Pereira Dinis – Jornal de Angola
Com obras sobre investigação criminal e violência e experiência laboral sobre a matéria, autor de várias séries televisivas e de romances, tem a sua obra traduzida em várias línguas e dispersa a sua actividade como conferencista e formador por vários países. Encontra-se em Luanda, dirigindo uma acção de formação para Magistrados do Ministério Público.
Jornal de Angola - Como surgiu esta oportunidade para estar entre nós?
Francisco Moita Flores - Não é a primeira vez que aqui estou. Em Outubro do ano passado, fui convidado pelo senhor Procurador-Geral da República para dirigir uma formação destinada a Magistrados do Ministério Público com o objectivo de melhorar a articulação entre a investigação criminal e a instrução dos processos-crime. O senhor Procurador-Geral sentia esta necessidade nos serviços que dirige e, deve dizer-se, que é a dificuldade maior em qualquer país do mundo no que respeita à construção de um processo-crime bem fundamentado para produzir boas acusações e melhores decisões judiciárias. Estive aqui no final do ano passado, numa acção teórica intensiva sobre a importância das ciências forenses ao serviço dos Tribunais e, agora, conclui-se esta primeira formação com acções práticas sobre casos concretos e abordagens metodológicas à investigação/instrução de crimes.
Jornal de Angola - São muitos os Magistrados em formação?
Francisco Moita Flores - Perto de 80 a que, agora, foram somados outros 80 que ainda são auditores, ou seja futuros Procuradores, sendo que com eles vou ter um contacto mais episódico por falta de tempo.
Jornal de Angola - Já pode fazer balanços do trabalho desenvolvido ou ainda é cedo?
Francisco Moita Flores - Devo dizer que o primeiro balanço é uma boa surpresa. Encontrei gente com fome de saber, qualidade fundamental para quem se dedica a esta área da Justiça. Gente abnegada, que trabalha como nunca vi. Só para ter uma ideia do que lhe digo, basta saber que Portugal, para dez milhões de pessoas, tem cerca de 1.700 Procuradores e, aqui, em Angola, o número ainda não chegou aos 400, com cerca de 26 milhões de habitantes. É necessário um grande espírito de sacrifício, de entrega à causa pública para responder à grande demanda processual. O senhor Procurador-Geral João Maria de Sousa e a sua equipa merecem este reconhecimento público pela enorme batalha que travam pela realização da Justiça.
Jornal de Angola - Justiça angolana que, no seu país, é muito maltratada com críticas constantes ao nosso sistema judicial.
Francisco Moita Flores - Não se pode confundir a árvore com a floresta. Nem a ignorância com formas mais elaboradas de análise. Essas críticas de que fala são filhas de falsos moralismos e de uma grande hipocrisia. Não me revejo nesses discursos demagógicos que escolhem problemas externos para omitir os problemas internos. Dou-lhe um exemplo: Portugal tem neste momento o maior registo de presos da sua história recente. São cerca de 15 mil. Sabe que em Angola são perto de 24 mil detidos, tendo o país mais do dobro da população portuguesa? Temos as cadeias superlotadas. A capacidade é para cerca de 11 mil e estamos nesta situação. Ouviu essas vozes portuguesas críticas da Justiça angolana levantar a voz para defender os direitos humanos dos nossos detidos? Ouviu essas vozes protestar contra a situação dos nossos tribunais, atulhados de processos, alguns deles à espera de decisão há mais de dez anos? Ouviu essas vozes rebelarem-se contra a sistemática violação do segredo de justiça no nosso país? Não. Quando falam da Justiça portuguesa recorrem ao lugar comum, à política o que é da política, à justiça o que é da justiça. Não os leve a sério. Gostam de fazer política “gira”, populista, indiferentes aos graves problemas que assolam o país, nomeadamente a desertificação, a baixa natalidade, a crise endémica em que vivemos há séculos.
Jornal de Angola - E no que respeita a Angola e àquilo que já conhece?
Francisco Moita Flores - Tem as fragilidades próprias de um país com um Estado em construção. Angola tem uma Procuradoria-Geral da República jovem. Teve de ser reconstruída e ainda não tem 40 anos. Tem uma nova Constituição há seis anos. Saiu de uma guerra prolongada há cerca de 14 anos. Não é possível erguer o edifício do Estado da noite para o dia. Formar quadros, identificar problemas, promover redes de administração pública eficazes são desafios para décadas. O Estado republicano português, que herdou as estruturas do antigo Estado liberal, demorou décadas para ter o seu desenho mais completo cinquenta anos depois. Para lhe dar uma ideia do que afirmo, o regime republicano instituiu em 1910, quando tomou o poder, o Registo Civil e a obrigatoriedade do Bilhete de Identidade, documento decisivo para reconhecimento da cidadania e controlo do Estado. Só nos inícios dos anos sessenta do século passado este desafio foi concluído. Tenho,neste processo de formação em que estou engajado, trocado as mais diversas impressões com os formadores e os seus relatos demonstram as melhores práticas judiciárias, a respeito da investigação e instrução de processos sobre crimes, desde o branqueamento de capitais a homicídios. É certo que nalguns casos fazem denotar fragilidades próprias da falta de amadurecimento. De memória profissional, pois ela é determinante na eficácia das instituições. Só osanospoderão consolidaresteexercício judicial, porque nesta área da investigação criminal e instrução não existe limite para o aperfeiçoamento. A título de exemplo, lembro a profunda revolução cibernética que está a transformar os nossos dias. As práticas criminosas tornam-se mais complexas e exigem reacções judiciais mais elaboradas. É um processo dinâmico sempre a precisar de ajustamentos.
Jornal de Angola - O que pensa da violação do segredo de justiça?
Francisco Moita Flores - É crime. Quer em Portugal, quer em Angola. Mas é pior do que um crime. É a constatação de que os funcionários que têm o dever de proteger os direitos de cidadania daqueles que são investigados não têm rigor ético, nem elevação moral para cumprir a Constituição que juraram cumprir.
Jornal de Angola - Que prejuízos concretos pode trazer para o processo a violação do segredo de justiça?
Francisco Moita Flores - Objectivamente, a violação do segredo de justiça pode destruir uma investigação que custou dinheiro dos contribuintes e muito tempo gasto para averiguar se houve ou não determinado crime, permitindo a destruição de prova e, até, a fuga dos investigados, liquidando a hipótese de se fazer Justiça no único palco onde é reconhecida. Num tribunal e na presença de um juiz. Mas existe uma outra dimensão bem mais grave deste justicialismo de franco-atirador. Manchar a honra, o carácter, o prestígio do investigado sem lhe dar hipótese de se defender. É uma violação brutal de direitos humanos que condena na praça pública e não permite a nobreza do Tribunal. Têm sido muitas vidas destruídas graças à intervenção obscena dos violadores do segredo de justiça. Dou um exemplo: Carmona Rodrigues foi presidente da Câmara de Lisboa há cerca de uma década. Houve um caso na autarquia que estava a ser investigado e a coisa saltou para a opinião pública. Foi uma vergonha. Durante dias, semanas, televisões e imprensa instalaram-se na Câmara e o oportunismo político falou mais alto. Carmona Rodrigues acabou por se demitir, embora protestasse a sua inocência que ninguém queria ouvir. Passados anos, foi julgado. Logo no primeiro julgamento o juiz não queria iniciá-lo porque achava a acusação indecorosa e sem fundamento. Acabou por ser absolvido por total ausência de provas. Ninguém deu notícia desta absolvição e a sua vida ficou feita em estilhaços durante bastante tempo.
Jornal de Angola - É visível, em Portugal, que particularmente o Ministério Público viola flagrantemente o segredo de justiça, pois são os jornalistas nas suas publicações que indicam as fontes. Qual é a sua visão sobre isto?
Francisco Moita Flores - Em Portugal a violação do segredo de justiça tornou-se num verdadeiro prostíbulo há muitos anos. Tenho escrito muito contra esta tolerância imoral. Porém, é uma cultura cada vez mais instalada em alguns sectores judiciários, sedentos por julgamentos antecipados à medida dos seus interesses estratégicos.
Jornal de Angola - Sabe-se que em tempos idos, tanto o Ministério Público quanto elementos da Polícia Judiciária portuguesa instauraram processos contra jornalistas por violarem o segredo de justiça. Porquê esta viragem, já que, ao que consta, são os próprios operadores da Justiça que municiam os jornalistas, violando direitos fundamentais das pessoas visadas?
Francisco Moita Flores - Essa é a parte cínica do sistema. Instauram-se processos-crime que acabam invariavelmente no fundo das gavetas. Não conheço um único PGR que não tenha declarado guerra à violação do segredo de justiça. Apenas conheço um único caso julgado e condenado. Já assistimos a buscas filmadas em directo.Nomeadamente a escritórios de advogados. A notificações em directo. Até um deputado foi notificado por um juiz e lá estava uma televisão. Detenções em directo na televisão. Como é possível? Diligências a que só alguns podem ter acesso? No final, não há consequências. Nem penais, nem disciplinares.
Jornal de Angola - Como diferenciar o direito de informar e ser informado e a violação do segredo de justiça?
Francisco Moita Flores - São territórios com fronteiras difusas que, geralmente, vivem em grande tensão. O direito à liberdade de expressão e informação é um bem constitucional. Sou um defensor intransigente destes direitos. A censura mata a alma e sei o que custa. Faço parte de uma geração que foi submetida ao vexame da censura utilizada pela Ditadura. Porém, no que respeita ao direito criminal tem de haver limites, que a própria lei impõe, para que um suspeito ou um arguido tenha os seus direitos e garantias constitucionais protegidos. Claro que os jornais têm todo o direito a investigar casos e divulgá-los com verdade e objectividade, sem penetrar na vida privada das pessoas. Por outro lado, há que admitir que no que respeita à violação do segredo de justiça não é o jornalista o visado. Só pode violar um segredo quem o detém. Portanto, é um problema da Justiça. Em Portugal, temos dezenas ou centenas de pessoas que foram constituídas arguidos há seis, sete, oito anos que viram as suas vidas expostas e achincalhadas e, no final, nem uma acusação e muito menos um julgamento.
Jornal de Angola - O que pensa das relações de amor/ódio entre Portugal e Angola consubstanciadas na constante interferência de políticos e da comunicação social portuguesa na vida pública da República de Angola, particularmente relacionadas com decisões judiciais e políticas?
Francisco Moita Flores - Por aquilo que vejo e oiço no dia a dia, quer em Portugal quer em Angola, a relação é mais de amor do que de ódio. Muitos dos críticos das decisões das autoridades angolanas estão armados de um paternalismo moral, por vezes a rondar a beatice, considerando-se os juízes absolutos do caminho, da verdade e da vida. São deuses com pés de barro e estrábicos. Vivem empanturrados com as suas próprias verdades, muitas vezes sem correspondência com a realidade. Muitos deles sonham com um certo domínio neocolonialista cultural, do género “vá lá, governem-se mas de acordo com a minha norma moral e política”. Na maioria, são ignorantes das realidades que criticam. A maior parte nunca viu um processo-crime, muitos nem conhecem Angola e os seus desafios. Vivem de pontos de vista pré-concebidos pelos seus próprios traumas e desejos. Não vale a pena valorizar. Jamais tirará da cabeça de um ressabiado a ideia pré-formada que tem sobre determinado assunto por mais que lhe tente mostrar o outro lado da verdade. A verdade é que o princípio da autodeterminação de cada povo, da liberdade de escolher o seu destino, de tomar os seus destinos nas próprias mãos é assunto de cada país. Por outro lado, julgo que as relações de amizade/amor são bem mais importantes. Basta passear pelas ruas de Luanda para perceber a importância da presença portuguesa, através dos painéis de publicidade das empresas que aqui trabalham. São milhares de portugueses que aqui encontraram o pão que a sua terra lhes recusou quando rebentou a crise. São milhares de portugueses que aqui vivem há gerações, constituindo famílias, tendo os seus filhos e educando-os no respeito pelos dois países-irmãos. E bem se sabe a importância de Angola e dos angolanos na economia portuguesa. Foi Angola e Espanha que nos salvaram de maiores dificuldades nos anos da brasa quando a “troyka” esteve em Portugal. Temos história comum, temos afectos comuns, temos marcadores culturais comuns, uma Língua comum. Temos todas as condições para trabalhar em cooperação, na base do respeito recíproco. Há quem não aposte nisto e prefira o conflito, porém, é apenas um problema de cães e de caravanas. A força daquilo que nos une, enquanto povos, é muito maior do que os protestos de meia dúzia de sonhadores de novas formas de domínio.
Jornal de Angola - Como está a criminalidade em Angola?
Francisco Moita Flores - Angola é um país pacífico, com baixa criminalidade, um lugar seguro, sem conflitos regionais, sem terrorismo, sem nenhuma das ameaças que hoje pairam sobre a Europa. A excepção é Luanda. Tornou-se uma grande metrópole com todos os problemas e grandezas das grandes metrópoles. Actualmente, por todo o lado, as grandes concentrações metropolitanas são responsáveis pela maior parte da actividade criminosa. As cinquenta cidades mais violentas do mundo são metrópoles. Quarenta delas são na América latina e, em África, só a cidade do Cabo (África do Sul) integra este triste “ranking”.A Região Metropolitana de Lisboa é o palco de mais de metade da criminalidade de todo o país. Daí que esteja a chegar a hora da política olhar as metrópoles com outros olhar de ver, que não seja entender estes espaços como as tradicionais cidades que herdámos da revolução industrial-
Jornal de Angola - Como surgiu esta oportunidade para estar entre nós?
Francisco Moita Flores - Não é a primeira vez que aqui estou. Em Outubro do ano passado, fui convidado pelo senhor Procurador-Geral da República para dirigir uma formação destinada a Magistrados do Ministério Público com o objectivo de melhorar a articulação entre a investigação criminal e a instrução dos processos-crime. O senhor Procurador-Geral sentia esta necessidade nos serviços que dirige e, deve dizer-se, que é a dificuldade maior em qualquer país do mundo no que respeita à construção de um processo-crime bem fundamentado para produzir boas acusações e melhores decisões judiciárias. Estive aqui no final do ano passado, numa acção teórica intensiva sobre a importância das ciências forenses ao serviço dos Tribunais e, agora, conclui-se esta primeira formação com acções práticas sobre casos concretos e abordagens metodológicas à investigação/instrução de crimes.
Jornal de Angola - São muitos os Magistrados em formação?
Francisco Moita Flores - Perto de 80 a que, agora, foram somados outros 80 que ainda são auditores, ou seja futuros Procuradores, sendo que com eles vou ter um contacto mais episódico por falta de tempo.
Jornal de Angola - Já pode fazer balanços do trabalho desenvolvido ou ainda é cedo?
Francisco Moita Flores - Devo dizer que o primeiro balanço é uma boa surpresa. Encontrei gente com fome de saber, qualidade fundamental para quem se dedica a esta área da Justiça. Gente abnegada, que trabalha como nunca vi. Só para ter uma ideia do que lhe digo, basta saber que Portugal, para dez milhões de pessoas, tem cerca de 1.700 Procuradores e, aqui, em Angola, o número ainda não chegou aos 400, com cerca de 26 milhões de habitantes. É necessário um grande espírito de sacrifício, de entrega à causa pública para responder à grande demanda processual. O senhor Procurador-Geral João Maria de Sousa e a sua equipa merecem este reconhecimento público pela enorme batalha que travam pela realização da Justiça.
Jornal de Angola - Justiça angolana que, no seu país, é muito maltratada com críticas constantes ao nosso sistema judicial.
Francisco Moita Flores - Não se pode confundir a árvore com a floresta. Nem a ignorância com formas mais elaboradas de análise. Essas críticas de que fala são filhas de falsos moralismos e de uma grande hipocrisia. Não me revejo nesses discursos demagógicos que escolhem problemas externos para omitir os problemas internos. Dou-lhe um exemplo: Portugal tem neste momento o maior registo de presos da sua história recente. São cerca de 15 mil. Sabe que em Angola são perto de 24 mil detidos, tendo o país mais do dobro da população portuguesa? Temos as cadeias superlotadas. A capacidade é para cerca de 11 mil e estamos nesta situação. Ouviu essas vozes portuguesas críticas da Justiça angolana levantar a voz para defender os direitos humanos dos nossos detidos? Ouviu essas vozes protestar contra a situação dos nossos tribunais, atulhados de processos, alguns deles à espera de decisão há mais de dez anos? Ouviu essas vozes rebelarem-se contra a sistemática violação do segredo de justiça no nosso país? Não. Quando falam da Justiça portuguesa recorrem ao lugar comum, à política o que é da política, à justiça o que é da justiça. Não os leve a sério. Gostam de fazer política “gira”, populista, indiferentes aos graves problemas que assolam o país, nomeadamente a desertificação, a baixa natalidade, a crise endémica em que vivemos há séculos.
Jornal de Angola - E no que respeita a Angola e àquilo que já conhece?
Francisco Moita Flores - Tem as fragilidades próprias de um país com um Estado em construção. Angola tem uma Procuradoria-Geral da República jovem. Teve de ser reconstruída e ainda não tem 40 anos. Tem uma nova Constituição há seis anos. Saiu de uma guerra prolongada há cerca de 14 anos. Não é possível erguer o edifício do Estado da noite para o dia. Formar quadros, identificar problemas, promover redes de administração pública eficazes são desafios para décadas. O Estado republicano português, que herdou as estruturas do antigo Estado liberal, demorou décadas para ter o seu desenho mais completo cinquenta anos depois. Para lhe dar uma ideia do que afirmo, o regime republicano instituiu em 1910, quando tomou o poder, o Registo Civil e a obrigatoriedade do Bilhete de Identidade, documento decisivo para reconhecimento da cidadania e controlo do Estado. Só nos inícios dos anos sessenta do século passado este desafio foi concluído. Tenho,neste processo de formação em que estou engajado, trocado as mais diversas impressões com os formadores e os seus relatos demonstram as melhores práticas judiciárias, a respeito da investigação e instrução de processos sobre crimes, desde o branqueamento de capitais a homicídios. É certo que nalguns casos fazem denotar fragilidades próprias da falta de amadurecimento. De memória profissional, pois ela é determinante na eficácia das instituições. Só osanospoderão consolidaresteexercício judicial, porque nesta área da investigação criminal e instrução não existe limite para o aperfeiçoamento. A título de exemplo, lembro a profunda revolução cibernética que está a transformar os nossos dias. As práticas criminosas tornam-se mais complexas e exigem reacções judiciais mais elaboradas. É um processo dinâmico sempre a precisar de ajustamentos.
Jornal de Angola - O que pensa da violação do segredo de justiça?
Francisco Moita Flores - É crime. Quer em Portugal, quer em Angola. Mas é pior do que um crime. É a constatação de que os funcionários que têm o dever de proteger os direitos de cidadania daqueles que são investigados não têm rigor ético, nem elevação moral para cumprir a Constituição que juraram cumprir.
Jornal de Angola - Que prejuízos concretos pode trazer para o processo a violação do segredo de justiça?
Francisco Moita Flores - Objectivamente, a violação do segredo de justiça pode destruir uma investigação que custou dinheiro dos contribuintes e muito tempo gasto para averiguar se houve ou não determinado crime, permitindo a destruição de prova e, até, a fuga dos investigados, liquidando a hipótese de se fazer Justiça no único palco onde é reconhecida. Num tribunal e na presença de um juiz. Mas existe uma outra dimensão bem mais grave deste justicialismo de franco-atirador. Manchar a honra, o carácter, o prestígio do investigado sem lhe dar hipótese de se defender. É uma violação brutal de direitos humanos que condena na praça pública e não permite a nobreza do Tribunal. Têm sido muitas vidas destruídas graças à intervenção obscena dos violadores do segredo de justiça. Dou um exemplo: Carmona Rodrigues foi presidente da Câmara de Lisboa há cerca de uma década. Houve um caso na autarquia que estava a ser investigado e a coisa saltou para a opinião pública. Foi uma vergonha. Durante dias, semanas, televisões e imprensa instalaram-se na Câmara e o oportunismo político falou mais alto. Carmona Rodrigues acabou por se demitir, embora protestasse a sua inocência que ninguém queria ouvir. Passados anos, foi julgado. Logo no primeiro julgamento o juiz não queria iniciá-lo porque achava a acusação indecorosa e sem fundamento. Acabou por ser absolvido por total ausência de provas. Ninguém deu notícia desta absolvição e a sua vida ficou feita em estilhaços durante bastante tempo.
Jornal de Angola - É visível, em Portugal, que particularmente o Ministério Público viola flagrantemente o segredo de justiça, pois são os jornalistas nas suas publicações que indicam as fontes. Qual é a sua visão sobre isto?
Francisco Moita Flores - Em Portugal a violação do segredo de justiça tornou-se num verdadeiro prostíbulo há muitos anos. Tenho escrito muito contra esta tolerância imoral. Porém, é uma cultura cada vez mais instalada em alguns sectores judiciários, sedentos por julgamentos antecipados à medida dos seus interesses estratégicos.
Jornal de Angola - Sabe-se que em tempos idos, tanto o Ministério Público quanto elementos da Polícia Judiciária portuguesa instauraram processos contra jornalistas por violarem o segredo de justiça. Porquê esta viragem, já que, ao que consta, são os próprios operadores da Justiça que municiam os jornalistas, violando direitos fundamentais das pessoas visadas?
Francisco Moita Flores - Essa é a parte cínica do sistema. Instauram-se processos-crime que acabam invariavelmente no fundo das gavetas. Não conheço um único PGR que não tenha declarado guerra à violação do segredo de justiça. Apenas conheço um único caso julgado e condenado. Já assistimos a buscas filmadas em directo.Nomeadamente a escritórios de advogados. A notificações em directo. Até um deputado foi notificado por um juiz e lá estava uma televisão. Detenções em directo na televisão. Como é possível? Diligências a que só alguns podem ter acesso? No final, não há consequências. Nem penais, nem disciplinares.
Jornal de Angola - Como diferenciar o direito de informar e ser informado e a violação do segredo de justiça?
Francisco Moita Flores - São territórios com fronteiras difusas que, geralmente, vivem em grande tensão. O direito à liberdade de expressão e informação é um bem constitucional. Sou um defensor intransigente destes direitos. A censura mata a alma e sei o que custa. Faço parte de uma geração que foi submetida ao vexame da censura utilizada pela Ditadura. Porém, no que respeita ao direito criminal tem de haver limites, que a própria lei impõe, para que um suspeito ou um arguido tenha os seus direitos e garantias constitucionais protegidos. Claro que os jornais têm todo o direito a investigar casos e divulgá-los com verdade e objectividade, sem penetrar na vida privada das pessoas. Por outro lado, há que admitir que no que respeita à violação do segredo de justiça não é o jornalista o visado. Só pode violar um segredo quem o detém. Portanto, é um problema da Justiça. Em Portugal, temos dezenas ou centenas de pessoas que foram constituídas arguidos há seis, sete, oito anos que viram as suas vidas expostas e achincalhadas e, no final, nem uma acusação e muito menos um julgamento.
Jornal de Angola - O que pensa das relações de amor/ódio entre Portugal e Angola consubstanciadas na constante interferência de políticos e da comunicação social portuguesa na vida pública da República de Angola, particularmente relacionadas com decisões judiciais e políticas?
Francisco Moita Flores - Por aquilo que vejo e oiço no dia a dia, quer em Portugal quer em Angola, a relação é mais de amor do que de ódio. Muitos dos críticos das decisões das autoridades angolanas estão armados de um paternalismo moral, por vezes a rondar a beatice, considerando-se os juízes absolutos do caminho, da verdade e da vida. São deuses com pés de barro e estrábicos. Vivem empanturrados com as suas próprias verdades, muitas vezes sem correspondência com a realidade. Muitos deles sonham com um certo domínio neocolonialista cultural, do género “vá lá, governem-se mas de acordo com a minha norma moral e política”. Na maioria, são ignorantes das realidades que criticam. A maior parte nunca viu um processo-crime, muitos nem conhecem Angola e os seus desafios. Vivem de pontos de vista pré-concebidos pelos seus próprios traumas e desejos. Não vale a pena valorizar. Jamais tirará da cabeça de um ressabiado a ideia pré-formada que tem sobre determinado assunto por mais que lhe tente mostrar o outro lado da verdade. A verdade é que o princípio da autodeterminação de cada povo, da liberdade de escolher o seu destino, de tomar os seus destinos nas próprias mãos é assunto de cada país. Por outro lado, julgo que as relações de amizade/amor são bem mais importantes. Basta passear pelas ruas de Luanda para perceber a importância da presença portuguesa, através dos painéis de publicidade das empresas que aqui trabalham. São milhares de portugueses que aqui encontraram o pão que a sua terra lhes recusou quando rebentou a crise. São milhares de portugueses que aqui vivem há gerações, constituindo famílias, tendo os seus filhos e educando-os no respeito pelos dois países-irmãos. E bem se sabe a importância de Angola e dos angolanos na economia portuguesa. Foi Angola e Espanha que nos salvaram de maiores dificuldades nos anos da brasa quando a “troyka” esteve em Portugal. Temos história comum, temos afectos comuns, temos marcadores culturais comuns, uma Língua comum. Temos todas as condições para trabalhar em cooperação, na base do respeito recíproco. Há quem não aposte nisto e prefira o conflito, porém, é apenas um problema de cães e de caravanas. A força daquilo que nos une, enquanto povos, é muito maior do que os protestos de meia dúzia de sonhadores de novas formas de domínio.
Jornal de Angola - Como está a criminalidade em Angola?
Francisco Moita Flores - Angola é um país pacífico, com baixa criminalidade, um lugar seguro, sem conflitos regionais, sem terrorismo, sem nenhuma das ameaças que hoje pairam sobre a Europa. A excepção é Luanda. Tornou-se uma grande metrópole com todos os problemas e grandezas das grandes metrópoles. Actualmente, por todo o lado, as grandes concentrações metropolitanas são responsáveis pela maior parte da actividade criminosa. As cinquenta cidades mais violentas do mundo são metrópoles. Quarenta delas são na América latina e, em África, só a cidade do Cabo (África do Sul) integra este triste “ranking”.A Região Metropolitana de Lisboa é o palco de mais de metade da criminalidade de todo o país. Daí que esteja a chegar a hora da política olhar as metrópoles com outros olhar de ver, que não seja entender estes espaços como as tradicionais cidades que herdámos da revolução industrial-
Foto: Mota Ambrósio
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