.
É de se perguntar o que Guerra pensa das drogarias que vendem as drogas que ele prescreve. Dogmático e preconceituoso, jogando para a plateia sem compromisso com a pesquisa, Guerra se apresentou como a vanguarda do atraso. Soou como um defensor da escravidão em 1887. Felizmente Bial e o neurocientista Stevens Rehen, o neuropediatra Eduardo Faveret e o psiquiatra Dartiu Xavier fizeram o contraponto necessário à desinformação, apresentando pesquisas que corroboram o uso medicinal da maconha. Guerra, os pacientes precisam de paz. Eppur si muove.
Fonte: Revista Mente & Cérebro
SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
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