Muitos esperavam que, com João Lourenço, houvesse mudanças em Angola – muitos poucos esperavam que elas ocorressem tão depressa. A sucessão de exonerações nos postos mais importantes do regime chegou esta semana à mais importante das empresas angolanas, a sua “galinha dos ovos de ouro” (nas palavras do próprio Presidente angolano), a Sonangol. Essa exoneração foi ainda mais significativa por atingir afilha do anterior Presidente, Isabel dos Santos, num dia em que também se soube que outros filhos de José Eduardo dos Santos eram afastados dos lugares de poder que ocupavam. A quantidade de mudanças a que João Lourenço procedeu nos seus 50 dias de Presidência é, de resto, impressionante.
Em Luanda vive-se um ambiente que oscila entre a expectativa e euforia, há quem fale de uma espécie de conquista da independência, quem faça comparações com o 25 de Abtil. Vale a pena tentar perceber o que se está a passar e, mesmo que ainda se tenha sobretudo de interpretar sinais, como faz Cátia Bruno no especial do Observador As exonerações e os recados do novo Presidente, um texto onde, depois de expor diferentes perspectivas e as dúvidas existentes, se que deixa a interrogação que anda na boca de todos: “serão estas alterações mudanças de política ou trata-se apenas de substituir uma elite por outra, mais fiel a Lourenço? Marcolino Moco, figura histórica do MPLA, está esperançoso: “O João Lourenço que conheço há vários anos é capaz da mudança e tem ultrapassado as expectativas. Não pensei que fosse tão rápido. Não imaginava que pessoas dentro do partido como Lourenço, andassem a viver esta situação como eu — que sou tão crítico — tenho vivido.” O antigo primeiro-ministro renova assim a sua fé nas figuras do MPLA e crê que pode haver uma revolução vinda de dentro. “Era impensável que toda a gente dentro do MPLA aplaudisse aquilo. Esta é a prova disso”, diz, admitindo que a frase “a independência chegou agora”, repetida por alguns, pode ter algum sentido.”
Os observadores mais atentos e conhecedores da realidade angolana já tinham de alguma forma previsto que iríamos assistir a profundas mudanças. É por isso especialmente interessante ouvir, ou voltar a ouvir, o Conversas à Quinta que gravei com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto logo no início de Outubro, Há uma nova Angola com João Lourenço?, pois aquilo que aí se diz sobre quem é João Lourenço e qual a sua base de poder ajuda imenso a entender o que se está a passar. Estes nossos dois colaboradores não ficaram de resto nada surpreendidos com esta vaga de demissões, como explicam na breve conversa que acrescentámos às Conversas de hoje (dedicadas às mudanças sísmicas que estão a ocorrer na Arábia Saudita mas que só ficarão disponíveis online esta noite). Não percam, são menos de sete minutos: Que se passa em Angola? Ruptura ou evolução?
Voz indispensável sempre que se fala de Angola é a de Rafael Marques, jornalista e activista, e mesmo não sendo conhecidos comentários às mais recentes exonerações, há duas peças – uma entrevista e um texto de opinião, ambos recentes – que vos recomendo, até por contrariarem algum euforismo dominante:
- “O maior opositor do regime é João Lourenço”: a entrevista a Rafael Marques que ajuda a perceber o que está a acontecer em Angola, publicada no Expresso (a fotografia acima é de João Miranda). Nela Rafael Marques era pessimista sobre a capacidade de João Lourenço para se manter no poder, precisamente por enfrentar o legado de José Eduardo dos Santos: “Quem continua a controlar o dinheiro é o José Eduardo. Os principais assessores e alguns ministros são todos homens dele. O João Lourenço tem de tomar uma medida radical, que coloque em xeque o poder do José Eduardo. A população apoiaria João Lourenço.” Depois acrescentou que “O seu maior teste é a demissão de Isabel dos Santos nos próximos meses. Se se concretizar, haverá outro teste: a demissão do outro filho do José Eduardo, Zenu [José Filomeno de Sousa dos Santos, à frente do Fundo soberano]. No discurso optou por não falar de Portugal porque considera que os lóbis portugueses são os que mais legitimam o poder do José Eduardo. E ele considera que tem de se livrar desses lóbis e dos assessores portugueses que estão na Sonangol. Por isso não deu posse aos administradores portugueses na Sonangol.” Ou seja, parte deste caminho já está feito.
- “Belinha, sai só”. A carta aberta de Rafael Marques a Isabel dos Santos, um texto de opinião publicado originalmente no Folha 8 e que o Observador republicou. Num registo irónico, mas revelando naturais inquietações, Rafael Marques sublinha: “A novidade agora é o João Lourenço. É o que está a bater. Dentro do MPLA quer-se a consagração absoluta de João Lourenço. Os agitadores querem a transferência dos poderes absolutos que o teu pai tinha e que lhe permitiam fazer de nós, pobres angolanos, meros instrumentos do seu poder. Todos esses poderes são agora desejados nas mãos de João Lourenço. Passei muitos anos, armado apenas com o meu computador, com papéis e com canetas, a denunciar os excessos e os abusos monárquicos do teu pai. Não quero passar mais anos a fio a combater os poderes absolutos, sem freios nem contrapesos, que os do MPLA e o povo incauto querem colocar nas mãos de João Lourenço.”
Ainda para ajudar a interpretar o que se passa, mais duas sugestões:
- Les jeux sont faits, uma análise de Paulo Gorjão no jornal online ECO onde este defende que “Para o bem ou para o mal, a decisão de exonerar Isabel dos Santos e de romper com José Eduardo dos Santos — que ainda é o presidente do MPLA, importa lembrar — poderá ter sido o momento que marcará o destino político de João Lourenço. Muito claramente, o novo Presidente optou por uma via de ruptura política. Não é de todo seguro que tivesse de o fazer. (...) As linhas estão traçadas e não há volta a dar. Vamos ver, a partir de agora, se a contagem de espingardas estava certa, ou se alguém deu um passo maior do que a perna.”
- O estado da economia angolana tornava estas mudanças estratégicas e urgentes, uma curta entrevista do Público a Alex Vines, director do Programa para África da Chatham House. Nele este diz que o afastamento de um outro filho de José Eduardo dos Santos, José Filomeno dos Santos, que é responsável pelo Fundo Soberano, pode não ser para já: “acredito que “Zenu” [Filomeno dos Santos] pode ser deixado em paz, pelo menos por agora — o FSDEA [Fundo Soberano de Angola] é muito menos estratégico do que estas áreas onde se está a mexer. É uma questão de timing e de não se tratar de uma reforma tão urgente. O Fundo tem estado a fazer dinheiro — a questão é mais saber onde é que o dinheiro desse lucro é investido.”
As peças movem-se no tabuleiro mais depressa do que esperávamos, Angola está de regresso às notícias. Correspondem estas mudanças a um 25 de Abril ou a uma “primavera marcelista”? Terá João Lourenço o destino de Deng Xiaoping ou o de Mikhail Gorbachev? É provável que a resposta a ambas a questões seja nem uma coisa nem outra. Esperemos pelos próximos capítulos.
Por hoje é tudo. Tenham bom descanso e boas leituras.
PS. Nem percam mais uma edição especial, em papel (que sacrilégio!), do Observador, desta vez cheia de novidades sobre criadores portugueses e ideias para um Natal à base de produtos nacionais, uns antigos, outros bem modernos. Vejam abaixo:
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