Investigação sem precedentes concluiu que seis jovens negros foram vítimas de racismo. E que os polícias mentiram
Dezoito agentes da PSP, entre os quais um chefe, vão ser acusados dos crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados pelo ódio e discriminação racial contra seis jovens da Cova da Moura, na Amadora.
É uma acusação sem precedentes no nosso país e surge após dois anos de investigação da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária (PJ) ao caso de violência policial contra seis jovens, ocorrido a 5 de fevereiro de 2015, que teve como palco a esquadra da PSP de Alfragide, que serve o bairro da Cova da Moura, onde a maioria dos habitantes são de origem cabo-verdiana.
O Ministério Público (MP) acusa também alguns dos polícias por crimes de falsificação de relatórios, de autos de notícia e de testemunho. Há ainda uma subcomissária e uma agente acusadas também pelos crimes de omissão de auxílio e denúncia. Na esquadra todos participaram nos crimes, segundo o MP, que mandou arquivar todos os processos dos polícias contra os jovens.
Numa primeira fase os jovens chegaram a ser constituídos arguidos, sob a acusação da PSP - corroborada pelo Ministério Público (MP) e pelo juiz de instrução - de terem tentado invadir a esquadra para libertar outro jovem que tinha sido detido. Ficaram sujeitos a termo de identidade e residência (TIR) indiciados pelos crimes de resistência e coação contra funcionário, injúria, dano, tirada de presos e ofensa à integridade física. Mas a PJ demonstrou que tal narrativa não era verosímil, face a todos os testemunhos e provas recolhidas, bem como em parte da investigação anteriormente feita pela IGAI, no âmbito dos processos disciplinares. Foi a versão dos jovens que vingou na investigação, baseada em dezenas de testemunhos (trinta para ser exato), relatórios médicos e cruzamento de informações recolhidas.
Tudo começou com a detenção, que o MP concluiu ter sido arbitrária e violenta de um jovem (não na sequência do apedrejamento por parte deste contra uma viatura da polícia, como contou a PSP), Bruno Lopes, no bairro, levado para a esquadra pelas 14.00 do dia 5 de fevereiro de 2015. Ao contrário do que foi descrito nos autos de notícia da PSP, Bruno não resistiu à detenção nem agrediu os polícias. Tal como contou, estes encostaram-no a uma parede, de braços e pernas abertos e disseram-lhe "estás a rir de quê, macaco? Encosta-te aí à parede!". De seguida espancaram-no violentamente e caiu no chão a sangrar da boca e do nariz.
Sendo conhecido da Associação Moinho da Juventude, uma instituição que desenvolve vários projetos de inclusão social no bairro, foram alertados amigos, entre os quais Flávio Almada e Celso Barros, conhecidos, até pela polícia, por serem ativos mediadores desta associação. Seis deles (não 20 a 25, como contou a PSP) dirigiram-se à esquadra para saber da situação de Bruno. O MP diz que, sem que fossem provocados, os agentes começaram a agredir os jovens, arrastando-os para a esquadra enquanto gritavam palavras de ódio racial. Dois deles ainda conseguiram fugir por entre as estreitas ruas do bairro. Ficaram Flávio, Celso, Paulo e Miguel. Um quinto elemento, Rui Moniz, que estava nas imediações, a sair de uma loja de telemóveis ao lado da esquadra, acabou por ser também arrastado para dentro pelos polícias. Um dos agentes, apontando para Flávio Almada, exclamou para os seus colegas: "Apanhem aquele que tem a mania que é esperto", indo atrás dele e espancando-o com o bastão.
Algemados, foram atirados para o chão da esquadra. "Vão morrer todos, pretos de merda!", ouviram dizer a um dos polícias. Pontapés em todo o corpo, socos, bofetadas, incluindo na cabeça, pisadelas, tiros com balas de borracha. Rui Moniz, que teve um AVC aos 9 anos e sofre de uma paralisia na mão direita, gritava por ajuda, mas ainda era mais agredido. Gozando com a doença, um dos agentes quis humilhá-lo: "Então não morreste (do AVC)? Agora vai dar-te um que vais morrer. Ainda por cima és pretoguês filho da puta!" Bruno, Flávio, Celso, Rui, Miguel e Paulo estiveram detidos dois dias.
Durante esse tempo, sustenta o MP, foram humilhados, vítimas de enorme violência física e psicológica por parte de agentes da autoridade dominados por sentimentos de xenofobia, ódio e discriminação racial. "Não é nada comigo", respondeu uma agente a quem Rui Moniz suplicava que o salvasse. Outro agente dizia, apoiado pelos colegas, olhando para os seis jovens do chão: "Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É preciso fazer a vossa deportação. Se eu mandasse vocês seriam todos esterilizados." Ou, como contaram ainda os jovens, declarava outro agente: "É melhor irem para o ISIS", "vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de merda!".
Só no dia 7 de fevereiro os jovens foram presentes ao juiz de instrução criminal. Regressados à esquadra, quando aguardavam pelos bombeiros e o INEM, finalmente chamados, para os conduzirem ao hospital, ainda assistiram a uma última cena, que ficou registada pelos investigadores: uma subcomissária de serviço, com o objetivo de esconder vestígios do sangue provocado pelas agressões, pegou numa esfregona e limpou o chão manchado de vermelho.
Inspeção tinha arquivado o caso
Estas conclusões vêm contrariar as do inquérito da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) à conduta policial: arquivou o inquérito ao caso e arquivou sete dos nove processos disciplinares abertos, por considerar "inexistir prova dos factos geradores da factualidade em causa". Só dois polícias sofreram penalizações, um foi suspenso seis meses, outro transferido.
Segundo a IGAI, o processo de inquérito "acabou por ser arquivado, em virtude de as diligências entretanto realizadas evidenciarem a ausência de fundamento para a instauração de outros processos disciplinares.
Fonte/Foto: DN
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