terça-feira, 27 de setembro de 2016

A Nação que evangelizou a si mesma

Plinio Maria Solimeo
Coreia do Sul

Outrora denominada como Tsio-sienv(Serenidade da Manhã), mais tarde O Reino Eremita, por sua obstinação em não receber estrangeiros, a Coréia constitui talvez o único caso nos anais missionários de uma nação que evangelizou a si mesma.


Como ocorreu a inusitada evangelização da Coréia? No ano da graça de 1777, alguns sábios do país se retiraram a um pagode no campo para dedicar-se à busca da verdade, levando consigo documentos antigos da religião do país, que cultua os ancestrais, e de outras religiões pagãs. Como não chegavam a um resultado satisfatório, consultaram então, por falta de outro material, alguns livros trazidos da China pela embaixada que tinha ido àquele país prestar vassalagem ao seu Imperador.
Esses documentos, chegados providencialmente à Coréia, eram nada menos que alguns tratados de filosofia e de teologia católicos… Eram documentos escritos por missionários na China. Um desses missionários, por inspiração divina, os havia colocado junto ao material que foi entregue a um dos participantes da embaixada coreana, e eles acabaram nas mãos desses sábios!
Após os estudarem com afinco, aqueles sábios, apesar de pagãos, por terem honestidade intelectual e moral, entusiasmaram-se com tudo o que havia de grande, de belo e de racional — numa palavra, de divino — naqueles escritos sobre a Religião Católica.
Deu-se então um fato incrível: todos eles, de comum acordo, resolveram começar imediatamente a praticar aquela Religião que tanto os encantara.
Mas não se limitaram a isso: queriam saber muito mais. Por isso, quando se organizou uma nova embaixada em direção à China, um daqueles sábios, chamado Piek-i, pediu ao seu amigo Seng-houn-i, entusiasmado como ele pela nova Religião, que em Pequim procurasse entrar em contato com os representantes daquela Religião.
Pintura representando os mártires coreanos
Pintura representando os mártires coreanos
Uma vez na capital chinesa, Seng-houn-i foi encaminhado ao bispo D. Alexandre Tong, que encarregou o Pe. Alexandre Gouveia de instruir o neófito. Depois de um intensivo curso de formação, Seng foi batizado. Munido com farto material religioso e muitas instruções, ele voltou seu país, compartilhando com os outros tudo o que vira e ouvira sobre o catolicismo na capital do Celeste Império.
Piek-i, entusiasmado, recebeu o batismo das mãos de Seng-houn-i e tornou-se apóstolo. E assim o Cristianismo foi crescendo, até a chegada dos primeiros missionários, em 1836, quase 60 anos depois![i].
Santo André Kim, neto de mártires, foi primeiro sacerdote coreano. Martirizado em 16 de setembro de 1846. Imagem (acima) venerada na Igreja Na. Sra. Auxiliadora, em São Paulo [Foto PRC]
Santo André Kim, neto de mártires, foi primeiro sacerdote coreano. Martirizado em 16 de setembro de 1846. Imagem (acima) venerada na Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, na capital paulista [Foto PRC]
Nesse fato singular se vê a mão da Providência divina a velar de maneira especial por aquele povo. Pois antes mesmo de o primeiro sacerdote católico pisar em solo coreano, o catolicismo — que do topo da escala social descera até às classes inferiores — já produzira alguns mártires.
Entretanto, a nova Religião foi severamente proibida com pena de morte. O que fez com que fossem 103 os mártires — entre missionários franceses e fiéis coreanos — canonizados por João Paulo II em Seul no ano de 1984.
Infelizmente, com a perseguição implacável das autoridades e mais a falta de missionários, o catolicismo no país foi diminuindo em número, quase desaparecendo. Foi então que, no início do século XX, ricas sociedades missionárias protestantes americanas aproveitaram o terreno outrora semeado com tanto custo pelos primeiros católicos, para investirem fortemente no país. Como apresentavam outra religião “cristã”, conseguiram numerosos adeptos, de maneira que hoje o total de seus seguidores no país é bem maior que o de católicos.

Da ocupação japonesa ao comunismo

Entretanto, desde a era dos mártires e confessores até nossos dias, muita coisa mudou na Coréia. Uma delas foi a ocupação japonesa em fins do século XIX e início do XX, que durou até 1945, com a rendição do Japão no fim da II Grande Guerra. Ocorreu então outra tragédia ainda pior: o país foi dividido com base no “Paralelo 38”, ficando o norte sujeito à administração soviética e o sul à americana. Em 1948 foi efetivada essa divisão em dois países distintos, formando-se assim a Coréia do Norte, sob o regime comunista, e do Coréia do Sul, sob a influência americana.
Em Seul, em 1950, fuzileiros navais americanos defendendo a Correia do Sul contra a invasão do norte.
Em Seul, em 1950, fuzileiros navais americanos defendendo a Correia do Sul contra a invasão do norte.
Como era de se temer, o regime comunista da Coréia do Norte, armado fortemente pela União Soviética, invadiu o Sul em junho de 1950, dando início à devastadora Guerra da Coréia, que durou três anos. Foi então assinado um armistício fixando o status quo e pondo fim à guerra fraticida, mas efetivando o regime dos sem-Deus ao Norte[ii].

O que resta do catolicismo na Coréia do Norte

A Coréia do Norte, com seu regime comunista, ateu e materialista, logicamente perseguia a fé católica e tentaria extirpá-la. Foi o que ocorreu, como explica Rudolph J. Rummel, professor emérito de ciências políticas na Universidade do Havaí e estudioso do assunto:
“Trabalho forçado, execuções e campos de concentração foram responsáveis por mais de um milhão de mortes na Coréia do Norte, de 1948 a 1987. Outros estimam que só nos campos de concentração houve 400 mil mortes. Estimativas baseadas no mais recente recenseamento do país indicam que de 240 a 420 mil pessoas morreram como resultado da fome dos anos 1990, e que houve de 660 a 850 mil mortes não naturais na Coréia do Norte de 1993 a 2008”[iii].
Atualmente, “uma pesquisa das Nações Unidas sobre a violação dos direitos humanos no país, confirmou que ‘quem pratica a religião, é perseguido como criminoso’, e que o cristianismo ‘é comparado à droga, aos narcóticos, ao pecado e à invasão capitalista’. Segundo muitos peritos, nos campos de extermínio ainda abertos, entre as quase duzentas mil pessoas, poderia haver até seis mil cristãos. Embora na Coréia do Norte não haja sacerdotes, Open Doors sustenta que os cristãos presentes no país são pelo menos quatrocentos mil, e em crescimento. Segundo a Ajuda à Igreja Necessitada, os católicos poderiam ser dez mil numa população de 24 milhões de habitantes”[iv].
Além de muitos que confessaram sua fé e sofreram — ainda sofrem — nas prisões comunistas, houve vários mártires que deram suas vidas nas masmorras comunistas. Citamos aqui somente o bispo americano Patrick Byrne. Ele foi Prefeito Apostólico de Pyongyang de 1927 a 1929, de Kyoto entre 1937 e 1940, e depois Delegado Apostólico na Coréia em 1949. Preso pelos comunistas em 1950, o tribunal revolucionário o enviou para ser julgado em Pyongyang, após penosa marcha. Declarado culpado, ele foi sujeito a outra marcha forçada, de quatro meses de duração e praticamente sem alimento nem abrigo. Como consequência, contraiu severa pneumonia. Sem tratamento adequado, faleceu na prisão em novembro de 1950, aos 62 anos[v].
Esse regime continua tão atroz como no passado.

A Coréia do Sul renascida

Os três anos da Guerra da Coréia produziram uma devastação no Sul. O Pe. Giovanni Trisolini, um dos primeiros missionários que lá chegaram em 1959, encontrou a seguinte situação: “Havia uma miséria espantosa. O país estava também destruído pela guerra, tendo os exércitos comunistas passado e repassado por todo o território. Nosso trabalho principal, dos missionários, era dar de comer a pessoas que literalmente morriam de fome. Com poucas estradas e linhas férreas, não funcionava quase nada das estruturas sociais”[vi].
Entretanto, com uma capacidade impressionante de reorganização e trabalho e, sobretudo, da livre iniciativa, que falta na Coréia do Norte, os coreanos do sul transformaram em pouco tempo seu país em um dos mais industrializados e modernos de nossa época.
“De 1960 a 2011, os habitantes passaram de 20 a 50 milhões, e o ingresso per capita, de 1.300 a 23.500 dólares”. Concomitantemente, “os católicos, de quase 100 mil (0,5%), passaram a 5.300 milhões (10%), segundo as estatísticas da Conferência Episcopal Coreana. (…) A maioria das conversões ao catolicismo se dão geralmente nas cidades [os do campo são mais aferrados a seu paganismo] e entre as elites do país: profissionais, estudantes, artistas, políticos, e também militares de alto grau” [vii].
De acordo com a mesma fonte, são realizados anualmente de 130 a 140 mil batismos de crianças e adultos.
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         Outra notícia auspiciosa é a do batismo em Seul, no dia 18 de junho pp., de 60 refugiados da Coréia do Norte [Foto acima]. “Esse batismo de sessenta pessoas é um acontecimento raro em Seul, sobretudo se são de norte-coreanos, e se entre eles, como afirmou o Pe. [Raymond] Lee na homilia [nessa ocasião] ‘há pessoas que estiveram encarceradas; alguns foram obrigados a assistir ao assassinato dos próprios pais. Vós passastes por dificuldades de todo tipo, e tendes uma grande necessidade de amor. Eu vos desejo o melhor, agora que renascestes no amor de Deus. Rezo por vossa felicidade”[viii].
Em Seul, em 1950, fuzileiros navais americanos defendendo a Correia do Sul contra a invasão do norte.
O catolicismo na Coréia do Sul é chamado popularmente “‘a religião da Mamãe’, porque em frente de quase todas as igrejas católicas há uma imagem de Maria com os braços abertos, convidando os que passam a nelas entrar”.

Há mais: a Religião Católica, “como revela enquete recentemente publicada, se converteu no credo mais ‘influente’ e mais merecedor da ‘confiança’ dos cidadãos da Coréia do Sul [...]. Os sul coreanos opinaram que o catolicismo é a religião mais ‘influente’ na sociedade do país, outorgando-lhe 3,4 pontos sobre uma escala de 5, acima do protestantismo, com 3,32, e do budismo com 3,27, segundo o estudo bienal de sociedade, política e religião do Instituto de Investigação de Jogye, a maior ordem budista”[ix].
Rezemos pelos nossos irmãos na fé da Coréia do Sul, e, sobretudo, para que a Igreja possa o antes possível renascer na do Norte, livre da heresia comunista.
Em Seul, em 1950, fuzileiros navais americanos defendendo a Correia do Sul contra a invasão do norte.

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[i] Cfr. Afonso de Sousa, “A Nação que evangelizou-se a s
i própria”, em “Maravilhas da Igreja no Oriente”, Editora Artpress, São Paulo, 2005. Ver também: http://es.catholic.net/op/articulos/31953/andrs-kim-pablo-chong-y-compaeros-santos.html
[ii] https://en.wikipedia.org/wiki/Korea
[iii] Id.ib.; www.hawaii.edu/powerkills/SOD.CHAP10.HTM
[v] https://en.wikipedia.org/wiki/Patrick_James_Byrne

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