No Expresso, Marcelo inicia uma escola de jornalismo que foi a primeira típica da nossa democracia, e que veio mais tarde a trazer para a rádio e para a televisão.
José Pacheco Pereira |
A mera junção destes dois nomes parece insultuosa, tanto mais que são duas personagens muito distintas e que detestariam em se verem reunidos num mesmo título. Na verdade, Marcelo tem pouco a ver com Trump e vice-versa. Marcelo é um político sofisticado, culto, elegante, educado, honesto e Trump é uma personagem grosseira, ignorante, brutal, corrupta e corruptora e ameaçadora. Acima de tudo, Marcelo é um político democrata e Trump é um autocrata, a diferença mais substancial. Porém há uma coisa que têm em comum: é o facto de ambos terem chegado ao poder através de uma contínua utilização do sistema mediático moderno, com criatividade e intuição, moldando o universo dos media aos seus interesses pessoais e políticos. E aqui pode-se fazer uma comparação entre ambos, e percebendo-os, perceber algumas das características da política em democracia, em particular a sua ligação/sujeição aos mecanismos mediáticos.
Nessa comparação, Trump aliás tem vantagem porque, mais do que Marcelo, combinou a manipulação sistemática dos media, com a expressão de interesses sociais de grupos de americanos que se sentiam excluídos da representação política, enquanto Marcelo depende, no seu sucesso, da manutenção de uma conjuntura simbólica de apaziguamento que lhe é favorável enquanto houver estabilidade política. Por isso, Trump, para além do que trouxe de novo à relação da política e dos media num contexto populista, criou um ponto sem retorno, e é um revolucionário. Já Marcelo não pode ainda definir a sua presidência como um tempo sem retorno, podendo ser aliás um momento de transição e passagem. Na verdade, o que é novo no tempo de Marcelo não é a “política dos afectos”, é a “geringonça”, e esta não é de sua autoria.
Trump e Marcelo são políticos muito intuitivos e inventivos e perceberam como é possível usar os media modernos, do jornalismo às “redes sociais” que não são jornalismo. O caso de Marcelo é exemplar no jornalismo e na comunicação pós-.25 de Abril. À data do 25 de Abril não havia qualquer experiência de jornalismo em democracia, pesem embora os esforços de várias gerações de jornalistas, em particular a gerada nos anos sessenta, para oferecerem uma alternativa quer ao proselitismo dos propagandistas do Estado Novo, quer ao silêncio demasiado longo da Censura. Mas isso não é uma plena experiência de jornalismo em democracia, o que explica que na euforia da liberdade, a maioria destes jornalistas, que vinha da oposição política e estudantil, gerassem um jornalismo militante de esquerda, que acompanhou os ciclos políticos do PREC até à “normalização” democrática. Com uma excepção, o Expresso com Marcelo Rebelo de Sousa.
No Expresso, Marcelo inicia uma escola de jornalismo que foi a primeira típica da nossa democracia, e que veio mais tarde a trazer para a rádio e para a televisão. Ele foi o mestre, mas os seus discípulos ainda hoje usam a “gramática” e o “léxico” do estilo de jornalismo que ele criou. Usam a forma de pensar de Marcelo e o seu vocabulário, naquilo a que chamam “jornalismo político”, mas estão muito longe da mestria de Marcelo. Os artigos de opinião, as perguntas em entrevistas, a lógica dos títulos, a enunciação dos “problemas”, os “destaques”, toda a mecânica interpretativa nasce daí, embora se se fosse a verificar a pertinência das questões da “agenda”, e os resultados de alguns vaticínios veríamos que praticamente nada acerta, ou tem utilidade analiticamente.
É um jornalismo discursivo e narrativo, pouco metafórico (aí o Independente bate todos), bastante a-histórico e onde não cabem surpresas. Inclui algum psicologismo na interpretação das personagens, mas muito superficial e muito dominado por uma lógica lúdica de intriga e mexerico, que davam ao “produto” uma lógica popular de entretenimento.
Que estilo deixou Marcelo nos media, que depois lhe criou o caminho aberto para a presidência com a complacência e a cumplicidade de muitos dos jornalistas que ele tinha “formado” ou “enformado”? Baseava-se em várias coisas: uma obsessão com o calendário e a utilização do calendário – prazos, contextos temporais, etc.- para cenarização da vida política. Os cenários eram possibilidades hipotéticas de acção por parte de personagens da vida política, umas vezes baseados em truísmos, outros em provocações, destinadas a obter respostas dos provocados e a introduzir “picante” na vida política. Neste tipo de jornalismo, uma espécie primitiva de “fake news”, os chamados “factos políticos” criados por Marcelo tinham um papel.
Com a crescente simbiose discursiva dos políticos em democracia com esta forma de mediatização, passava a haver um contínuo entrelaçado entre os cenários e as personagens que supostamente eram os seus actores. Este efeito de teatralização da vida política ainda hoje é dominante, com a sua excessiva atenção á coreografia e desprezo pela substância. O conteúdo das políticas foi subsumido pela maneira como eram “comunicadas”, os célebres “erros de comunicação”, um aspecto muito comum nos comentários de Marcelo, como aliás nos de Marques Mendes, particularmente quando eles próprios concordavam com as políticas de fundo, mas não o queriam dizer.
Porque é que este longo tirocínio comunicacional abriu a Marcelo o caminho da Presidência, que a sua própria actividade política não abriu? Primeiro, a longa exposição mediática é de um modo geral uma vantagem para quem tem que fazer um comentário. Não precisa de perder tempo com preliminares, visto que o seu público conhece-o muito bem, e de um modo geral sabe o que ele pensa. Pode não saber como ele o vai dizer, a intensidade de uma crítica ou até de uma desculpa, mas não há muitas surpresas. Contrariamente ao que os media valorizam, - a novidade, - esta só é relevante quando o produto “velho” é mau e o novo muito bom, o que raras vezes acontece.
O resultado desta longa exposição é uma espécie de intimidade, o “homem está lá em casa todas as semanas”, tornou-se um hábito que gera um núcleo fiel de leitores, mesmo críticos, e Marcelo foi capaz como ninguém de criar essa intimidade que se manifestava inclusive nas formas de tratamento entre o próximo e o deferencial.
Por outro lado, havia um aspecto nos comentários de Marcelo que exercia uma função cívica: explicava procedimentos, processos, comparações que davam ao seu público uma pedagogia da democracia, que é um dos aspectos mais positivos do bom comentário político. Mas Marcelo ia mais longe, ao apresentar-se com a persona do “professor” dando notas, um mecanismo adoptado por toda a comunicação social nas setas do sobe e desce, valorizava o classificador reduzindo o classificado ao papel de aluno. Na verdade, poucas coisas eram mais absurdas do que ver Marcelo a classificar com notas Cavaco ou Clinton, mas o facto de nós não vermos essa absurdidade, remete para o seu poder mediático. A verdadeira subversão seria classificar o próprio Marcelo, como aliás analisar os seus comentários com uma fact checking que eles muitas vezes falhavam, por exemplo em política internacional.
Estes são alguns dos aspectos da “escola de Marcelo” A ela se soma, depois do 25 de Abril, dois momentos de alternativa, todos anti-Marcelo, também com algum sucesso, um a escola do Independente de Portas e Miguel Esteves Cardoso, outra a linha da Alt-rightportuguesa que começou nos blogues de direita e que desembocou no Observador.
Fora destes três momentos, o resto são cópias e imitações, embora haja alguma capilaridade entre estas experiências, quer com a imprensa tablóide, quer com a de referência, umas vezes no noticiário, outras vezes no jornalismo cultural, ou no comentário desportivo. Falo essencialmente da imprensa escrita, mas é possível também passar para a rádio e para a televisão, embora ai outras personagens como Emídio Rangel ou José Eduardo Moniz, tenham deixado marcas.
Em seguida, veremos como a sociedade e o eleitorado pode hoje ser manipulado, é esta a palavra certa, pela capacidade mediática de personagens como Marcelo e Trump.
Colunista
Fonte: Público
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