Demétrio Alves*
Os órgãos de comunicação social estão hiperexcitados com o caso Papéis do Panamá.
Um grande manancial de documentos até agora confidenciais, levam algumas redações a paradoxais autoelogios acerca daquilo que dizem ser uma “extraordinária investigação jornalística”.
Recorde-se: tudo terá começado numa “fuga” de informação a partir de uma fonte anónima que levou a preciosa carga ao jornal alemão “Suddeutsche Zeitung”, que, numa tradução literal, significa Correio da Manhã.
E tudo isto acerca do uso legal ou ilegal das offshore por parte de pessoas já ricas e poderosas, que têm ou tiveram responsabilidades políticas, empresariais e bancárias, e que o vêm fazendo na senda de maior riqueza e poder. Nada de novo, portanto.
Mas agora é tudo aos milhões: os papéis, os personagens e os montantes financeiros que movimentam e, de passagem, os lucros acrescidos pelas empresas detentoras dos órgãos de comunicação que ganham com o aumento das audiências.
Começaram por malhar forte e feio no Putin, no Xi Jinping e, como não poderia deixar de ser à luz dos interesses geopolíticos dominantes, no Bashar, esse terrível chefe do “regime” sírio.
Para compor o ramalhete apareceu um Xeque dos EAU, o Sigmundur da Islândia, o fascista da Ucrânia, o senhor da Arábia, e, de passagem o Cameron , o Macri, o Messi e o maltês.
Desde logo é legítimo perguntar por que motivo não há nenhum gringo apanhado com a boca no offshore? Não seria necessário ser o Obama ou o Trump, bastaria um qualquer texano ligado aos petróleos. Mas, nem um para amostra, e logo na pátria do empreendedorismo financeiro?!
Também faz sentido colocar uma outra questão aparentemente lateral: lá porque um cunhado, um primo, um sobrinho, um amigo, próximo ou afastado, se envolve em negócios escuros, terá isso que significar que o político correlacionado está imediata e inquestionavelmente ligado à trafulhice?
Não haverá como pôr tranquilamente as mãos no lume pelos rapazes acima mencionados. Mas são muitas e manifestas as diferenças nos rastos que foram exibidos para os tentar incriminar. Alguns puseram o próprio dedo na geleia e levaram-na à boca, outros, como Putin ou o líder chinês, não há provas de que o tivessem feito.
Uma coisa é certa: desde há muitos anos sabe-se da utilidade fulcral das offshore no mundo da fuga aos impostos (por vezes designada otimização fiscal) e da lavagem de dinheiro proveniente da corrupção, da droga e do tráfico de armas.
Estas práticas criminosas, porque provocam danos gravíssimos aos povos de todas as latitudes, justificariam por si só a eliminação deste instrumento criado à luz da “liberdade” da circulação de capitais financeiros. Mas, como é conhecido, há indivíduos, jornais e partidos políticos “democráticos” que se indignam sempre que alguém propõe o fim destes esquemas. E utilizam, na defesa da tal “liberdade empreendedora”, as mais esfarrapadas desculpas: que não adianta acabar com a coisa na Madeira, porque continuaria a haver opções nas ilhas Caimão; porque as offshore’s podem trazer emprego nos sítios onde estão implantadas; que as ditas também servem propósitos legais e transparentes, etc.
Embora sejam evidentes as distorções políticas oportunistas semeadas à passagem do caso– tenta-se fazer passar a ideia de que nesta coisa das vigarices financeiras não há esquerda nem direita – ele pode vir a alertar o público para a dimensão brutal da podridão que grassa no mundo dos negócios e da finança à escala global. Que não haja ,contudo, ilusões, a percepção possibilitada às massas consumidoras deste tipo de “informação/diversão” está distorcida à partida pela forma folhetinesca como é fornecida: no fundo não se pretende informar formando opinião esclarecida e interventora, mas, pelo contrário, alienar, distrair do essencial, propagandear os méritos de um sistema que permite estas “liberdades de informação”, e, de caminho, fazer dinheiro para proveito dos empórios da comunicação. No fim, como é hábito neste tipo de terapias hipnóticas, tudo continuará na mesma.
Mas, pergunta-se, este espetáculo degradante e perigoso é apenas fruto da atuação pontual de alguns empresários, advogados, banqueiros e políticos gananciosos e sem escrúpulos que não respeitam as “regras” do mercado e do capitalismo?
Dizem os colunistas especializados na propaganda neoliberal que a “globalização económica verificada nas últimas décadas é um dos fenómenos mais estimulantes da história da humanidade que retirou milhões de seres humanos da miséria”. O problema, acrescentam, é a existência de “alguns gananciosos tresmalhados” que, independentemente do sistema económico e fruto das imperfeições humanas, desataram a praticar abundantemente os pecados da avareza e da luxúria. A culpa não seria do sistema, mas de imoralidade de alguns dos indivíduos nele mandantes. Aliás, acrescentam, basta ver o caso chinês: trata-se de um regime comunista onde têm emergido vários casos de corrupção e enriquecimento escandaloso.
Embora não seja possível tratar os casos de corrupção ocorridos em ambiente sistémico socialista da maneira simplista como o fazem, por oportunismo, os formadores de opinião arregimentados no sistema capitalista, não se pode esconder que o fenómeno, embora existente, tem merecido severidade e crescentes corretivos das autoridades chinesas. E, já agora, não é verdade que na China, por motivos de sobrevivência, primeiro, e crescimento, depois, coexistem “dois sistemas”? Então, porque não admitir, sem querer esgotar a questão, que estes problemas se devem à parte capitalista dos “dois sistemas”?
O problema central aportado pelo capitalismo não está na sua maior ou menor moralidade. O núcleo essencial dos desequilíbrios, da desumanidade e dos perigos que o capitalismo contem está amplamente estudado e teorizado, radicando na natureza da sua matriz económica e política: é um sistema que se baseia na exploração do trabalho e dos recursos, que aponta para um conjunto de valores que visa sacralizar o lucro e o individualismo.
Contudo, mesmo quanto à violentação dos valores éticos, é hoje possível perceber que a realidade retratada nas ultimas crises financeiras, nas derrocadas bancárias e nos circuitos da corrupção e fuga ao fisco, não corresponde à exceção, mas, sim, à regra: faz parte do âmago matricial capitalista o principio de que “ cada um é livre para explorar os outros e a terra comum”. Ora, nas últimas duas décadas e meia, esta “liberdade” tornou-se mais descarada e incontrolável, na medida em que aumentaram as liberalidades de circulação de capitais e de exploração laboral, montadas nas poderosas tecnologias comunicacionais, nas técnicas de rede organizacional corporativa, na governança, no empreendedorismokrill e, por fim, na fragilização do projeto socialista, no endeusamento do consumo e do individualismo.
Enfim, à medida que o capitalismo tomou o freio nos dentes, assume, com evidencia crescente, ser um sistema amoral.
*Praça do Bocage
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