Nuno Ramos de Almeida - jornal i, cultura - opinião
Um homem que morreu nas prisões de Mussolini já nos tinha alertado para momentos em que aparecem as criaturas mais horríveis. Sabemos que o tempo em que vivemos até aqui acabou. Impedir que o futuro seja um inferno dos ditadores só depende de nós
Consta que no livro sagrado Corão não estão referidos e descritos os camelos porque, como eles eram omnipresentes, o autor não achou relevante assinalá-los. Isso apesar de no outro Livro se dizer que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus. O mesmo se passou com a economia: durante muitos anos, quem mandava nela tentou convencer-nos de que funcionava como um relógio suíço, de modo que as pessoas ignoravam que pressupunha escolhas que a política e a ideologia ditavam. O aumento da velocidade da globalização capitalista e a crescente financeirização das economias aceleraram e tornaram impossível escamotear as crises inerentes ao sistema capitalista. Se, há uns anos, o presidente da associação dos economistas dos EUA perorava que a ciência económica tinha aprendido a dominar as crises e que estas eram apenas uma curiosidade arqueológica do passado, hoje em dia, ninguém se atreveria a fazer este tipo de apreciações. Como assinala Ricardo Paes Mamede no seu “A Economia como Desporto de Combate”: “A frequência e a intensidade das crises bancárias e cambiais constituem um traço marcante da era da globalização neoliberal. Um estudo publicado pelo Banco Mundial contabilizou 117 crises em 93 países entre os finais da década de 1970 e o início do novo milénio (não incluindo, portanto, as ocorridas desde 2007). Um estudo mais recente publicado pelo FMI identificou, entre 1970 e 2011, a ocorrência de 147 crises bancárias, 218 crises cambiais e 66 crises de dívida soberana.”
O crescimento das desigualdades e das incertezas faz com que as nossas sociedades vivam um momento de transição. O homem de quem Mussolini dizia: “Temos de impedir essa cabeça de pensar durante 20 anos”, Antonio Gramsci, escreveu nos seus “Cadernos do Cárcere” a seguinte frase: “Il vecchio mondo sta morendo. Quello nuovo tarda a comparire. E in questo chiaroscuro nascono i mostri.” (O velho mundo está a morrer. O novo tarda em aparecer. E neste lusco-fusco nascem os monstros.) O crescimento dos populismos de direita, no qual a eleição de Trump se enquadra, expressa este momento. Perante esta situação infernal, há vários caminhos. “Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura ché la diritta via era smarrita” (Quando me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo), dizia Dante na sua “A Divina Comédia”. A manutenção do que existe não só não é desejável como é impossível de sustentar perante a crise ecológica, o crescimento das desigualdades e da pobreza, a automatização e liquidação do trabalho e as contradições inerentes entre o desenvolvimento do conhecimento e a sua apropriação privada, e perante a privatização da vida e do genoma humano. Perante estes impasses e a crise no modelo existente abrem-se dois grandes caminhos: o reforço do modelo autoritário que faz da democracia algo que não decide e sob a chancela do Estado de exceção permanente, seja ele tutelado por um líder autoritário carismático ou por eleições em que tudo é possível de discutir mas tudo é proibido de decidir; ou a criação de uma alternativa popular baseada numa outra política e consubstanciada por uma outra economia. Só estruturas económicas diferentes que tenham em vista o bem e a propriedade comum, e formas de exercício de poder diferentes que tenham como objetivo dar poder e autodeterminação às pessoas, podem constituir uma alternativa global. Nesse sentido, é preciso dar um espaço para a política, e isso só é possível travando a globalização financeira e os mercados sem regulação democrática.
Livros como “Economia” de Ha-Joon Chang e “A Economia como Desporto de Combate” de Ricardo Paes Mamede são uma excelente leitura para quem quer retirar a economia dos céus dos mercados e devolvê-la às mãos da humanidade. Se a emancipação não for obra dos próprios, não será feita por ninguém.
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