sábado, 3 de junho de 2017

Eu, Psicóloga: Psicologia: tenho vocação?


“Meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são um pouco (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia seja uma profissão para você”.Contardo Calligaris


Você é um bom ouvinte? Da bons conselhos para os seus amigos? Seus pitacos sobre porque alguém fez algo normalmente acabam se mostrando certos? Se sim, então você provavelmente já ouviu alguém lhe dizer que “você seria um bom psicólogo” ou “você leva jeito para a psicologia.” Entretanto, muitas vezes, a visão que as pessoas tem sobre o que é a psicologia e o que é preciso para ser um bom psicólogo não será um bom guia para você descobrir se leva jeito para a coisa. Um estudante que quiser se graduar em psicologia e se tornar um profissional vai precisar de muito mais do que bons pitacos e um bom ouvido, embora essa parte do corpo seja essencial.

Seguem abaixo cinco características que eu considero importantes para alguém que planeja se aventurar nos mares agitados da psicologia brasileira.


Coragem

Para começo de conversa, você precisa ser uma pessoa corajosa e honesta consigo mesma para reconhecer que gostaria de fazer psicologia, e mais corajosa ainda para contar aos seus pais! Eu já passei por isso, não foi fácil. Afinal de contas, o sonho deles é, em geral, ter um(a) filho(a) médico(a) ou advogado(a). Eles querem que os filhos agarrem os empregos que oferecem a maior estabilidade financeira e status social disponíveis na nossa sociedade, e quando ouvem o(a) filho(a) dizendo que quer ser um(a) psicólogo(a) já pensam que ele(a) passará fome e talvez até fique doido(a).

Mas não adianta, algumas pessoas simplesmente não conseguiriam ser felizes sendo médicos ou advogados e a maioria dos pais se sentem convencidos quando percebem que os seus filhos estão sendo sinceros. Alguns de nós querem entender porque as pessoas fazem o que elas fazem, porque elas pensam o que pensam ou querem ajudar os outros a lidarem com seus problemas psicológicos – e talvez se entender um pouco melhor no meio do caminho. Existem milhões de pessoas como estas ao redor do mundo trabalhando em universidades, consultórios e empresas, fazendo um trabalho que as tornam felizes e de estômago cheio (por mais que você dificilmente se torne um bilionário ganhando apenas o que um psicólogo ganha).

Curiosidade

Todos gostaríamos de poder entender melhor os outros e a nós mesmos. A vida poderia ser muito mais fácil se conseguíssemos entender porque as pessoas com as quais convivemos fazem coisas ruins às vezes ou porque nós nos sentimos exageradamente angustiados em uma determinada situação. A diferença da maioria das pessoas para as que se tornarão ou se tornaram psicólogas é que entender o ser humano não é só um desejo, é algo que nos move, às vezes profundamente.

A curiosidade pelo ser humano é poderosa dentro de nós e faremos questão de estar atualizados sobre o que se entende deste assunto atualmente. Se possível, tentaremos contribuir para a construção deste conhecimento com pesquisas nossas ou usaremos estes conhecimento para ajudar as pessoas a aliviarem os seus sofrimentos. O que importa é o barato de olhar para trás daqui há um tempo e saber que você está lidando no seu trabalho com um dos objetos mais complexos que a ciência já se dispôs a entender e que é um grande privilégio fazer parte deste grupo de pessoas curiosas.

Amar Gostar de ler

Gostar é pouco, você precisa amar ler (ou pelo menos estar disposto a começar a amar)! Esteja disposto a perder muitas e muitas horas da sua vida… lendo. Sim, você lerá muito, vai cansar de ler às vezes, vai querer rasgar o seu livro… mas, no fim do dia, talvez você perceba o quanto valeu a pena ler. Nem todas as leituras serão ótimas, fáceis, bem escritas e realmente informativas, mas algumas delas podem mudar a sua visão de mundo. Algumas delas podem te trazer conhecimentos que você nunca imaginaria por si só e que poderão ser úteis a você no seu dia-a-dia. Algumas delas farão você querer nunca ter tido um olho para ser obrigado a ler aquilo, mas outras farão você se sentir privilegiado de estar vivendo em uma época em que nós, seres humanos, fomos capazes de entender um aspecto tão particular e interessante de nós mesmos. Alguns textos te tornarão uma pessoa mais humilde e compreensiva com os outros, pois te farão perceber o quanto o ser humano é falível e imperfeito, embora também seja tão flexível e admirável. Se você está com preguiça de continuar lendo esse texto, mas deseja fazer psicologia, aqui fica a dica: leia este e todos os outros textos deste blog, assim como de muitos outros, pois você precisará ser um leitor afiado e não terá descanso!

“Senso crítico”

Do primeiro ao último dia de aula, um aluno de graduação em psicologia no Brasil é bombardeado com professores, ideias e teorias que, quando juntas, podem não fazer muito sentido. As abordagens adotadas na psicologia são notoriamente hostis umas com as outras se comparado com o que ocorre em outras ciências, como a biologia e a física. Não será difícil para um graduando aprender algo em uma aula e, em uma outra aula, aprender algo contraditório com o que foi ensinado antes. Trava-se uma batalha política silenciosa dentro de muitos institutos de psicologia em universidades brasileiras, onde os alunos são a munição da batalha.

Cada grupo luta pela sua expansão e os alunos são persuadidos todos os semestre, por diferentes professores, a pensarem coisas quase opostas sobre o que é a psicologia, como ela deveria ser feita e até mesmo sobre o que é “ser crítico.” Não há regra de ouro sobre como lidar com estas ambiguidades, mas o que vale aqui é nunca se acomodar com uma única visão das coisas e sempre rever as suas opiniões. Conhecer as diferentes perspectivas, as suas vantagens e limitações é o único antídoto disponível (não totalmente eficaz). E quando alguém lhe disser o que você deve pensar para estar sendo “realmente crítico,” desconfie disso também. Se você quer ser um psicólogo, é melhor começar a saber conviver com a incerteza constante e a suspender seus julgamentos indefinidamente sobre várias coisas.

 Cabeça aberta

A psicologia não é um curso para qualquer um. Você será exposto ao que entendemos atualmente sobre o ser humano, e isso nem sempre será agradável ou coerente com as suas crenças. O importante é você entrar no curso desde o começo com a cabeça aberta, disposto a rever as suas ideias e talvez mudá-las se achar necessário. O machismo, o preconceito racial e a homofobia são alguns exemplos de influências sociais que, sem notarmos, moldam a maneira como percebemos o mundo e agimos com os outros. Na psicologia, você aprenderá que muitas destas visões são questionáveis e prejudicam a vida de milhares de pessoas. Em suma, não importa o quão tradicional ou moderno você seja, provavelmente você precisará rever noções básicas e, novamente, suspender seus julgamentos indefinidamente sobre diversas coisas ou mudar seus julgamentos.

O que há de bom então?

Talvez até aqui tenha parecido que eu só falei de coisas que dão trabalho na psicologia, que são difíceis de lidar e de entender. Se você quer dedicar pelo menos 5 anos da sua vida a algo, eu acho que seria bom saber onde você está entrando e das dificuldades que você poderia enfrentar (que são muitas). Nem sempre as coisas serão fáceis, nem sempre serão tão difíceis, mas há algo na psicologia de especial. Nós somos as pessoas privilegiadas que tem o maior acesso ao conhecimento disponível atualmente sobre o ser humano. Isso pode ser muito útil e divertido se você vive em um planeta habitado por seres humanos – afinal de contas, nós somos os especialistas do ser humano em um planeta cheio de humanos.


Nós podemos usar nossos conhecimentos no dia-a-dia para ajudar as outras pessoas e a nós mesmos. Nós podemos participar ativamente e diretamente da construção deste conhecimento ou ajudar várias pessoas a viverem vidas mais dignas e felizes. Um psicólogo sempre tem o potencial de fazer a diferença na vida de muitas pessoas, às quais ele nunca irá conhecer pessoalmente. Isso não significa que as outras áreas da ciência não possam contribuir para a qualidade de vida das pessoas, mas nós temos uma contribuição especial e particular para oferecer que as outras não serão capazes de oferecer. Eu espero que, daqui há um tempo, querer ser um psicólogo seja visto por pais como algo “bonito” e digno. Eu acho que escolhi uma profissão muito bonita, inspiradora e intrigante. Desde que eu comecei o meu curso, não houve uma semana na qual eu tenha acordado sem pensar em como eu gosto de fazer o que eu faço, sem pensar em como seria insuportável estar fazendo o que as pessoas gostariam que eu fizesse na época em que eu precisei escolher este curso. Ser um psicólogo pode não ser sinônimo de ser rico, simpático ou famoso, mas pode ser a profissão sem a qual você passaria o resto da vida se perguntando “e se…?”

* Debora Oliveira

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