Uma tragédia humana sem nome. 500 metros de estrada que se transformaram numa armadilha mortal para 47 pessoas. Um fogo que avançou imparável pelas encostas de Pedrogão Grande e Figueiró dos Vinhos apanhando as povoações de surpresa, cercando e consumindo aldeia, numa das quais morreram 11 dos seus 30 habitantes. À hora a que este Macroscópio é escrito já estão contabilizadas 64 mortes. Talvez não fiquemos por aqui. Sei que este é o tema de todas as conversas, tal como sei que boa parte da discussão repete argumentos antigos. Mesmo assim não é possível fugir ao tema. Por isso aqui fica um apanhado de alguns artigos e reportagens que vale a pena ler, antes de algumas análises que relembram o muito que já estudou e o muito que nunca se fez.
Primeiro, o apanhado de artigos que vale a pena ler, começando pelo Observador:
- "Encontrei dez corpos. Ninguém imagina o inferno", uma impressionante e tocante reportagem de Miguel Santos Carrapatoso;
- Colchões no chão, a roupa do corpo e muitas histórias. Os relatos dos desalojados da tragédia, outra reportagem, olhando para os que perderam muito, ou mesmo quase tudo;
- “Quando julgava que já tinha visto tudo, afinal estava enganado”, diz piloto que combate fogo em Pedrógão Grande, um testemunho impressionante recuperado do Facebook;
- Os bastidores da luta contra o fogo em 28 fotos, um olhar fotográfico para o que habitualmente não se mostra nem se vê;
- Como pode uma trovoada seca provocar um incêndio?, a necessária explicação, que deve ser complementada com esta entrevista a Pedro Miranda, na SIC Notícias.
- Como a PJ encontrou a árvore onde tudo começou e Quem são e o que fazem as equipas que estão a identificar os corpos, dois textos onde se fala do trabalho dos investigadores que estão no terreno;
Dos outros órgãos de informação:
- A sorte dos portugueses esquecidos é pouca. Mas talvez não: afinal é muita, imensa (Expresso Diário, paywall), uma reportagem de Christiana Martins;
- A estrada mais triste de Portugal (Expresso Diário, paywall), as imagens do drone da SIC devidamente enquadradadas;
- O que os políticos já nos prometeram no combate aos incêndios (Expresso Diário, paywall), um apanhado realizado por Raquel Albuquerque;
- Estaremos condenados a ver as tragédias repetirem-se? (Expresso), um texto onde Rui Cardoso recorda outras tragédias;
- “Não sou crente, mas rezei. Todos rezámos. Não havia mais nada a fazer”. Os relatos do medo por quem o viveu (Expresso), um apanhado de testemunhos tocantes;
- E o inferno na terra teve um nome: Pedrógão Grande, a reportagem dos enviados do jornal i
- Começou a chover lume e Dora pediu a Dulce que lhe levasse os filhos para os salvar, mais uma reportagem, desta vez de Patrícia Carvalho no Público.
- Como explicar a tragédia às crianças: “É preciso transmitir-lhes segurança”, um trabalho muito útil do Diário de Notícias.
Termino este primeiro bloco remetendo para uma crónica na primeira pessoa de um dos fotógrafos do Público, Adriano Miranda, que em A senhora de preto recorda de forma muito intensa as horas dramáticas que viveu na noite de sábado para domingo: “Os soldados da paz e das aflições gritavam. Os velhos continuavam à espera. E depois, aquela senhora de preto. Nunca mais a esquecerei. Na varanda da sua vivenda paga com suor e músculo, assistia calma e pacífica ao dançar do monstro. Ali mesmo, a uns 50 metros. O monstro arranhava os céus e ela continuava serena.”
Mas passemos agora ao debate que já se iniciou, se bem que, como já referi, boa parte da discussão que estamos a ter é uma repetição de discussões passadas – mas pelos vistos uma repetição bem necessária. Ainda o Verão passado, no Observador, num texto escrito a propósito de outra vaga de incêndios – Porque arde Portugal? – a Miguel Santos Carrapatoso escrevia, citando um especialista, que “Em média, 80% da área que arde num ano arde em 10/12 dias“, lembra José Miguel Cardoso Pereira. As próximas horas serão críticas. Depois, prevê-se uma acalmia. No entanto, conclui o investigador, “ficou provado que quando as coisas correm mal, correm realmente mal“. Resta saber como — ou quando — será a próxima vez.”
A próxima vez foi agora, e por isso lá voltámos a ouvir José Miguel Cardoso Pereira, que esteve este domingo na TVI24 onde deu um depoimento que vale a pena escutar com atenção: As duas zonas do país onde o fogo pode ser mais mortífero.
No mesmo registo escreve Ana Fernandes no texto que abre o Público de hoje, O que é que falhou neste sábado? Tudo, tal como falha há décadas. É um trabalho onde se recorda tudo o que já se sabe – e tudo o que mesmo assim nunca se fez ou faz: “Não há rigorosamente nada de novo a dizer. Já tudo foi estudado, explicado e escrito na última década e meia. Houve comissões para todos os gostos e feitios. E foi feito muito trabalho sério. Faltou tudo o resto. Faltou pôr a tratar de incêndios florestais quem percebe de floresta. Faltou integrar prevenção e combate. Faltou ordenamento. Faltou pensar no longo prazo. E adiou-se o mesmo de sempre: fazer da floresta uma prioridade, fazer de um terço do território nacional uma prioridade.”
Se alguém tem sido, nesta frente, uma voz que não se cala é Henrique Pereira dos Santos, arquitecto paisagista, de quem é possível ler um texto no Público – Imprevisível?, de que destaco a seguinte passagem: “Há projectos de grande dimensão científica, como o Fire Paradox, assentes exactamente na ideia, mais que comprovada, que quanto mais eficaz for a política de supressão do fogo, mais dramático será o primeiro fogo que fugir do controlo, exactamente porque impedir o fogo em territórios de acumulação de matos e folhada é encher barris de pólvora, à espera de uma das milhares de origens que pode ter uma ignição. O que não nos impede de continuar a ter como doutrina base a ideia de que todos os fogos devem ser suprimidos à nascença e que, na suposta reforma das florestas, o plano nacional de fogo controlado o exclua exactamente dos sítios onde faz mais falta: os povoamentos florestais.” – e ainda uma entrevista ao jornal digital Eco – Incêndios: “O que temos no território são torneiras do gás acesas”: “A opção não é a de ter fogos ou não ter fogos. A opção é entre ter fogos como queremos ou como não queremos. O que significa queimar no inverno, pagar aos pastores para andarem com gado, utilizar essas faixas de redução de combustíveis e, depois, ter uma estrutura profissional de combate, que está lá o ano inteiro, que esteve envolvida nessa redução de combustíveis e que sabe quais são as linhas onde é possível parar o fogo”, apontou o especialista.”
No que diz respeito aos textos de opinião, há-os mais técnicos, de especialistas, e os mais políticos, que já começam a debater se devemos ou não continuar em silêncio enquanto durar o luto. As opiniões, como seria de esperar, dividem-se, e aqui fica um apanhado delas, começando pelas mais técnica de todas:
- “Estás a ver no que dá terem acabado com os Serviços Florestais?”, um texto no Público de Fernando Pessoa, que Administrador Florestal e depois fundador e 1º Presidente do SNPRPP: “Os guardas florestais não eram polícias, eram actores fundamentais da vigilância das matas, integrados numa cadeia de comando especializada que ia dos velhos Mestres Florestais aos Administradores Florestais e ate aos Chefes de Circunscrição. Eles não têm que ser comandados por sargentos ou tenentes. têm de ser comandados por quem sabe dos problemas das florestas.”
- As armadilhas do fogo e do combate ao fogo, de Helena Matos no Observador, onde se critica o estarmos a insistir em fórmulas que não funcionam: “Ninguém questionou o falso sentimento de segurança emanado dessas páginas que nos davam conta de como se gastam as crescentes verbas da Proteção Civil: 137.687.616 euros no ano de 2017. Lendo as alíneas desse relatório, nomeadamente as que revelam quanto pesam as despesas do Dispositivo de Meios Aéreos de Combate a Incêndios Florestais (85,45% do total orçamentado na rubrica Aquisição de Bens e Serviços), constatamos como são verdadeiras as palavras do investigador José Miguel Cardoso Pereira (...) que no ano passado, ao ser interrogado pelo Observador (...), denunciou o que designava como “atração política de responder com reforço de meios de combate”, ao invés de um plano consistente de prevenção. “Vemos todos os dias os noticiários das oito a serem abertos com helicópteros Kamov.”
- Só há responsabilidade para as boas notícias?, de Rui Ramos também no Observador, onde se insurge contra a vontade de abafar qualquer discussão: “Demasiada população, incluindo uma parte da população mais vulnerável, como são os idosos rurais, é ano após ano sujeita à roleta russa dos fogos florestais. Foi revoltante ver nas televisões o desamparo de muitas dessas pessoas. Quem é responsável? Não se sabe, porque a oligarquia começou logo por decretar a “unidade nacional”, de modo a não haver perguntas aborrecidas nem debates incómodos.”
- O fogo e o luto – e o que falhou, de Henrique Monteiro no Expresso Diário (paywall), que prefere não entrar na discussão e argumenta mesmo em defesa de um período de luto: “Espero que compreendam algo tão bem como eu compreendo: demitir hoje um ministro, um dirigente da Proteção Civil ou dos Bombeiros é apenas fingir que se resolveu um problema. Alguém tem a certeza de que as pontes antigas melhoraram substancialmente a segurança depois da intempestiva demissão de Jorge Coelho a seguir à tragédia de Entre-os-Rios? Deixemos a cinza assentar. Tal como os nossos antepassados se cobriam de cinza em sinal de luto, façamos o luto. Depois discutiremos as responsabilidades de cada um.”
- Os abracinhos não resolvem (e desresponsabilizam), de Henrique Raposo no mesmo Expresso Diário (paywall), que pelo contrário entende que devemos já começar a debater politicamente: “Não tenho paciência para a cultura de silêncio que se está a tentar impor neste caso. Lamento, mas respeitar quem morreu não passa por ficar calado, passa por mostrar indignação e revolta. Porque é ultrajante ouvir políticos a falar em “imprevisibilidade” quando este é o fenómeno mais português de todos. Porque é ultrajante ouvir o líder da corporação dos bombeiros a falar em “natureza revoltada” quando este é um problema português. Porque é patético viver num país onde ninguém se demite depois de uma tragédia desta dimensão. Porque é triste viver um país liderado por um Presidente que coloca sempre os seus abracinhos à frente de qualquer outra coisa. É obsceno ouvir o Presidente dizer “fez-se o que era possível fazer” após 64 mortes provocadas pelo fenómeno mais previsível e estudado de Portugal.”
- O silêncio, de Alexandre Homem Cristo de novo no Observador, é um texto onde se defende que, mesmo respeitando o luto, não podemos esquecer esta discussão, como esquecemos outras: “Cada coisa a seu tempo. Mas, a última coisa que podemos aceitar é que, apagadas as chamas, o tempo passe e se instale o silêncio sobre Pedrógão Grande. Como se instalou quando ardeu a Madeira (no ano passado) ou o Caramulo. É essa rotina que também nos queima: nunca as investigações são conclusivas, nunca as lições são aprendidas, nunca a prevenção se sobrepõe à reacção, nunca o escrutínio é consequente. Ou se quebra esta rotina, ou a rotina quebra-nos a nós.”
- A culpa foi só da trovoada?, um pequeno vídeo meu onde sublinho a importância de não omitir a necessária discussão, afirmando, por exemplo: “Não, senhor Presidente Marcelo, não foi feito tudo o que podia ser feito. Não, senhor presidente da Liga dos Bombeiros, a culpa não foi só da mãe natureza.”
- Os fogos em Portugal, de Joaquim Miranda Sarmento no Eco, onde se recordam números que fazem pensar: “Portugal representa 2% da área da União Europeia, mas representa 50% da sua área ardida. Ora, como é evidente, as condições meteorológicas são igualmente adversas no centro e sul de Espanha, em Itália e na Grécia, mas quando juntamos os quatro países, Portugal tem quase 2/3 dos fogos, apesar de ter menos de 10% da superfície.”
- Pedrógão Grande, um desastre a interpelar o nosso futuro, de Manuel Carvalho no Público, muito em torno da ideia de que as alterações climáticas irão tornar ainda mais difícil a gestão do nosso património florestal, mas onde também critica as políticas de todos os governos: “Só quem não viu ao vivo a fúria de um incêndio num pinhal ou no eucaliptal carregado de mato é que acredita no poder da intervenção humana para o travar. É neste ponto da equação que entra o interminável debate em torno do ordenamento florestal. Que raramente existiu nas últimas décadas. Que sucumbiu à tentação de alocar verbas a uma guerra liderada com bombeiros, uma forma de os decisores políticos mostrarem serviço e empenho nos dias de estio depois de passarem as três outras estações do ano em estado de demissão ou letargia.”
- Amanhã começa um Verão longo e quente, o texto de Laurinda Alves no Observador que seleccionei para fechar pois deixa-nos a angústia de quem não tem penas interrogações sobre o pode ter corrido mal, mas interrogações sobre o que poderíamos fazer para todos nos comportarmos melhor naquelas situações extremas: “Nestes dias devastadores de combate às chamas e luto nacional, em que nos pesam os mortos e os desamparados, em que vemos e lemos relatos de destruição, em que passamos a ‘conhecer’ famílias inteiras que perderam a vida dentro do seu próprio carro ou nas suas casas, nestes dias em que falta saber tanta coisa, continua a fazer eco a pergunta: como? Como chegamos aqui e como podemos sair daqui? Como superar a desgraça e como evitar novos sofrimentos pelas mesmas causas? Pode não haver respostas imediatas e, muito menos, infalíveis, mas o ‘como?’ tem que ser perguntado, gritado e repetido de forma obsessiva, senhor Presidente.”
Foram várias as newsletters que o ano passado dediquei a este debate, infelizmente creio que esta não será a última. Mas por hoje é tudo. Tenham um bom descanso e, desculpem o atrevimento, colaborem da melhor forma que puderem nas acções de solidariedade e apoio, e só espero que deste debate saiam algumas das medidas que há tantos anos andam a ser sugeridas sem que sejam aplicadas ou mesmo testadas. Despeço-mo com a natural tristeza que todos sentimos nestes dias.
PS. A fechar, só uma chamada de atenção. Amanhã, dia 20, o Observador e o Banco Popular convidam-no para conversar sobre o estado da nossa Cidadania. A conversa, moderada por Miguel Pinheiro, terá lugar no Espaço Conversas Soltas Popular e contará com a contribuição de Isabel Jonet, presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares contra a Fome, de Francisco Ferreira, presidente da ZERO, do advogado Francisco Teixeira da Mota e de Ana Rita Ramalho, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina. Às 18h00 na Rua Ramalho Ortigão, 51, em Lisboa, sendo a entrada gratuita e aberta. Estou certo que vai voltar a ser interessante.
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