A intervenção desastrosa da prefeitura na Cracolândia, em São Paulo, se embasa em argumentos iniciais até razoáveis, mas que podem levar a conclusões descabidas
Há dois remédios universais para o mal-estar: o trabalho e o amor. “Quando casar passa”, ouvimos diante de nossos machucados infantis; “Trabalha que daqui a pouco você esquece”, escutamos quando surgem as agruras da vida adulta ; ou “Trabalha e ora” (ora et labora), aconselhamos na velhice. O trabalho é um santo remédio: garante os meios para consumir e sobreviver, além de oferecer a perspectiva de autoaperfeiçoamento pela qual criamos futuros possíveis e nos permite pertencer a uma comunidade que se entranha em nossa história. O trabalho e o amor são as duas fontes de nossa vida e deveriam também governá-la, afirmava W. Reich. Era esta também a tese de Freud. A psicanálise faculta que o sujeito possa amar e trabalhar, mas não apenas como um fim ou efeito, mas também como meio do tratamento: trabalho de luto (Trauerarbeit), trabalho de elaboração (Ducharbeit), trabalho do sonho (Traumarbeit), trabalho da pulsão (Triebarbeit).
Por uma dessas estranhas mirabo-lâncias destes tempos de pós-verdade à brazileira (com “z” mesmo), parece que embarcamos em uma espécie de oposição forçada. Agora é amar ou trabalhar. Se o trabalho é bom, que tal trabalhar em vez de amar? Quanto mais remédio, melhor a cura. Portanto, aqueles que não podem, não querem ou são impedidos de aceitar a cura em seus corações me-recem o nosso desprezo. Aliás, por que não usar a violência ou a coerção para fazê-los aceitar a redenção?
No debate que se seguiu à in-tervenção desastrosa da prefeitura na Cracolândia em São Paulo vimos esta progressão pela qual um argu-mento razoável inicial pode levar a conclusões descabidas, ainda que retoricamente eficazes. É o jus-ti-cia-mento popular contra usuá-rios de crack, apoiado pela maioria da população, que parece ter embarcado na óbvia convicção de que o trabalho cura. Agora não é mais justiça com as próprias mãos, é também saú-de com as próprias mãos. Eleito em nome desta moral, nada mais coerente do que praticá-la: cidade limpa, linda e acelerada. Contra to-dos os especialistas e experiências nacionais e internacionais, que dizem que não é assim que se faz, e dizem também como deve ser feito (só que aí fica caro e demorado), nosso novo Robespierre exibe trabalho, cura com trabalho e ataca os que estão sem trabalho. O trabalho cura, mas trabalho sem amor corrompe.
Ao mesmo tempo o novo pre-sidente do Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico e So-cial (BNDES), Paulo Rabello Cas-tro, declara em seu discurso de pos-se: “O Brasil está mais para psicanálise do que para análise econômica. E aqui o banco tem que descomplicar a análise econômica, e atropelar a psicanálise”. De novo nós devemos ser atropelados em nome do aumento da velocidade, da urgência e da necessidade de “fazer alguma coisa” (qualquer coisa, mesmo que seja uma bobagem).
Posta em contexto, a afirmação alude ao fato de que estamos cho-rando, nos achando quebrados e à beira da falência, quando temos R$ 370 bilhões em caixa. Tem meu perdão porque sua entrevista começa com a declaração de que o país tem que “voltar a sonhar”, ou seja, mais psicanálise e menos discurso consolatório, vitimizante e manipulador. Tudo verdade, só que quem está dizendo que esta-mos quebrados não são os preguiçosos, desempregados ou mi-seráveis, mas os que estão sentados chorando em cima do dinheiro. O crack é um problema de saúde mental e de economia, requer intervenções com palavras e com recursos ma-teriais (moradia, trabalho, assistência social), requer tanto o trabalho do amor quanto o amor ao trabalho. O trabalho cura. O trabalho sem amor corrompe. O trabalho sem amor e sem dinheiro mata.
Fonte: Revista Mente & Cerebro
Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e articulista mensal da Mente e Cérebro.
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