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Francisco Assis, a única voz socialista de peso que se tem oposto, desde o início, à solução governativa costurada por António Costa, deu este fim-de-semana três entrevistas – ao Observador, ao Diário de Notícias/TSF e ao Expresso – onde, uma semana antes do Congresso do PS, desenvolveu os motivos pelos quais pensa que a “geringonça” é uma má solução para o país. Vale a pena partir de algumas das suas afirmações para regressar ao tema do futuro do PS e, também, de uma esquerda que, em Portugal e na Europa, hesita sobre os caminhos a tomar.
Comecemos pela entrevista ao Observador, onde Francisco Assis defendeu que “A coligação não trouxe nada de bom ao país”. Isto porque “Esta coligação, sendo contra-natura, é atrofiadora em relação ao PS. O PS mantém-se no poder, mas os partidos extremistas — BE e PCP –, alcançam algo ainda mais importante que é a possibilidade de condicionarem o poder do PS. Isso parece-me que se concretizou ao longo destes seis meses. E vai concretizar-se ao longo do tempo em que esta solução sobreviver. Esse é o grande problema. Nunca pensei que o PS viesse a radicalizar-se. Pareceu-me que o PS ficaria profundamente manietado devido a esta dependência de dois partidos que têm divergências profundíssimas em questões que não são menores e que se manifestam no dia-a-dia da governação.”
Para Assis, o problema de o PS estar “manietado” pelo PCP e pelo Bloco é que “não crê “que com estes parceiros parlamentares seja possível fazer qualquer reforma.” Em contrapartida defende que, até pelo que se passa na Europa, o PS tem de negociar à sua direita: "Há aqui uma cisão histórica no relacionamento institucional com a direita em Portugal. Não precisamos de deixar de ser um partido de centro-esquerda para mantermos um diálogo sério com os partidos situados à nossa direita. São partidos de uma direita democrática e de uma direita liberal que nos devem merecer todo o respeito."
Na entrevista ao Diário de Notícias/TSF este tema da natureza da direita mereceu mesmo honras de título – É "uma deturpação da realidade" dizer que Passos é neoliberal –, tendo Assis explicado porque se opõe a uma frase chave da moção de António Costa ao congresso do PS – "O adversário principal da esquerda socialista, social-democrática e progressista não são as forças à sua esquerda, é o forte desvio neoliberal do centro-direita conservador e a emergência da direita populista, nacionalista, autoritária e xenófoba". Para o eurodeputado esta frase “reflete uma reorientação política, estratégica e não sei até que ponto programática do PS e instala uma situação de relativa esquizofrenia, na medida em que no espaço europeu nos entendemos preferencialmente com o centro-direita e depois aqui em Portugal queremos fazer do centro-direita o adversário absoluto e fazer da extrema-esquerda o nosso parceiro permanente.”
Mas há quem, no PS, já começa a procurar teorizar a mudança por que está a passar o PS. Foi isso que fez Pedro Adão e Silva ouvido num trabalho de São José Almeida no Público – Nova política de alianças pode significar fim do “partido charneira” – onde considera que “o arco da governação existia porque havia eleitorado do centro", o qual está "em erosão por toda a Europa, afastou-se e a única forma de reconstruir um espaço de compromisso é através da cooptação dos extremos". Ao mesmo tempo esse sociólogo defende que "O compromisso do Bloco Central era Estado Social e Europa Connosco, a partir do momento em que há degradação de condições materiais e a Europa deixa de estar connosco é natural que esse espaço deixe de existir", afirma. E questiona-se mesmo sobre por que razão "o PS continua a aparentemente defender o optimismo em relação à União Europeia". Isto quando, "pela primeira vez, os interesses do norte e da periferia são contraditórios". E há no PS uma "renovação geracional que corresponde a um euro pessimismo e a um euro cepticismo camuflado".
Resulta bastante evidente destas duas abordagens que há, no PS, visões muito diferentes, pelo que é interessante ver o que se passa noutros países, onde também há fortes clivagens na área que habitualmente identificamos com o socialismo democrático. No Diário de Notícias, Leonídio Paulo Ferreira fala do que se passa em França, em O estilhaçar do PS francês, enquadrando essa crise na crise mais geral da esquerda europeia: “É péssimo para a esquerda europeia este estado calamitoso do PSF? É. Até porque em geral a vida não corre bem aos socialistas e afins. No Reino Unido, têm um líder demasiado à esquerda para chegar a primeiro-ministro, em Espanha arriscam-se a passar a terceira força e na Alemanha são o apoio da direita. Sim, governam na Suécia, em Portugal e na Itália, mas em minoria.”
É um retrato pouco entusiasmante, se acrescentarmos o quase desaparecimento do PASOK, na Grécia. É interessante por isso ver um pouco sobre o que tem escrito em França, e sobre França, país que neste momento atravessa mais um período de forte contestação social, desta vez contra um pacote legislativo promovido por François Hollande onde se procura liberalizar um pouco mais o mercado de trabalho.
Natalie Nougayrède, antiga responsável do Le Monde e colaboradora do Guardian, escreve neste diário britânico queFrance’s chaos stems from its failure to adapt to globalisation. Na sua perspectiva “Within the French left old disputes have returned with a bang. Never before, under the Fifth Republic, has a socialist government been confronted with this degree of social unrest. It’s true there is political polarisation, as elsewhere on the continent. But one specific ingredient is that France has hung on rigidly to its welfare state, while other countries moved to reform theirs years ago. (…) France has been unable to adapt to globalisation in the way others in Europe have done, as if social rights could only be protected if nothing changes.”
Do debate francês destaco dois textos do Le Monde:
- « Les vraies ruptures qui attendent la gauche », do cientista político Vincent Tournier: “Croit-on vraiment que l’Etat-providence, projet éminemment national dans son essence, puisse avoir un avenir dans le monde globalisé ? Peut-on justifier des mécanismes de régulation comme la carte scolaire, le temps de travail, la protection de l’environnement, la laïcité ou la lutte contre l’obésité tout en vantant continuellement les vertus de la liberté ? Ce serait oublier que l’intérêt général ne peut se réalise pas sans contraintes, et même – disons le mot – sans autorité. Mais il suffit de relire les grands auteurs républicains et socialistes pour voir que certains mots ne sont pas infâmes en eux-mêmes : tout dépend de ce qu’on en fait.”
- « La gauche a subi un hacking idéologique », de Jérôme Batout (paywall): “Hypothèse : à partir des années 80, au moment où le déclin puis la chute du communisme et la montée de la mondialisation ont marché main dans la main, quelque chose a eu lieu dans les profondeurs, qui est passé inaperçu. Cette chose, c’est l’appropriation par le néolibéralisme des prémices idéologiques classiques de la gauche”.
Como leituras complementares, sugiro mais duas reflexões no Observador e ainda uma recensão de um livro recentemente saído nos Estados Unidos. Começo por um texto que eu mesmo escrevi,A difícil relação da esquerda (alguma) com a liberdade, um texto onde parte de alguns exemplos portugueses recentes para reflectir sobre o historicismo da esquerda, a sua convicção de possui uma espécie de superioridade moral sobre os demais. Eis o meu argumento: “Vamos às origens, que é mais fácil compreender. E ir às origens é ir a Robespierre, para quem “o Terror é a luta da liberdade contra seus inimigos”. De novo parece estarmos perante uma evidente contradição: como é que, guilhotinando todos os que tinham opiniões diferentes, se estava, na opinião de Robespierre, a defender a liberdade? A explicação é simples: Robespierre achava que sabia o que era bom para o povo, pelo que aqueles que se lhe opunham só podiam ser contra o povo e, por isso, merecer a guilhotina. A única liberdade que considerava digna desse nome era a liberdade da sua facção revolucionária. Esta ideia de que há políticos que são melhores do que os demais porque são “progressistas” (uma palavra que diz muito), e que eles é que estão do lado certo da História e sabem o que é bom para o povo foi elevada a novos patamares quando o marxismo pretendeu interpretar “cientificamente” o sentido da História e determinar, por via do chamado “materialismo histórico”, não apenas quem representava o futuro, mas como seria essa futuro.”
Este fim-de-semana Gabriel Mithá Ribeiro defendeu mesmo que estamos perante O colapso moral da esquerda: Freud explica. O que este colunista estranha é que seja difícil a uma parte da esquerda tirar lições da história do século XX: “Será difícil as direitas retomarem a autoidentificação de ‘nacional-socialistas’ ou ‘nazis’, sintoma de uma relação moral saudável com o passado entre os que aprendem com os seus próprios erros. Em sentido contrário, as esquerdas persistem em autoidentificações como ‘socialistas’ ou ‘comunistas’ como se Estaline, Mao Tsé-Tung, Pol Pot e outros tantos ditadores não partilhassem essas identidades enquanto praticavam genocídios ou escapavam a responsabilidades diretas pela morte de milhões de seres humanos.”
Termino com a recensão do Wall Street Journal a um livro polémico, recentemente publicado nos Estados Unidos, The Closing Of The Liberal Mind, Kim R. Holmes. Em Progressivism’s Macroaggressions (Paywall) defende-se que “Perhaps the fundamental difference between yesterday’s liberals and today’s postmodern progressives is each side’s conception of truth. Liberals believe truth is external and can be determined through reason. A good liberal uses his reason to achieve justice and equality for all. But postmodern progressives are moral relativists. For them, truth is internal, discerned by and specific to particular individuals. Today a good progressive defends the individual’s internal truth—particularly if the person is an “oppressed minority”—against all foes, including reason. Small wonder that the postmodern left has turned on its own.”
O cisma a que assistimos nas primárias dos democratas, com Bernie Sanders a conseguir criar sérios problemas a Hillary Clinton, é mais um sintoma de como são de facto vários os caminhos que se abrem à esquerda (ou aos “liberals”, como são designados nos Estados Unidos). A discussão que Francisco Assis gostava que houvesse no Congresso do PS é uma discussão que está longe de ser caseira.
Tenham bom descanso, boas leituras, e reencontramo-nos amanhã.
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