Quando decidi emitir a presente opinião, tive dois constrangimentos: (1) o temor de me alongar e criar desinteresse nas pessoas que vão ler; e (2) o receio de não ter a capacidade necessária para transmitir a mensagem com as palavras certas e perceptíveis para todos. Contudo, pelo sim ou pelo não, segue a opinião para quem puder lê-la.
Há quem chame a comunicação do Chefe do Estado um grande passo para à busca da paz efectiva, e alguns a catalogam de melhor acordo. Mas há quem, ainda, refira a existência de uma violação da legalidade, pelo facto de não se remeter ao Referendo alguns elementos dispostos na Constituição da República, a serem objecto de revisão (no 2 do artigo 292, com destaque para a al. e) do no 1 – Limites materiais). No meio disto tudo eu diria que este foi o acordo possível. É um passo para a paz que queremos, mas ao mesmo tempo, pode configurar um retrocesso sobre o que se pressupõe ser a descentralização.
Desde o início do conflito político-militar, os clamores de Paz eram dirigidos para dois dirigentes: Filipe Nyusi e Afonso Dhlakama, daí que não parece espantoso que hoje fossem os mesmos a decidir pela vida de milhares de moçambicanos. Contudo, o problema não reside aí. Tal assenta, fundamentalmente, em o que foi decidido e com que finalidade.
I. Num célebre livro de Robert Michels, intitulado "Les Partis Politiques - essai sur les tendances oligarchiques des démocraties", escrito em 1914, o termo 'partidocracia' ganhou corpo, apesar do mesmo ter sido verdadeiramente aplicado em um Governo só em 1930 pelo dirigente político argentino, Manuel Fresco. O termo não colhe consensos sobre o que o mesmo significa na essência.
Em poucas palavras, diríamos que o actual acordo sobre a descentralização coloca-nos numa situação de culto à 'partidocracia' - uma deriva da democracia representativa, marcada por uma forma de oligarquia, concentrando o poder dentro de uma (nova) classe privilegiada: os partidos políticos, e onde temos: a) alianças entre os partidos políticos, através da partilha do poder, infringem o sufrágio universal; b) decisões importantes são tomadas pelos líderes partidários cuja imparcialidade não é garantida; c) o surgimento (no nosso caso a manutenção) de partidos políticos fortes, através de alianças capazes de evitar o aparecimento de partidos novos e pequenos e d) o papel do eleitor se limita a corrigir o equilíbrio de poder entre os partidos políticos. Aliás, de alguma forma já vivíamos essa 'partidocracia', olhemos para o peso que os partidos políticos exercem em torno dos edis que eram (até aqui) eleitos e sob a gestão do próprio Estado, exemplos elucidativos não faltam.
II. Notamos, ainda, a cristalização da bipolarização partidária que se concentra entre a Frelimo e a Renamo. Uma simples definição nos diz que a bipolarização pode significar o domínio partidário por duas forças políticas que detêm a maior parte dos assentos no parlamento. Ora, o acordo apresentado é o espelho das duas lideranças partidárias (Nyusi e Dhlakama), o que fortifica a paisagem política nacional que historicamente foi (quase) sempre dominada por apenas dois partidos.
A Frelimo e a Renamo conseguem (mais uma vez) cimentar as suas posições na cena política nacional de forma inequívoca, o que pode revelar dificuldades para que outros partidos possam emergir ou implantar-se. Aliás, bipolarizar a cena política nacional em nome da descentralização é uma forma que permite para que, entre eles (Frelimo e Renamo), haja a partilha do poder que é alicerçada no 'Political Settlement' - processo formal e informal de negociação entre elites, bem como entre o Estado e os grupos organizados na sociedade sobre a organização do poder. Ademais, aqui a Assembleia da República vai ser, tal como sucedeu em 2014, um mero actor que servirá para chancelar/legitimar decisões políticas.
III. Por fim, e não menos importante, quando pensávamos que o pacote da descentralização fosse significar maior abertura e participação do cidadão na escolha dos seus dirigentes, eis que somos brindados com a retirada desse poder (Vide Constituição da República de Moçambique, Título XIV - Poder Local, artigo 271 - 1. O Poder Local tem como objectivos organizar a participação dos cidadãos na solução dos problemas próprios da sua comunidade e promover o desenvolvimento local, o aprofundamento e a consolidação da democracia, no quadro da unidade do Estado Moçambicano; e 2. O Poder Local apoia-se na iniciativa e na capacidade das populações e actua em estreita colaboração com as organizações de participação dos cidadãos).
Ou seja, encontramos na comunicação do Presidente da República, uma tendência de descentralizar a centralização não só nos partidos políticos, mas na figura do próprio Presidente da República. Se a eleição do Presidente do Município era vista como um ganho para a nossa descentralização, ninguém percebe agora de onde emergiu a decisão de se coartar essa decisão aos cidadãos. A tendência que hoje vivemos, já havia sido alertada pelo IESE no seu livro intitulado 'Descentralizar O Centralismo? Economia Política, Recursos e Resultados' (WEIMER., et al), em 2012.
Termino como comecei! Essa proposta de descentralização é um passo importante para a paz que todos nós almejamos, mas um recuo significativo para a descentralização. É verdade que precisamos esperar, porquanto não conhecemos dos detalhes legislativos do processo, mas pelo que foi-nos apresentado até ao momento, é possível emitir alguma opinião.
Por Dércio Tsandzana
Fonte: Jornal A Verdade, Moçambique
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