“Nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas; e, em conseqüência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma auto-análise e levá-la, de modo contínuo cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes (FREUD, 1910)
Freud , Em seu texto “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades” (1919), afirma que a formação de um analista deve ser sustentada a partir de um tripé constituído por: ensino teórico, supervisão e análise pessoal.
O tripé aconselhado por Freud é muito importante e necessário para o profissional em sua formação acadêmica e depois de já formado. Embora a teoria seja a base para os atendimentos , não há uma receita de “bolo” a ser seguida, mas um comprometimento em melhorar não apenas como pessoa, mas também como profissional. O Código de ética do Psicólogo , no item IV de seus princípios fundamentais, deixa claro que o psicólogo atuará com responsabilidade por meio do contínuo aprimoramento profissional.
Mas por que fazer terapia é vital para o profissional? Poderíamos ficar o dia todo aqui escrevendo a respeito, mas vou citar apenas dois. O primeiro e o mais óbvio é que o psicólogo também precisa se cuidar. Ele não está imune às circunstâncias adversas da vida ou a sofrimentos. Alguém já viu um médico doente cuidar de outro enfermo? Claro que não. O princípio é o mesmo para o psicólogo. Ele precisa se cuidar e experimentar primeiro ele, a eficácia da terapia.
Em segundo lugar é importante que o psicólogo faça terapia (principalmente se ele for para a área clínica) , porque em seus atendimentos, vez por outra ele irá encontrar algo, feridas e traumas em seus pacientes que esbarram nas suas feridas. A terapia irá ajudá-lo a separar suas dores das dores de seus pacientes , permitindo assim que o processo não “se contamine”.
Tão importante quanto a terapia é a supervisão clinica. É durante a supervisão que o psicólogo terá a oportunidade de visualizar seus atendimentos sob a ótica de alguém mais experiente, bem como avaliar sua capacidade de ir além do que o paciente traz para a sessão. A continuidade dos estudos faz com que o psicólogo se aprimore e acompanhe o ritmo e as mudanças da sociedade e cultura na qual ele está inserido.
Mas o que tudo isso tem a ver com o seriado Gipsy? Tudo eu diria.
Gipsy é uma série forte e mostra claramente o que acontece quando o psicólogo não se atenta para o tripé em sua formação e ultrapassa e desrespeita todos os limites entre pacientes e psicólogos . A ética profissional existe por uma razão : proteger o paciente e o psicólogo. Quando Jean desrespeita a ética , sua conduta profissional não apenas deixa a desejar , mas também prejudica a vida dos seus pacientes de forma direta.
Jean é uma psicologa que faz tudo o que um psicólogo não deve fazer. Ela começa a desenvolver relações íntimas e ilícitas com as pessoas que fazem parte da vida dos seus pacientes e em certo ponto esse envolvimento não tem volta. Com isso o inevitável acontece: não apenas sua vida vira uma bagunça , como suas sessões são influenciadas de forma negativa por essa proximidade.
A psicóloga tem claros problemas emocionais e ela age como se fosse outra pessoa para sustentar seu envolvimento. De fato ela cria uma persona, com nome , uma vida diferente da sua e esse "jogo emocional" custa caro para Jean.
A série retrata de forma clara, ao contrário do que muita gente pensa, como o psicólogo é frágil , ser humano, passível de erros. Quebra a onipotência do profissional como um ser superior , detentor do saber único e que sempre sabe o que fazer com a sua vida.
Por outro lado , percebemos que embora essa fragilidade seja algo normal, ela não deve suportará como algo imutável, pelo contrário, ela deve ser cuidada. A cada episódio acompanhamos como Jean vai se complicando, se envolvendo em um emaranhado de mentiras e manipulação. Ela se perde em suas tramas, nessa persona criada e vemos claramente que o psicólogo que não faz terapia fica à mercê das suas próprias feridas, preso na teia das suas dores e com isso, Jean não sabe onde começa e termina suas questões o que acaba complicando o tratamento de seus pacientes e cada mais fica difícil lidar com o paciente quando a sua dor esbarra na dele.
Embora Jean não se cuide em uma análise, ela faz supervisão dos seus casos. Talvez isso ocorra porque é feita na clínica, junto com outros profissionais que também trabalham lá. Contudo , o que poderia ser algo muito bom , não acontece porque os dados que são repassados por ela são manipulados. Jean conta em supervisão apenas aquilo que lhe convém e não somente omite fatos importantes como também chega a criar histórias sobre o progresso de seus pacientes. Dessa forma, ela é vista como uma boa profissional por seus colegas, inclusive um pede para ela lhe ajudar em um caso parecido com o seu, já que ela teve grandes progressos no mesmo ( falsamente e inventado).
A série é intrigante e envolvente. Mas quando analisada percebemos que o tripé de Freud que é aconselhado em sua teoria não é cumprido e com isso percebemos o quão importante e necessário é o profissional se cuidar emocionalmente, fazer supervisão e continuar os seus estudos. Fica um alerta para todos nós psicólogos o quão prejudicial nossos atendimentos se tornam quando cruzamos essa linha e não nos cuidamos.
Para os pacientes ou o público em geral que assistem a série e se questionam se a pessoa com quem faz terapia pode ser tão problemática quanto Jean, lembre-se : ele é humano, mas isso não o exime da responsabilidade e necessidade em se cuidar. Não tenha medo em perguntar se o profissional faz terapia e tão pouco verificar no conselho regional de Psicologia do seu Estado se existe algum processo ( e se esses são legítimos ou meras acusações ) contra o mesmo.
Debora Oliveira
Psicóloga Clinica
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